Não tem jeito. Não me conformo e não aceito essa “superjabuticaba” de achar que um fabricante de veículos automotores é uma montadora. Por isso, caro leitor ou leitora, permito-me voltar a este assunto hoje. Pode parecer falta do que falar, mas não é. O impacto de “montadora” é o mesmo que se da noite para o dia não existissem mais igrejas, mas cultuadoras.
Sei muito bem que toda língua é viva, está em constante mudança, mas essa substituição é inaceitável. E não é uma substituição ocasional, não, é algo com ares de ter vindo para ficar. O mais incrível, em minha opinião, é o termo se referir exclusivamente à indústria de automóveis e comerciais leves. Todo o resto é fabricante — bicicletas, velocípedes, motocicletas, caminhões, semicondutores, computadores, televisores, lavadoras, máquinas de costura, e por aí vai.
Até onde minha memória alcança isso tem origem bem no começo de 1981 e, pior, partiu do seio da Anfavea, quando o então presidente da entidade e diretor de recursos humano s da Volkswagen Jacy Mendonça, começou a empregar o termo. Nessa época eu ia com relativa frequência ao encontros mensais da Anfavea com a imprensa e achei estranha a nova denominação de fabricante, em especial pelo acrônimo Anfavea ser de Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores e também por seu presidente ser executivo de uma fabricante.
Como os jornalistas começaram a ouvir o presidente da Anfavea falar em montadora, nada mais natural que adotassem o temo, talvez — minha suposição — imaginando ser um termo atualizado, moderno. O fato é que o nome pegou de maneira intensa no jornalismo automobilístico, seja de produto ou de economia.
A confusão vem também do falso conceito do regime de importação de veículos completamente desmontados, a conhecida sigla CKD. A maioria das pessoas acha que se trata apenas de abrir os caixotes, pegar as peças e fazer a montagem. O colunista Alexander Gromow já explicou e mostrou na sua coluna “Falando de Fusca & Afins” que os VW Fusca importados CKD pela Brasmotor a partir de 1950 vinham com as partes da carroceira isoladas e aqui era feita a armação da carroceria numa linha específica para isso, na qual era feita a soldagem das várias partes e depois. a pintura da carroceria. Ou seja, não era apenas montagem. Esta é apenas parte do processo de sua produção.
Tão absurda que o tradutor do Google traduz automaker (fabricante de autoveículos em inglês) como montadora, mas não há a esperada recíproca: montadora é traduzida como assembler.
Esse fato isolado levou a um dos maiores vexames da Anfavea. A entidade editou uma revista especial em 2006 como comemoração do seu 50º aniversário de fundação. Uma edição admirável, histórica até, rica em informações acerca da indústria automobilística brasileira.
A imprensa da Anfavea, comandada pelo grande jornalista Fred Carvalho, acertadamente decidiu publicá-la bilíngue português-inglês de modo a poder ser lida por estrangeiros aqui vivendo ou nos seus países. Contrataram um tradutor para escrever a versão em inglês e disso resultou que o Brasil não tinha fabricantes, só montadoras (assemblers), num inequívoco e imperdoável rebaixamento do nosso parque automobilístico-industrial.
De tanto se ler e ouvir montadora, as pessoas de um modo gera e adolescentes e jovens em especial estão perdendo ou já perderam a noção do que seja uma fábrica de automóveis.
Para se ter uma ideia de quão grave é esse fato, numa recente conversa com o editor de um dos mais importantes e respeitáveis portais automobilísticos para convencê-lo a abandonar esse abominável termo, ele argumentou que não poderia se dar ao luxo de perder visualizações, já que ninguém sabe o que é fabricante. Surreal.
A coisa tomou tanto vulto, impregnou-se na mente das pessoas de tal forma que não faz muito tempo li numa peça de informação à imprensa da Hyundai que “a fábrica da montadora passou a funcionar em dois turnos.” A quantidade de informações de imprensa que me chega falando em montadora é alarmante.
Não exagerei ao dar título a esta matéria “Montadora: o grande mistério brasileiro”. É de fato um mistério.
Se montadora é termo tão em voga, por que será que não se fala em garantia de montadora? Nota fiscal de montadora? Preço de montadora? Equipe de competição de montadora?
Por montadora ser palavra banida do AE, é rotina nos comentários eu trocar montadora por fabricante quando o leitor “impregnado” escreve montadora. Sei que na maior parte das vezes é automático, subconsciente, de tanto ouvir os meios de comunicação falarem em montadora, mas, por dever, não posso me furtar de corrigir.
Numa visita à fábrica Fiat em Betim uns anos atrás, éramos cerca de 30 jornalistas e na caminhada pela produção chegamos às prensas. Pedi o microfone ao guia e disse: “Alguém aqui ainda acha que estamos visitando uma montadora?” Ficaram me olhando com aquela “cara de paisagem”…
BS
A coluna “O editor-chefe fala” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.