A hegemonia da Mercedes-Benz na atual Fórmula 1 é reflexo de uma evolução constante da equipe, esta que fabrica o próprio chassi e o próprio motor. Com seis títulos consecutivos e mais um em vista para este ano, podemos dizer que é uma fase na categoria similar à da Ferrari com Schumacher.
Os motores fazem parte da equação que define os carros mais rápidos da categoria, e com um peso bem alto, andando lado a lado com a aerodinâmica. Sem entrar no mérito dos pilotos, a qualidade dos carros é um fator primordial na F-1 moderna.
Um caso que mostra como a evolução do motor de uma equipe pode dar um salto de desempenho e alavancar até mesmo um título mundial é o do motor Cosworth da Benetton de 1994, que deu a Michael Schumacher seu primeiro título.
A temporada de 1994 foi marcante em diversos aspectos, e o salto de qualidade da Benetton e da Cosworth foi um deles. Antes do título deste ano, o último motor Ford a ser campeão mundial foi nas mãos de Keke Rosberg em 1982, um ano após deixar a Equipe Copersucar Fittipaldi. Estamos falando de mais de dez anos de diferença, e um salto tecnológico enorme.
A Benetton de Flavio Briatore vinha numa ascensão desde o final dos anos 80, quando já conseguia somar pontos suficientes para ser a terceira equipe no mundial de construtores, com a dupla de pilotos Alessandro Nanini e Thierry Boutsen, apenas atrás da Ferrari e McLaren no mundial de 1988.
Desde o seu segundo ano de vida, em 1987, a equipe corria com motores feitos pela Cosworth, divisão de competição da Ford, mas que vinham perdendo competitividade frente aos Hondas, Ferraris e Renaults. Deixando a família DFV, extremamente vitoriosa no passado da categoria, a Cosworth lançou a família HB, uma geração mais moderna criada por Geoff Goddard, com o ângulo das bancadas do V-8 reduzido para 75°, comparado com os 90° dos DFV. A família HB foi usada de 1989 a 1993, não só pela Benetton, mas ela era a equipe “oficial” da Cosworth, ou seja, quem recebia primeiro as novidades e os pacotes melhores. Schumacher conseguiu sua primeira vitória na F-1 usando o Cosworth HB de 1992, quando venceu o movimentado GP da Bélgica.
Para a temporada de 1994, a Benetton traria o modelo B194, totalmente reformulado pelo trio formado por Ross Brawn, Rory Byrne e Willem Toet. Brawn era o diretor técnico da equipe, Byrne o responsável pelo projeto e Toet, o responsável pela aerodinâmica.
Até o momento, Byrne e Toet haviam trabalhado no projeto dos Toleman na F-1, que depois viria a ser comprada e se tornaria a equipe Benetton. Alguns anos de entrosamento nos mesmos projetos fizeram dos dois uma dupla de ótima qualidade técnica. As versões anteriores ao B194 já foram bons carros, com tecnologia embarcada similar a rivais como Williams e Ferrari.
A Cosworth lançava a nova gerações de motores, batizada de EC (modelo 75, referência ao ângulo das bancadas similar ao do seu antecessor), e também como Zetec-R em prol do nome comercial dos motores dos carros de passeio da marca americana, que alterava diâmetro e curso do antigo HB de 96,0 x 60,4 mm para 100,0 x 55,7 mm. Isto representava um motor com curso menor, capaz de girar mais. O deslocamento era de 3,5 litros e a potência passava de 710 cv para 750 cv a uma rotação de 13.800 rpm, 800 giros a mais que o anterior. O gerenciamento eletrônico fornecido pela Motorola era mais moderno, o carro foi todo ajustado para casar perfeitamente com o novo motor.
Para conseguir o bom salto de desempenho do HB para o EC, a empresa retrabalhou os cabeçotes e criou novas geometrias de pistão para melhor aproveitar o fluxo dos gases dentro da câmara de combustão. As altas rotações do motor eram alcançadas com o uso do sistema chamado PVRS (pneumatic valve return system), que é o retorno pneumático das válvulas de admissão e escapamento, substituindo o tradicional retorno mecânico por molas metálicas. Um revestimento cerâmico foi aplicado na câmara de combustão na região do assentamento das válvulas.
A Benetton, dentre as equipes com maiores chances de vitória, era a única a utilizar a configuração de motor V-8. A Williams corria com os motores Renault V-10, a McLaren com o Peugeot V-10 e a Ferrari, com o tradicional V-12. Mesmo um pouco defasado em potência comparada com as equipes citadas, o V-8 tinha a vantagem de ser mais leve e consumir um pouco menos combustível.
