Eu soube deste VW Fusca 1949 numa troca de mensagens com um amigo, Marcelo Bahia. Ele fez uma ponte com um amigo dele, o Ednúbio Vasconcelos, que falou de mim para o Jorge Cirne. E, finalmente, eu acabei entrando em contato com o Jorge que será o herói desta matéria, juntamente com o seu VW Fusca 1949.
O contato com o Jorge Cirne foi muito gratificante e ele foi muito colaborativo, disto resultando o que vamos ver a seguir.
O Jorge começou nosso contato falando um pouco sobre o seu carro: “É um carrinho bem interessante e pelo que me consta existem três no Brasil, e o meu é de fevereiro de 1949. Parece que em Brasília tem um de julho de 1949 e outro em Minas, que é um de outubro de 1949. Ou é o contrário, não sei bem. Mas ainda não vi nem documento nem foto destes carros e não sei dizer se são lendas urbanas que o pessoal acaba criando. Ou seja, não sei bem qual é a história desse outros dois carros, o que sei é que o meu carro está todo documentado, está tudo direitinho”.
O Jorge, na verdade é um grande colecionador de carros. Ele tem um VW Fusca de cada década e muitos outros carros de várias procedências. Ele fala assim de sua coleção: “É uma coleção bem eclética, composta de carros nacionais, europeus e americanos. Enfim, é uma coleção bastante eclética mesmo”.
Mais adiante na matéria o Jorge vai se apresentar e vocês poderão ver amostras desta coleção, adiantando mais uma informação: são mais de 100 carros!
Mas o foco desta matéria é o VW Fusca 1949 dele e como ele foi encontrado, resgatado, e, finalmente, restaurado em alto padrão.
Como o carro foi adquirido
Como colecionador o Jorge já tinha desenvolvido uma intuição para raridades. Foi quando apareceu um motor VW 1100 (1.131 cm³, 75 x 64mm, 25 cv) para vender no Mercado Livre e ele logo se interessou, pois não tinha nenhum carro com este motor. Por outro lado, ele já tinha um Fusca Split Window 1953 e um 1955 Oval.
Naquele tempo o Mercado Livre permitia que se entrasse em contato com os vendedores. Foi o que ele fez e acabou arrematando este motor. Aí um amigo dele perguntou para que ele queria este motor, já que não tinha o carro correspondente. No que o Jorge respondeu: “Eu vou restaurá-lo e deixá-lo como decoração na minha oficina”.
Após ter arrematado o motor no leilão do Mercado Livre, o Jorge questionou o vendedor do motor, seguindo-se este diálogo:
Jorge: “E aí rapaz. Onde foi que você conseguiu este motor?”
Vendedor: “Ah, eu tenho um Fusca 1949”.
O Jorge não acreditou e perguntou:
“Rapaz, você tem um Fusca 1949?”
Vendedor: “É!”
Jorge: “Mas você está tirando o motor do carro?”
Vendedor: “Olha, é que eu estou precisando de dinheiro”.
Ele era de uma cidadezinha perto de Florianópolis, em Santa Catarina.
Jorge: “E o motor é do carro?”
Vendedor: “É do carro sim. Tem a documentação provando isto”.
No que o vendedor confirmou que estava precisando de dinheiro e que tinha outro motor, um 1200 (1.192 cm³, 77 x 64 mm. 30 cv) que ele ia colocar no carro para ficar rodando. Ele trabalhava numa oficina. A esta altura o Jorge, já agoniado, disse:
“Rapaz, não faz isso não, me vende o carro!”
Vendedor: “Ah, não vou vender não. Não vou vender agora…”
Passaram-se meses e meses. Todo mês o Jorge ligava para o tal camarada insistindo para que ele vendesse o carro. Num belo dia o vendedor ligou dizendo que tinha colocado o carro no Mercado Livre para leilão.
No que o Jorge retrucou:
“Rapaz, tira do leilão, veja quanto você quer e me fala que eu tenho interesse de ficar com o carro”.
Mas o vendedor foi inflexível e disse: “Me deixe ver quanto vai dar no leilão”.
Resumindo, o Jorge conseguiu arrematar o carro, mas isto envolveu momentos de grande tensão. Ele estava no aeroporto, em trânsito de São Paulo para Salvador. O voo estava partindo e seu nome estava sendo chamado pelos alto-falantes do aeroporto.
O Jorge e seu filho, em uma LAN-House que havia ali no aeroporto, estavam conectados no leilão daquele carro que estava em pleno andamento no Mercado Livre. O Jorge estava decidido a arrematar o carro e conseguiu no último segundo!
