O ano era 1970, o Fusca estava vendendo mais de 140 mil unidades por ano, com tendência crescente de vendas, quando o então presidente da Volkswagen do Brasil, Rudolf Leiding, decidiu que era chegado o tempo de ampliar a linha de automóveis oferecidos pela fabricante. Segundo os parâmetros definidos por ele, o novo produto deveria ser um carro pequeno ou um utilitário e transportar uma família com relativo conforto. Sua construção seria feita a partir do chassi do Fusca. Ou seja, um carro popular que fosse grande por dentro e pequeno por fora, que deixasse cinco ocupantes à vontade, sem apertos.
Este conceito tinha surgido com sucesso na Europa há algum tempo, e agora deveria ser aplicado no Brasil. Fazendo a leitura destas definições básicas podemos ver que havia uma preocupação de manter a boa qualidade do Fusca sob uma roupa nova.
Tanto na Alemanha, onde o Fusca ainda era fabricado, como no Brasil, havia as correntes dos pró Fusca e daqueles que eram contra. O mercado é que segurava o Fusca, pois a corrente daqueles que eram contra o carro, por achá-lo muito antiquado, tornava-se cada vez maior. Daí a preocupação de Leiding de manter o mercado para a fabricante sem abdicar da vitoriosa mecânica do Fusca, muito adequada para países em desenvolvimento, que tinham uma estrutura viária incipiente.
Outra meta, além de poder substituir o Fusca, era poder aproveitar a linha de montagem da fábrica. A Volkswagen do Brasil contava com um grande talento em seu departamento de design, seu nome é Márcio Piancastelli. Ele recebeu de Leiding a incumbência de projetar este carro novo.
Na foto de abertura vemos Márcio Paincastelli e uma maquete do VW Brasília. Quando eu estive na casa dele ele me contou que esta foi a criação que ele mais gostou, sem desprezar os outros carros que ele desenvolveu. Ele já estava bem doente e viria a falecer pouco tempo depois.
Piancastelli nasceu em Belo Horizonte, MG, de onde saiu com a ideia de se tornar um arquiteto. Veio para São Paulo, capital do Estado de mesmo nome, onde a uma certa altura decidiu participar de um concurso de desenho de automóveis, do qual foi um dos vencedores. Um dos prêmios que recebeu, então, foi uma viagem à Itália onde ele pôde participar de um estágio no afamado Estúdio Ghia de Design.
Quando voltou da Itália, com sua carreira direcionada para a indústria automobilística, ele já estava empregado pela Willys-Overland do Brasil, uma fabricante americana que era a única que naquela época possuía um departamento de design e estilo próprio no Brasil. Piancastelli trabalhou na Willys-Overland por três anos e participou do desenvolvimento do desenho do primeiro automóvel, o Corcel, que chegou à linha de produção em 1968.
Naquela oportunidade a Willys-Overland já havia sido adquirida pela Ford. Logo em seguida ele foi convidado para integrar o então recém-criado departamento de estilo da Volkswagen do Brasil, onde trabalhou por 28 anos.
O projeto do Brasília levou três anos para ser concluído. Foram feitos mais de 40 desenhos antes da definição da forma que foi para produção em 1973. Juntamente com Piancastelli, José Vicente Martins, o “Jota” — como prefere ser chamado — e George Yamashita Oba, compuseram o time que trabalhou no desenvolvimento do Brasília.
Em catálogos e publicações na imprensa especializada um desenho em raio-x mostrava detalhes construtivos do carro:
O primeiro desenho do Brasília foi bastante avançado para a época e apresentou um conceito chamado anos depois de “minivan”; mesmo assim já tinha características que lembravam o modelo definitivo.
O conceito avançado empregado no projeto do Brasília, de um lado ampliou o espaço interno, e de outro, acabou determinando que o motor fosse alojado dentro do carro. Foi a maneira que Piancastelli encontrou para otimizar o espaço útil definido pelas dimensões pré-determinadas do chassi do Fusca. Disto resultou a necessidade do desenvolvimento de um bom isolamento acústico para o carro, que em suas primeiras séries deixou um pouco a desejar. O estilo definido por Piancastelli, derivado de seu esboço inicial, apresentou uma característica que marcou os produtos da Volkswagen do Brasil, e que foi inclusive empregado em modelos alemães posteriores: a definição da nova aparência da parte da frente dos veículos da fabricante no Brasil, com a moldura dos faróis trapezoidal.