O carro foi trabalhado por Willem Toet em CFD (do inglês dinâmica dos fluidos computacional) e túnel de vento, trazendo alguns recursos de aerodinâmica que mais tarde seriam praticamente padrão em todos os carros do grid. O bico alto apelidado de tubarão não era uma novidade em 1994, mas foi aprimorado ao ponto de se tornar um padrão na categoria. A asa dianteira tinha componentes diferenciados, aproveitado ao máximo o espaço disponível pelo regulamento, enquanto que a asa traseira tinha elementos complexos e curvos na parte inferior, que trabalhavam em conjunto com o extrator de ar do assoalho.
Como uma temporada de F-1 cheia de surpresas não poderia faltar uma boa polêmica, e no caso, era com a Benetton. Logo nas primeiras corridas, foi levantada a hipótese de que o B194 tinha algum sistema de controle de tração, banido da categoria na temporada em vigor. Vale lembrar que os anos anteriores foram marcados pelos Williams repletos de aparatos eletrônicos, e para nivelar o desempenho dos carros (e os orçamentos disponíveis) a FIA proibiu tais recursos.
Alguns pilotos, Senna entre eles, diziam que o Benetton tracionava bem demais para um carro sem nenhum tipo de auxílio. A polêmica perdurou por muito tempo, mas o B194 manteve-se como era o ano todo. A equipe foi pega numa tramoia durante os reabastecimentos, onde o filtro da mangueira de combustível era retirado para teoricamente dar mais vazão ao combustível, fazendo com quem as paradas fossem mais rápidas, mas isto não resultou em nada demais para a equipe e para Schumacher.
Até hoje é discutido se a Benetton estava ou não com um sistema legal rodando no carro. O que se sabe, pelo menos o que é público, é que havia um sistema de controle do motor que fazia o papel de um controle de tração, mas pelo regulamento, não seria. Vamos explicar.
O regulamento dizia que não era permitido o carro ter um controle ativo que gerenciasse a tração, no caso tradicional comparando a rotação das rodas com parâmetros do motor e transmissão. É como um controle de tração funciona, ele compara a rotação das rodas tracionadas com a das rodas não tracionadas por meio de sensores e parâmetros do motor, e caso o sistema entenda que as rodas tracionadas estão girando mais do que deveriam, atua para reduzir a ação do motor e as rodas voltarem a ter tração.
O que foi identificado é que havia um sistema que cruzava as informações de rotação do motor e dados da admissão de ar (pressão) que foram mapeados para que o sistema entendesse em qual marcha o carro estava, uma vez que era proibido qualquer forma de alimentação de informações de marcha selecionada para o motor. Quando o motor está em uma marcha mais baixa, ele gera determinada carga de trabalho por conta da variação de velocidade de rotação (podemos chamar de aceleração de rotação) que é diferente do mesmo conjunto numa quinta marcha. É só pensar como o motor sobe de giro em primeira e em quinta marcha de formas diferentes.
Com essas informações em mãos, os engenheiros conseguiam fazer um mapa de aceleração do motor o mais próximo do ideal possível. A dificuldade é que o sistema tinha que ser calibrado a cada evento na pista, pois dependia das condições atmosféricas, da aderência dos pneus com o solo, do peso do carro com mais ou menos combustível. Era um cálculo complexo, mas que não envolvia os sensores de roda e da transmissão que eram proibidos pelo regulamento.
Quando o motor trabalhava com este mapa otimizado em funcionamento, caso ultrapassasse a rotação definida pelo mapa, a ignição sofria um corte e o motor voltava à rotação especificada. Assim as rodas recuperam a tração e o carro acelera de forma mais rápida. O único problema, além da dificuldade de ter que ser calibrado a toda sessão de pista, era que não podia ser usado constantemente, sob o risco de danificar o motor. A Cosworth, ao que parece, não gostou muito deste recurso, justamente por poder quebrar o motor se muito usado, e quem teria que dar explicações seriam ela.
A discussão foi longa, outras equipes brigaram até o final da temporada, e depois dela, para que a FIA averiguasse o sistema de controle do carro e punisse a Benetton, mas não aconteceu. A FIA foi sim verificar o carro, mas não encontraram nada que ferisse as regras do regulamento. Como o suposto sistema de controle de tração descrito no regulamento, com sensores eletrônicos e realimentação do gerenciamento do motor, não estava presente, concluíram que o carro não tinha controle de tração (pela definição do regulamento), e o B194 permaneceu lícito até hoje.
Foi o último ano que a Cosworth conseguiu emplacar um título mundial na Fórmula 1, e foi o primeiro dos sete títulos de Schumacher. O modelo EC foi capaz de fazer jus ao nome Cosworth e retomar à glória dos tempos do DFV. No caso do B194, mais uma vez, quem soube melhor interpretar o regulamento teve mais chances de vencer.
MB