Lançar um carro é sempre difícil, mas relançar uma lenda é um desafio de vida ou morte. Em mais de 20 anos como jornalista, acompanhei os bastidores de centenas de lançamentos. Valia tudo para encantar os olhos na apresentação oficial: show de luzes, atores famosos, corrida na neve, estreia no deserto e até — acredite — sorteio de brindes para a imprensa.
Se as fabricantes montavam essa operação de guerra para um automóvel que ganhava apenas faróis novos, dá para imaginar a tremenda pressão que é inaugurar a nova geração de um modelo que marcou a história da empresa.
O maior erro é confiar que a tradição do nome é o principal ativo de um ícone, que é meio caminho para garantir a continuidade do êxito de vendas. Pena que não é verdade. O nome é importantíssimo, mas é só o ponto de partida. A receita do sucesso de uma lenda precisa de três ingredientes bem dosados para fazer o bolo crescer: design, proposta e preço.
A história está repleta de mitos que derraparam no meio da curva por não respeitar essa lista tríplice. O Ford Thunderbird voltou à vida em 2001 com um visual retrô exagerado e quase nada que lembrasse o espírito de 1954. A quarta geração do Chevrolet Camaro (1992) ficou conhecida como a mais feia da linhagem. Em 1997, a Volkswagen modernizou o Fusca após 60 anos inalterado, mas esqueceu da simplicidade e do baixo custo.
Falando em Fusca, nem o modelo original se deu bem no Brasil quando foi ressuscitado a pedido do presidente Itamar Franco. Apesar de manter as linhas clássicas dos anos 30, a proposta e o preço já não combinavam com o mercado de 1993.
Todo esse preâmbulo nos leva aos três nomes de peso que estrearam nas últimas semanas: Fiat Strada, Land Rover Defender e Ford Bronco (este na foto de abertura). Será que todos eles seguiram a lista tríplice? Qual deles está mais predestinado ao sucesso? Façam suas apostas!
Strada: time que está ganhando…
Ok, é verdade que a Strada havia sido mostrada à imprensa especializada, porém só agora a Fiat lançou a campanha publicitária. O comercial revela o tamanho da ambição: Elvis Presley dirige a picape em situações cinematográficas embalado pelo slogan “A lenda se superou”.
Claro que classificar a Strada de lenda é típico da linguagem hiperbólica dos anúncios, mas não dá para negar que a picapinha já faz parte da história brasileira do automóvel. Nascida em 1998, era basicamente o mesmo projeto até agora, quando veio uma nova geração de verdade.
Ela vai dar certo? Sem dúvida, porque a Fiat fez bem a lição de casa ao não descuidar dos três ingredientes básicos. O desenho é o que se esperaria de uma Strada e dá até um passo à frente, ao herdar os bem-sucedidos genes da sua irmã maior, a Toro.
A proposta está bem calibrada: agrada quem deseja um utilitário cumpridor de tarefa e também quem busca um veículo de lazer com pegada urbana e uma pitadinha de aventura. Não esqueceram nem do toque de inovação que sempre marcou a Strada. Agora ela é a primeira quatro portas do segmento.
Por fim, o preço está dentro do previsto. Há uma grande gama de opções, indo de R$ 63.590 a R$ 79.990, fora os opcionais. Até a versão antiga de 1998 vai continuar à venda por R$ 61.590. Afinal, tem gente quer só o básico para o trabalho.
Defender: alguma coisa se perdeu
Seu nome é a expressão máxima do fora de estrada. Logo, é impossível recriar um Defender sem que ele seja o bicho-papão das trilhas. E a Land Rover não decepcionou no suve recém-apresentado no Brasil. Ele atravessa alagados com 90 cm de profundidade e traz de série suspensão e tração 4×4 que se adaptam a qualquer tipo de terreno, além de vários outros recursos.
Se suas credenciais off-road são indiscutíveis, o mesmo não se aplica ao restante. Comecemos pelo preço. No Brasil, ele parte de R$ 400.750. É muito dinheiro para quem está mais preocupado em encarar trilha do que rodar no asfalto da cidade.
