Recentemente eu participei de um podcast, a convite do Alexandre Gastaldo Badolato, que é o dono do canal, e do Walter Martins Pereira Júnior. O assunto era a História do Fusca. A certa altura este assunto veio à baila e eu achei interessante colocá-lo em uma matéria aqui na minha coluna.
Invenção
Vamos começar pelo conceito, conforme rubrica do Direito Industrial: invenção é toda a criação humana “inédita” que possa ser aproveitada industrialmente. O problema fica por conta da palavra “inédita”!
Primeiramente é importante que se encontre a definição correta para “invenção” e “desenvolvimento” de uma ideia, projeto, etc. Ocorre que, na prática, as patentes não existem somente para registrar “invenções”, mas também acabam registrando o que na verdade são “soluções e desenvolvimentos específicos”, como o canivete suíço da Victorinox, variações sobre um mesmo tema.
Em matéria de automóvel, o triciclo de Benz merece ser chamado de “invenção”, pois foi patenteado em 29 de janeiro de 1886:
Pois é, a maioria dos veículos é resultado de desenvolvimentos que utilizam ideias básicas existentes e que podem incorporar algumas invenções específicas para seus componentes. Mas este é um assunto bastante controverso.
A senda do Fusca não foi diferente; o grande diferenciador foi a competência de Porsche e de sua fantástica equipe no desenvolvimento de um projeto que atendeu aos parâmetros técnicos requerido pelo III Reich e que depois foi considerado como modelo de perfeição por muitos e cujo sucesso na prática, através da quantidade de carros vendidos, comprova este fato. A meu ver não cabe afirmar que o VW Fusca foi um invento.
Porsche fez tudo sozinho?
Aqui vamos falar, em especial, da fase em que Ferdinand Porsche se tornou independente após curto período na Steyr, na Áustria, e na qual ele acabou recebendo o contrato para desenvolvimento do “Carro do Povo” oficial do III Reich. Pois, de um lado, o nome Volkswagen foi encampado pelo governo da época, e de outro lado, vários fabricantes afirmavam ter os seus carros populares, como mostra a ilustração abaixo (e acabaram sendo proibidos de usar o nome Volkswagen):
Era preciso coragem e autoconfiança para se estabelecer por conta própria naqueles tempos difíceis. Ferdinand Porsche demonstrou ter ambos em plena medida quando fundou seu escritório de projetos em Stuttgart em meio à Grande Depressão.
A empresa “Dr. Ing. h.c. F. Porsche Gesellschaft mit beschränkter Haftung, Konstruktion und Beratung für Motoren und Fahrzeug” – Dr. Ing. h.c. F. Porsche Ltda. Projeto e Consultoria para Motores e Veículos, com sede na rua Kronenstraße 24 em Stuttgart, foi inscrita no registro comercial em 25 de abril de 1931. O escritório seria o precursor da atual Porsche AG e a origem do desenvolvimento de clientes da Porsche, ambos operando sob a égide da Porsche Engineering Group GmbH desde 2001.
Antes de se estabelecer em Stuttgart com sua própria empresa em 1931, aos 55 anos de idade, Ferdinand Porsche foi responsável pelo desenvolvimento de modelos pioneiros em fabricantes de automóveis líderes, incluindo a Daimler-Motoren-Gesellschaft em Stuttgart (Daimler-Benz AG a partir de 1926, resultado da fusão com a Benz & Cie. de Karl Benz), por quase um quarto de século.
Antes de fundar sua firma de projetos em Stuttgart, onde montou sua equipe de técnicos e engenheiros experientes, no seu breve período com a Steyr Porsche chegou a projetar um veículo, o Steyr Tipo 30.
Quase todos eles o seguiram de antigos locais onde tinham trabalhado juntos. Eles estavam entre os melhores de seu tempo. O engenheiro-chefe Karl Rabe, por exemplo, que se tornou o braço direito de Porsche como designer-chefe. Ou o especialista em transmissões Karl Fröhlich; o especialista em motores Josef Kales; o desenvolvedor de carrocerias Erwin Komenda; o multitalento especialista em motores, suspensões e aerodinâmica Franz Xaver Reimspiess; e o especialista em direção e suspensão Josef Zahnradnik.