Em 1972, com o projeto do Brasília em franco andamento, passou a ser necessário iniciar os testes de campo do novo carro, mas na indústria automobilística o segredo é a alma do negócio, sendo defendido custe o que custar. Para não deixar transparecer a nova forma que o Brasília teria, seus componentes mecânicos foram testados numa mula, uma espécie de “Mini-Variant”.
Para tanto algumas Variants, mesmo mais antigas, foram encurtadas de maneira a ficarem com o comprimento de 401 cm, exatamente o futuro comprimento do Brasília. Estes protótipos de mentira receberam o motor alto que equiparia o Brasília, e que substituiu nos testes o motor plano que era o original na Variant.
A revista Quatro Rodas, que era conhecida por caçar protótipos sendo testados pelas estradas do Brasil, conseguiu fotografar algumas dos tais “Mini-Variants”, e em sua edição de março de 1972 publicou um longo artigo onde usou toda a sua criatividade para descrever o que eles achavam iria ser o novo carro da Volkswagen.
Até que eles acertaram muitas das características do futuro Brasília, mesmo tendo, naquela oportunidade, sido enganados quanto à forma deste novo produto da fabricante. Quando já não era mais possível esconder a forma do Brasília, e os primeiros protótipos “definitivos” foram para a rua, os mesmos também vieram a ser flagrados pelos astutos detetives repórteres da revista Quatro Rodas, somente que, nesta oportunidade, quase ocorreu uma tragédia.
Em maio de 1973, os guardas de segurança da Volkswagen, ao perceberem que os ocupantes de um Fusca haviam fotografado os secretíssimos protótipos do Brasília, perseguiram o carro por mais de sete quilômetros, obrigaram-no a parar, encostaram um revólver na cabeça do fotógrafo, destruíram a sua máquina fotográfica e atiraram no carro. Mas as fotos foram salvas e publicadas. A revista teve até bom humor ao declarar que: – “o Brasília até é bem bonito”.
As fotos foram feitas pelo então jovem Cláudio Larangeira, que havia sido contratado para aquele trabalho somente, Quando percebeu que estava sendo perseguido, Larangeira tratou de tirar o filme da câmera, ele sabia que a primeira coisa que os seguranças fariam seria destruir seu equipamento. A revelação do Brasília rendeu-lhe um contrato definitivo de trabalho na Quatro Rodas (Editora Abril), onde trabalhou até 1994 Hoje continua na ativa como free-lancer, inclusive para a Quatro Rodas.
Nestes testes de campo, o Brasília provou suas excelentes características de dirigibilidade em terrenos acidentados, ao vencer o desafio de trafegar pelo inferno de buracos e lama que era representado pela então recém-construída rodovia Transamazônica. Nestas provas, uma das características marcantes do carro ficou evidente: a robustez, que faz do Brasília um verdadeiro jipe, capaz de passar pelos terrenos mais acidentados. Isto graças à sua robustez mecânica e chassi liso por baixo e sem a protuberância da carcaça de diferencial, que facilitava a passagem pelos atoleiros e terrenos ruins. Aliás, isto já era de se esperar de um parente próximo do Fusca, originalmente possuidor destas qualidades mecânicas e de excelente dirigibilidade em condições difíceis, características que vieram a ser herdadas pelo Brasília.
O Brasília é lançado oficialmente em 8 de junho de 1973. Seu motor era o mesmo que havia sido usado no carro VW 1600 4 Portas Sedã, apelidado pelo público de “Zé do Caixão, então já fora de linha].
Tratava-se de um motor arrefecido a ar, com turbina de arrefecimento alta e 1.584 cm3, originalmente derivado do motor do Fusca. Os carros foram fabricados em São Bernardo do Campo. O Brasília, principalmente na versão de quatro portas, foi exportado para vários países da América do Sul, Portugal, Angola e Nigéria.
A evolução das vendas do Brasília no mercado brasileiro foi a seguinte:
1973 – 34.321
1974 – 82.893
1975 – 111.903
1976 – 133.003
1977 – 149.907
1978 – 157.700
1979 – 150.614
1980 – 88.320
1981 – 20.144
1982 – 2.400
A produção do Brasília atingiu 1.064.416 unidades, sendo que 133.212 foram destinadas à exportação. Esta aceitação de um carro desenvolvido integralmente no Brasil foi marcante, sendo que, depois do Fusca, o Brasília teve o privilégio de ter sido o primeiro carro brasileiro a superar a marca de um milhão de unidades produzidas. O sucesso do carro foi grande e ele permaneceu sendo fabricado até 1982. O Brasília foi o décimo-quarto carro que a Volkswagen deixou de fabricar até então, e, certamente, foi um dos que mais deixou saudade entre os seus fiéis consumidores brasileiros e, também, entre vários consumidores d’além mar.