Enfim chegou a hora da verdade — o carro chegou a Salvador, e estava muito ruim, mas ruim mesmo! Foi a hora da decepção para o Jorge que já tinha visto as fotos do carro e de sua plaqueta que tinham sido enviadas por e-mail pelo vendedor, mas a realidade foi avassaladora. Seguem-se as fotos do carro que o Jorge tinha recebido:
O Jorge acabou se decepcionando, o carro estava muito ruim. Para se ter uma noção do seu estado, ele tinha pedaços refeitos com tecido, com lona, tapando buracos. A lona tinha sido colocada sobre os buracos e depois tinha recebido uma cobertura de massa plástica.
A restauração começa
Passado um tempo, o Jorge foi falar com o Carlos, seu chapista como os funileiros são chamados na Bahia, ou lanterneiros, no Rio de Janeiro. Ele disse ao Carlos: “Vamos ver se a gente consegue ir fazendo esse carro devagarzinho”. E assim foi feito e o carrinho foi tomando forma. Abaixo algumas fotos do trabalho de funilaria:
O Jorge disse que o carro, assim como um todo, estava muito original, muito original mesmo. Tinha muita ferrugem sim. Tinha muito amassado e muita coisa ruim do carro. E aí eles foram fazendo o carro, reconstruindo-o todinho. E quando o Jorge viu que a carroceria ficou boa, ele disse: “O carro dá para aproveitar sim, nada que assuste muito”. Aí ele começou a ir em busca das peças faltantes.
O próximo passo foi preparar para a pintura, deixando todas as superfícies lisinhas, como mostram as fotos destes preparativos:
Perguntei ao Jorge como foi que ele determinou a cor com a qual o carro seria pintado. Ele me disse que ao tirar as várias camadas de tinta que o carro tinha, chegou a áreas na cor bordô o que acabou definindo a cor. Abaixo algumas fotos da pintura:
Os trabalhos na restauração levaram quatro anos. O Jorge é um empreendedor da área de hotéis e motéis (também em transporte por helicópteros, sendo que ele também os pilota). Em um de seus estabelecimentos ele tem várias oficinas onde são fabricados até móveis. Ele usou a estrutura de que dispõe para esta restauração. Inclusive para os trabalhos de tapeçaria e estofamento. O tecido do estofamento é alemão e ele o conseguiu através de um outro colecionador que ia reformar um 1950 e o passou para o Jorge.
Perguntei ao Jorge sobre a difícil aquisição das peças, no que ele respondeu: “As peças eu fui garimpando, comprei peças fora, na Alemanha, no eBay… Aí fui buscando comprando as coisas: pneus, bananinhas, faróis — tudo VW direitinho. Inclusive o painel dele tem escrito o mesmo ano dele 1949 atrás, foi um achado. Então, fui comprando a manivela ‘para pegar na mão’, enfim todas essas coisas”.
Enfim, o carro ficou pronto e as fotos abaixo falam por si sobre a qualidade da restauração e das peças que foram compradas para completar a sua originalidade:
A origem deste carro
Sua origem, como e quando ele veio para o Brasil, permanecem uma incógnita.
Este foi um dos aspectos sobre o qual eu troquei ideias com o Jorge. Escrevi para ele dizendo que uma coisa que seria interessante — se bem que pode ser uma missão impossível — é descobrir como e quando este carro veio para o Brasil. Ele pode ter vindo depois de 1950 como um carro usado de algum imigrante.
Quando eu morei em Porto Alegre, ainda menino, fim da década de 50, meu pai trabalhou numa multinacional e ele tinha dois colegas alemães que tinham trazido seus Fuscas usados para andar pelo Brasil. Um deles era de duas janelinhas, mas acho que era 1952, o outro já era oval. Sei de “lendas urbanas” de padres alemães que também trouxeram seus Fuscas para o Brasil, em especial para o sul. “Você acha que existe alguma chance de a gente deslindar este mistério?”, perguntei-lhe.
O Jorge me respondeu assim: “Eu, na época, conversando com o vendedor do carro, quando o carro chegou, perguntei a ele: ‘Rapaz, me conta a história desse carro”. Ele disse: “Ah, eu não sei, eu comprei de um amigo, e o amigo o comprou numa outra cidade aqui do interiorzão de Santa Catarina. E aí este carro veio parar aqui perto de Florianópolis”. E o Jorge continuou: “Aí que eu não consegui a história desse carro. Tentei muito descobrir este mistério, mas não consegui. Acredito, eu também, que deve ter vindo aí trazido por alguém, porque há estes relatos, como você contou, de um ‘Fusca do padre'”.
