Antes de entrar nos aspectos deste processo movido pela filha de Erwin Komenda, Ingrid Steineck, vamos falar um pouco sobre ele:
Ele foi uma presença brilhante que viveu e literalmente morreu na Porsche. Talvez seja melhor dizer que Erwin Komenda viveu no topo do panteão do mundo criativo de Ferdinand Porsche, com todas as suas inúmeras permutações. Como engenheiro e metalúrgico, Komenda se aprofundou na criação de vários automóveis extremamente importantes do século 20, e seu legado de design permanece formidável quase 60 anos após sua morte.
Em essência, Komenda era o engenheiro-chefe da equipe de Porsche encarregado do design e da estrutura das carrocerias, uma aliança pessoal que apresentava oportunidades incríveis para fazer história genuína. Nascido na Áustria em 1905, Komenda frequentou uma escola técnica estatal e encontrou seu primeiro emprego em design de carrocerias na Wiener Karroseriefabriken antes de ir para a empresa Steyr Werke AG — Fábrica Steyer S.A., onde ficou de 1926 a 1929.
Em 1929 Ferdinand Porsche chegou ao departamento de engenharia da Steyer, com um novo motor OHC (sigla em inglês de overhead camshaft, árvore de de comando de válvulas no cabeçote) de seis cilindros em linha que ele havia projetado enquanto trabalhava na Daimler-Benz. Ferdinand Porsche não permaneceu muito tempo na Steyr, e Komenda logo também se desligou, e foi para a fábrica de carrocerias da Mercedes-Benz em Sindelfingen onde ficou até 1931.
Porsche, por sua vez, estabeleceu sua própria empresa de consultoria industrial em 1931, em Stuttgart. No mesmo ano, Komenda juntou-se à equipe, parte de um grupo de brilhantes engenheiros que também incluía Karl Rabe e Franz Josef Reimspiess, entre outros. Seu primeiro contrato foi o projeto de um carro de preço médio com motor de seis cilindros em linha e suspensão traseira independente por semieixos oscilantes para a Wanderer. Juntamente com a Audi, DKW e Horch, a Wanderer tornou-se um componente do novo conglomerado Auto Union, AG criado em 1932.
Com o apoio do Terceiro Reich, a Auto Union recebeu o primeiro apoio para construir um carro de corrida radical com motor central-traseiro, e a empresa de Porsche recebeu o contrato para projetá-lo. Ela também recebeu a aprovação para a outra grande iniciativa automobilística do governo, um carro popular de preço acessível — o Volkswagen.
Erwin Komenda, portanto, projetou, sob a supervisão de Porsche, a estrutura da carroceria do carro europeu mais famoso e influente de todos os tempos. Ele também projetou as primeiras variantes militares da Volkswagen, os carros de reconhecimento Kübelwagen e Schwimmwagen.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, Porsche passou a fabricar seus próprios carros e manteve Komenda como seu chefe de engenharia de carroceria. Portanto, Komenda foi responsável pela forma básica do Porsche 356 que perdurou após os anos do Gmünd, mesmo depois que Porsche, o fundador, morreu repentinamente de um derrame em 1951.
Como um dos principais executivos de engenharia da Porsche, Komenda guiou a empresa de Stuttgart para sua próxima geração, supervisionando a fabricação da carroceria do Type 901, que acabou se tornando o 911 e que suplantou o 356. Seu projeto final foi o 904, um carro esporte de corrida.
Quando Erwin Komenda morreu em 1966, logo após ser diagnosticado com câncer de pulmão, ele possuía mais de 100 patentes na Alemanha e nos Estados Unidos, incluindo a forma básica do Volkswagen e do Porsche de primeira geração — todas lavradas no contexto de seu trabalho como funcionário das empresas Volkswagen e depois Porsche.
O processo da filha de Erwin Komenda contra a Volkswagen
A Ingrid Steineck, filha de Erwin Komenda, baseada numa revisão da Lei Alemã decidiu processar a Volkswagen visando receber uma diferença a mais que o seu pai teria direito por ter participado de um projeto que rendeu mais do que era esperado inicialmente.
O racional desta revisão legal é o seguinte: O chamado “parágrafo do jogo limpo” (§ 32 a UrhG)¹ foi introduzido em 2002 e substituiu o “parágrafo de best-seller” (§ 36 aF UrhG). O objetivo da regulamentação é garantir que o autor participe do sucesso econômico na forma de uma remuneração adicional no caso de uma exploração inesperadamente bem-sucedida de sua obra.
Abaixo o resultado da primeira instância, conforme publicado pela revista Automotive News Europe em 21 de junho de 2019:
VW ganha processo de direitos autorais sobre o design do VW Käfer
FRANKFURT – O Grupo Volkswagen ganhou um processo de direitos autorais movido pela filha de Erwin Komenda, que ajudou a desenhar o VW Fusca original.