O filho de Porsche, Ferdinand “Ferry” Anton Ernst Porsche, também estava neste grupo. Mesmo quando criança, ele foi inspirado pela engenhosidade de seu pai: “Ele estava sempre vendo novos horizontes”, Ferry disse mais tarde, “e sempre criando automóveis que estavam à frente de seu tempo”.
Abaixo mais uma foto que demonstra o trabalho em grupo entre Ferdinand Porsche e seu grupo de engenheiros:
Ferdinand Porsche já era um personagem bem estabelecido quando fundou seu escritório, mas também teve que lutar por encomendas durante a Depressão. Os salários dos 19 empregados iniciais geralmente consistiam em hospedagem e alimentação, nada mais.
A Wanderer, com sede em Chemnitz, estava entre os primeiros clientes, ela pertencia ao grupo da antiga Auto Union. A equipe de Porsche desenvolveu um sedã de médio porte completo que mais tarde entraria em produção em série como o Wanderer W21/22, bem como um motor de seis cilindros em linha para aquele fabricante saxão.
Seguiram-se trabalhos de desenvolvimento para outros fabricantes de chassis e elementos de direção. Era uma grande vantagem que a equipe tecnicamente competente de Porsche cobrisse todo o espectro da tecnologia veicular, sempre motivada pelas ideias de seu líder. “Ferdinand Porsche não era um homem estudioso”, escreve o historiador Wolfram Pyta, “mas um técnico, movido por um fervor incansável na busca contínua da solução técnica ideal”.
O grande avanço veio no início de 1933 da recém-fundada Auto Union AG, de Chemnitz na Saxônia: a Porsche foi contratada para projetar um tipo completamente novo de carro de corrida. O trabalho foi fruto de muitos anos de discussões. Na época, era a tarefa mais exigente que um projetista de veículos poderia realizar. A nova fórmula de Grande Prêmio limitou o peso dos carros de corrida a 750 kg, mas estabeleceu poucas restrições técnicas. Originalmente apelidado de carro de corrida P — “P” de Porsche — o design provaria ser um golpe de gênio.
O lendário Flecha de Prata da Auto Union ostentava um motor de 16 cilindros montado diretamente atrás do piloto para uma distribuição ideal de peso, uma construção que ainda é bem-sucedida no automobilismo nos dias de hoje. O automobilismo “lançou as bases para a rápida ascensão” da empresa, observa o historiador Pyta. A importância deste contrato na história da empresa é “impossível de ser subestimada”. O automobilismo continua a fazer parte do núcleo da marca Porsche até hoje.
Um segundo trabalho feito com todo o carinho por Porsche, e que viria a desempenhar um papel igualmente importante, ocorreu no final de 1932; a empresa de Porsche trabalhou no desenvolvimento de um veículo pequeno, o Tipo 12 segundo a numeração interna de Porsche, para o fabricante de motocicletas Zündapp.
Este trabalho ofereceu à Porsche a oportunidade de se envolver com um tema que o ocupou por muitos anos: desde a década de 1920, ele havia projetado carros pequenos e sonhava em construir um modelo pequeno, leve e amplamente acessível. Que deveria ser espaçoso, confortável e suficientemente potente. Com um motor traseiro e uma carroceria aerodinâmica, hoje o Porsche Tipo 12, encomendado pela Zündapp, não se assemelha a nada mais do que o antepassado original do Volkswagen, mais tarde mais conhecido como o VW Fusca. No entanto, devido à Depressão e a consequente falta de recursos, a Zündapp acabou optando em não iniciar a produção em série do Tipo 12.