Foi um sucesso absoluto logo de início, embora, muitos concessionários da região do Rio de Janeiro ficassem reticentes quanto àquele carro que “não era um Fusca”, como me contou Bob Sharp, na época concessionário VW e presente à convenção de lançamento para a região no Hotel Nacional Rio. Ele disse que chegou a comentar com seus pares ali presentes que eles não sabiam o que estavam dizendo, pois o carro estava fadado ao sucesso — o que de fato aconteceria.
Em agosto de 1978 é lançada, no mercado brasileiro, a versão quatro portas:
Com só um carburador e acabamento despojado, fez sucesso no Brasil só entre os taxistas, frotistas, pois naquela época o usuário brasileiro não tinha a cultura do carro com quatro portas. O modelo quatro-portas foi uma exigência dos mercados de exportação, principalmente Portugal, Angola e Nigéria — e, na verdade, já existia para exportação desde 1977.
Uma das primeiras carrocerias de Brasília sendo fabricada na Fábrica Anchieta em São Bernardo do Campo, SP, em 1973:
Um lote de Brasílias quatro-portas aguardando embarque no porto. Todos os carros ostentam o conhecido adesivo “Made in Brazil” no vidro traseiro. A produção destes Brasílias de quatro portas para exportação começou antes da liberação deste modelo para o mercado nacional:
Abaixo detalhe da parte final da linha de montagem do Brasília, em 1979. Neste ponto os carros já estavam prontos tanto que os faróis já podiam se ligados, dando início aos testes finais de fabricação:
Também existiram modificações de Brasílias, como este Baja-Brasília transformada para “fora-de-estrada” com o kit da Firma Matis, da capital de São Paulo. Este modelo foi apresentado no Salão do Veículo Fora-de-Série realizado em março de 1986 em São Paulo. Uma curiosidade deste salão foi o largo uso do chassi Volkswagen com motor “a ar” nos carros apresentados. Assim foi o caso dos “Bajanetes” da Menon Veículos, do “Jipe Commander” da Commander, “Bugres” e vários modelos de “Baja”, que são Fuscas modificados para andar na areia.
Segue o primeiro teste do Brasília feito por Heitor Feitosa, Luiz Fernando Terra Smith e Marcelo Tomé, para a revista Autoesporte de junho de 1973. Um documento interessante que mostra o impacto que este carro causou quando de seu lançamento. Material enviado por Fábio von Sydow Fábrega Loureiro, do Rio de Janeiro (Fonte: Revista Autoesporte de junho de 1973)]
Adiante uma das primeiras propagandas oficiais do Brasília, que foi pesquisada pelo Fábio von Sydow Fábrega Loureiro:
O Brasília também foi montado a partir de CKD’s brasileiros em Nigéria, onde era chamado de Igala. Já no México o sucesso dos Brasílias montados a partir de CKD foi tão grande que foi liberada a fabricação por lá na fábrica de Puebla.
Fecho a matéria com a foto da réplica da talvez mais famoso Brasília do Brasil que foi o Brasília amarelo do conjunto Mamonas Assassinas, tragicamente vitimado em um acidente aéreo em março de 1996:
Houve uma esperança de que o Brasília continuasse a ser produzido, mas com um motor dianteiro arrefecido a água e tração dianteira — que seriam cedidos pelo Passat. Foi feito um estudo que chegou à fase de um protótipo operacional, ou seja, um Brasília com a parte da frente de um Passat, e os resultados operacionais foram excelentes. Mas acabou não sendo dada luz verde para esta alternativa. O Piancastelli me disse que o protótipo tinha ficado excelente e que ele havia antevisto um grande sucesso para ele.
Este é um assunto que merece uma pesquisa mais aprofundada e talvez uma matéria dedicada.
Esta matéria se baseou no capítulo sobre o Brasília de meu primeiro livro: “EU AMO FUSCA A história brasileira do carro mais popular do mundo“, que recebeu algumas fotos coloridas, que no livro saíram em branco & preto. Novas fotos e alguns esclarecimentos adicionais foram acrescentados.
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