A filha de Komenda buscou uma compensação pelo papel que o design de seu pai desempenhou no sucesso do modelo icônico da Volkswagen ao longo de mais de 70 anos de produção.
A filha pediu 5 milhões de euros de indenização depois de limitar sua reivindicação aos VW Fusca construídos desde 2014 por causa de um estatuto de limitações (as reinvindicações de um prazo anterior já tinham caducado).
Ela afirmou que os Fuscas mais novos ainda incorporavam elementos do design de seu pai usados em três gerações de um carro que vendeu mais de 22 milhões de exemplares desde que entrou em produção em massa após a Segunda Guerra Mundial.
O tribunal de Brunswick, na Alemanha, examinou os desenhos de Komenda do projeto original do Fusca e decidiu que ele se parecia com outros veículos da época (como o Tatra V570 e o Mercedes Benz 130 H).
Ele também disse que a autora também não conseguiu provar que seu pai havia participado do design do veículo KdF da Volkswagen, um veículo no qual o VW Käfer original foi baseado. Também concluiu que o KdF que foi produzido em 1938 foi desenhado por Ferdinand Porsche.
O tribunal disse em um comunicado que, portanto, negou qualquer reivindicação de direitos autorais sobre os desenhos de Komenda do VW Käfer original.
[Fim da notícia – as ilustrações foram acrescentadas por mim, bem como a citação do Tatra e do Mercedes Benz, não faziam parte da notícia original.]
Fato é que ainda cabe recurso à esta sentença. Acredito que é incontestável que o Erwin Comenda trabalhou ativamente e de uma maneira importante no design e no projeto estrutural do VW Käfer. Se bem que o fez sob a supervisão e liderança de Ferdinand Porsche. Aí eu me surpreendo com a decisão judicial negando que a participação de Erwin Komenda pudesse ser confirmada.
Outro aspecto estranho na decisão em questão foi a generalização, por parte do juízo, do Zeitgeist que influenciou os projetos do Tatra V570, do Mercedes Benz 130 H e do VW Käfer, que regia as questões de chassi de tubo central, motor traseiro, suspensão independente e carroceria aerodinâmica. Seguramente havia muitos carros na época que seguiam este Zeitgeist e tinham uma aparência semelhante, mas é indiscutível que o projeto do VW Käfer acabou desenvolvendo sua personalidade e aspectos próprios. Com isto poderia ser apreciado de uma maneira individual pela Corte.
Por outro lado eu não sou jurista, mas no meu entender todas as patentes no caso da empresa de Porsche foram lavradas em nome dela indicando o nome de quem fez o trabalho e foi pago para isto. Eu acho que as patentes neste caso pertencem à empresa de Porsche que é claramente citada no caput delas.
Fato é que quase todos os passos do projeto foram registrados em patente, e para mim há uma significativa diferença entre um desenvolvimento normal de projeto e uma invenção. Eu sigo o que a rubrica do Direito Industrial determina: A invenção é toda a criação humana “inédita” que possa ser aproveitada industrialmente. O problema fica por conta da palavra “inédita”! Mas certamente este é um assunto altamente controvertido e que, como no caso citado acima, dá chance até para se mover processos com vistas a ganhos em dinheiro.
Por outro lado, a filha de Komenda também está processando a Porsche baseada na mesma Lei e com a premissa que seu pai havia feito o design do primeiro carro da Porsche, o modelo 356, cuja forma, segundo ela, teria influenciado o modelo 911, justificando a sua pedida também de cinco milhões de euros.
Neste caso ela também perdeu em primeira instância, mas conseguiu reversão na instância superior na qual as lides continuam seguindo caminhos às vezes controversos. Como é o caso de aceitar o testemunho do marido da Ingrid Steineck como sendo válido…
(¹) – Complementando o resumo do “parágrafo do jogo limpo” (§ 32 a UrhG) segue a tradução de seu teor completo:
§ 32a UrhG Participação adicional do autor
Se o autor concedeu a outra pessoa um direito de uso em condições que resultem em uma remuneração acordada que, considerando todas as relações do autor com a outra pessoa, esteja em desproporção flagrante com os rendimentos e benefícios do uso da obra, a outra pessoa é obrigada, a pedido do autor, a concordar com uma alteração do contrato que conceda ao autor uma participação adicional adequada às circunstâncias. É irrelevante se os contratantes previram ou poderiam ter previsto o valor dos rendimentos ou benefícios obtidos.
Mas, para quem quiser se aprofundar ainda mais aí vai o link com a publicação da sentença, em alemão, diretamente do site do Landgericht Braunschweig (Tribunal Regional de Braunschweig). Lembrando que Branuschweig é uma cidade adjacente à Wolfsburg.
AG
Para a elaboração desta matéria foram consultados os sites: www.pre67vw.com; hemmings.com; superbeetles.com; thedrive.com; sueddeutsche.de; jalopnik.com; Wikipedia.com. Informações sobre esta fontes podem ser dados sob consulta.
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