Com o Tipo 32, os designers de Porsche desenvolveram, praticamente em paralelo com o projeto da Zündapp, um carro com características bastante semelhantes para a NSU. Só que este tinha motor boxer de 4 cilindros, arrefecido a ar. Há um protótipo Tipo 32 sobrevivente no AutoMuseum Volkswagen de Wolfsburg:
O projeto de um carro pequeno e popular seria continuado em 1934, quando a empresa de Porsche foi contratada pela Reichsverband der Deutschen Automobilindustrie (Associação Alemã da Indústria Automobilística do Reich) para projetar e construir o Volkswagen oficial do III Reich, sendo o contrato assinado no dia 22 de junho daquele ano. O design vislumbrou uma carroceria moderna e aerodinâmica com quatro lugares e um motor boxer de quatro cilindros, arrefecido a ar, na traseira. Este princípio de acionamento foi mais tarde utilizado não apenas milhões de vezes no VW Fusca, mas também serviu como modelo para os carros esportivos Porsche que a Porsche iria construir a partir de 1948.
O conceito completo do VW Fusca seguiu o “Zeitgeist” vigente na época que era chassi de tubo central, suspensão independente nas quatro rodas, motor traseiro (arrefecido a ar) e carroceria aerodinâmica.
Embora tivessem trabalhado principalmente na prancheta anteriormente, ou seja, de uma maneira mais conceitual, com a encomenda do Volkswagen o escritório de design se tornaria uma operação de desenvolvimento, construção e testes também. Os primeiros protótipos foram construídos na garagem da propriedade de Porsche em Killesberg, em Stuttgart, mas muito mais espaço seria necessário em breve. Em 1937, a empresa adquiriu uma propriedade de aproximadamente três hectares em Zuffenhausen, distrito de Stuttgart, e lá construiu sua primeira fábrica.
Na foto abaixo a fachada do estabelecimento da empresa de Porsche construído em Zuffenhausen, com novas salas para o departamento de projetos (naquela época o prédio tinha o formato em “U”, depois o prédio foi ampliado fechando o “U” com uma ala adicional), uma sala contendo maquinário para a fabricação de componentes no subsolo, um espaçoso pátio interno (que ocupava toda a área interna deste “U”) onde ficavam estacionados muitos protótipos dos vários desenvolvimentos que eram feitos em paralelo. No lado esquerdo da foto estão duas placas, escritas com caracteres góticos. A de cima se refere à firma de Porsche “Dr. Ing. h.c. F. Porsche”, onde h.c. é de honoris causa, já que Porsche era autodidata. A placa de baixo se refere à “Volkswagenwerk – Zweigstelle” – filial, pois o setor técnico da fábrica da Volkswagen era a empresa de Porsche. Esta placa já é de depois de 1938, quando a entidade que tinha sido estabelecido para tocar a finalização do projeto do Fusca e o projeto da fábrica, a GEZUVOR, deu lugar à Volkswagen depois do lançamento da pedra fundamental da fábrica em Fallersleben (depois da guerra Wolfsburg) em maio de 1938.
Conclusão
Chegamos neste relato até a época na qual ficaram prontos os três primeiros protótipos definitivos do Volkswagen oficial do III Reich, eles aparecem na foto abaixo. Eram um sedã de teto rígido, outro com teto solar de lona e um cabriolé:
Agora podemos concluir que Porsche liderou uma equipe de engenheiros e que juntos eles desenvolveram o projeto do Fusca; que não foi uma invenção. Se bem que deste trabalho surgiram várias patentes e que o projeto usou patentes adquiridas de terceiros, como foi o caso das barras de torção.
Com isto eu espero ter esclarecido e destruído o mito que circula dizendo que “Porsche inventou o VW Fusca sozinho”
Abaixo um registro do início do Podcast, quando faltava pouco para a transmissão ao vivo começar:
Agradeço ao Alexandre Gastaldo Badolato pelo convite e ao Walter Martins Pereira Júnior por ter feito a ponte com o Badolato no caso deste podcast para a minha participação neste evento.
AG
Para esta matéria foram feitas pesquisas nos seguintes sites: https://christophorus.porsche.com/ ; https://www.fahrtraum.at/ ; https://rofx-wallpapercar.blogspot.com/ ; https://www.firstversions.com/ ; Wikipedia.
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