“Eu tenho um Fiat 126 aqui também. Aquele pequenininho que um padre trouxe da Itália e aí rodou com o carro e depois de um ano tinha que legalizar o carro ou o carro teria que voltar para Itália. Ele foi na polícia federal e não conseguiu legalizar, depois foi ele que não quis legalizar mais o carro e o guardou no porão da igreja. E eu resgatei este carro, peguei a documentação fui lá e consegui legalizar o carro todinho e o carro está comigo. Então realmente tem umas histórias assim, não é? É isso mesmo, mas eu juro que pelejei para descobrir, mas não consegui não.”
Mesmo a Certidão de Nascimento do carro, expedida pelo Auto Museum Volkswagen de Wolfsburg, na Alemanha, a partir de seu número de chassi, no quesito “País de destino” indica: “Não mencionado”.
É um fato marcante que o Jorge, mesmo sendo uma pessoa muito ocupada e um grande colecionador, com muitos carros que necessitam de sua atenção, acabou dedicando tanto tempo, esforço e recursos para resgatar este carro que acabou sendo “salvo por seu motor”.
Jorge Cirne fala sobre ele
“Vamos lá, é difícil falar de si mesmo, mas eu vou falar. Bom. Estou com 59 anos. Vou fazer 60 anos em setembro. Sou capixaba, já estou na Bahia, há 30 e tantos anos. Comecei a colecionar carros já tem quase 20 anos e desde criança sempre gostei de automóvel. Sou capixaba, mas fui criado praticamente no Rio de Janeiro, a família por parte de mãe era do Rio. E aí comecei a trabalhar muito cedo virei empresário do ramo hoteleiro, motel com hotel, e outras atividades também.”
“Como eu disse, já estou na Bahia aí há quase 40 anos, vim cedo para cá, me casei cedo também, tenho três filhos. Sou piloto também, gosto de pilotar helicóptero, a gente mexe com helicóptero também.”
O Jorge é realmente um grande aficionado por automóveis, tanto que quando ele construiu a sua casa a projetou de tal maneira que ele pode colocar carros de sua coleção na sala, e isto em rodízio, pois há uma grande porta convenientemente disposta que dá acesso à sala. Alguns exemplos:
A coleção dele não para de crescer e ela fica em várias localidades. Uma delas foi especialmente construída para abrigar seus carros de coleção no estilo de um museu particular e na parede do fundo deste galpão há uma pintura em estilo grafitti alusiva a carros:
Para se ter uma visão parcial desta grande coleção eclética, veja o vídeo (04:03):
Atualmente a coleção do Jorge, a “Cirne’s Collection”, fornece carros para vários tipos de atividades, como o clipe da Ivete Sangalo, ou a novela “Velho Chico” na qual o Rodrigo Santoro andou num Karmann-Ghia conversível vermelho. Muitos dos carros da coleção são requisitados para casamentos como um Rolls-Royce, e assim por diante. Isto acaba contribuindo com a manutenção deste importante acervo.
Aqui cabe meu agradecimento ao Marcelo Bahia e ao Ednúbio Vasconcelos, e um agradecimento muito especial ao Jorge Cirne pelas informações e pela simpática maneira que nossos contatos por telefone e em especial por WhatsApp se desenvolveram.
De tudo que vimos nesta matéria o que foi mais marcante e importante para mim foi o resgate de um raro Fusca 1949 que certamente teria um fim inglório não fosse o incrível trabalho capitaneado pelo Jorge.
AG
NOTA: Nossos leitores são convidados a dar o seu parecer, fazer suas perguntas, sugerir material e, eventualmente, correções, etc. que poderão ser incluídos em eventual revisão deste trabalho.
Em alguns casos material pesquisado na internet, portanto via de regra de domínio público, é utilizado neste trabalho com fins históricos/didáticos em conformidade com o espírito de preservação histórica que norteia este trabalho. No entanto, caso alguém se apresente como proprietário do material, independentemente de ter sido citado nos créditos ou não, e, mesmo tendo colocado à disposição num meio público, queira que créditos específicos sejam dados ou até mesmo que tal material seja retirado, solicitamos entrar em contato pelo e-mail alexander.gromow@autoentusiastas.com.br para que sejam tomadas as providências cabíveis. Não há nenhum intuito de infringir direitos ou auferir quaisquer lucros com este trabalho que não seja a função de registro histórico e sua divulgação aos interessados.
A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.