Existem no mercado opções mais baratas de 4×4 valentes. Inclusive dentro da própria Land Rover. Na Inglaterra, os fãs também estão chiando. O novo Defender começa em 40.000 libras (R$ 268.000), devido às doses elevadas de tecnologia e equipamentos. Muito acima das 23.000 libras (R$ 154.000) que custava a antiga geração em 2016, quando saiu de linha.
A essência de um Defender era seu desenho tipo caixote e os faróis circulares. Era assim desde que veio ao mundo, em 1948. Agora olhe para as duas gerações nas fotos acima e diga se um parece ser parente do outro. Perdeu a cara de durão do campo, ganhou um ar sofisticado de playboy de shopping.
Não vale alegar que carrocerias curvas e faróis mais complexos fazem parte da indústria atual. A Mercedes-Benz reformulou o jipão abrutalhado Classe G em 2018. Após 40 anos com faróis circulares e linhas quadradonas, ele foi todo reprojetado de modo que ficasse igual. Ao ponto de muita gente nem perceber a diferença.
Ironicamente, a Ford também acabou de resgatar uma lenda off-road. E sabe o que ela fez? Tudo o que a Land Rover não fez. É o que veremos a seguir.
Bronco: acerto triplo
Para os brasileiros, o Ford Bronco é um nome sonoro, mas sem significado. Para os americanos, é um clássico que emocionou gerações. Alguns defendem ainda que foi o pioneiro dos suves: em 1965, ele aliou conforto com robustez no fora de estrada. Até que se despediu em 1996, porque só tinha duas portas num mercado que exigia quatro.
O desafio atual da Ford é muito maior que o de Fiat e Land Rover. Fora do mercado há 25 anos, um novo Bronco poderia não falar ao coração do público mais jovem. Existe ainda o risco de precisar criar seu espaço no mercado a partir do zero, justamente no disputadíssimo segmento dos suves.
Tudo indica, no entanto, que a aposta arriscada deu certo: público e crítica nos EUA amaram. Todos os elementos estéticos do antigo Bronco estão lá. É impossível ver um e não pensar no outro.
A ousadia da Ford não ficou só no design. O espírito do suve original está ao longo de todo o conceito do projeto. Há três versões. O Bronco 2-portas e o 4-portas são destinados ao off-road: têm carroceria sobre chassi de longarinas, tração 4×4, reduzida e bloqueio de diferenciais. Já o Bronco Sport é maior, mais urbano, feito sobre o monobloco do Escape e traz tração 4×2.
Os preços também atraem: o Bronco 2-portas começa em US$ 28.500 (R$ 152.000), o 4-portas em US$ 33.200 (R$ 177.000) e o Sport em US$ 26.660 (R$ 142.000). E as versões mais caras podem custar o dobro – ainda não sabemos quanto ele custará no Brasil. É muito próximo do seu principal concorrente, o Jeep Wrangler.
Aliás, o Bronco foi idealizado para superar o lendário Wrangler. O curso da suspensão é 17% mais longo, há mais de 200 acessórios exclusivos e não faltou um câmbio manual. Pensaram até em teto e portas removíveis, que podem ser guardadas no porta-malas. As portas do Wrangler não cabem no interior e ainda levam junto os espelhos, que no Bronco ficam na carroceria.
Mais que um carro, ele foi concebido para ser um estilo de vida: o Bronco será uma marca própria. Por isso não vemos logotipos da Ford na dianteira ou no interior. A estratégia de um modelo virar uma marca é uma tendência atual, como vimos recentemente em Citroën (com a estilosa DS), Dodge (com as picapes Ram), Land Rover (com a luxuosa Range Rover) e Volvo (com a elétrica Polestar).
Desse modo, a Ford planeja criar um ecossistema Bronco, no qual todos sonham com a versão raiz, mas a maioria compra a versão Nutella. E, assim, o mercado inteiro fica feliz. Com exceção da concorrência.
ZC
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