Caro leitor ou leitora,
O Ae, a sete dias de completar seu oitavo ano de existência, tem o prazer de anunciar a chegada de mais um colunista — são seis agora — o conhecido alemão de coração brasileiro Alexander Gromow, reconhecidamente o maior conhecedor de Volkswagen no Brasil, autor de livros (“Eu Amo Fusca” e “Eu Amo Fusca II”), autor da coluna “Volkswagen World” no Portal Maxicar (http://maxicar.com.br) e dono do site Arte & Fusca Brasil (www.fuscabrasil.net). Um verdadeiro ativista na preservação de veículos históricos, especialmente o Volkswagen, no dia 24 de junho 1995 lançou em Bad Camberg, na Alemanha, o “Dia Mundial do Fusca”, que ficou estabelecido como 22 de junho. Foi um trabalho de cinco anos e a data escolhida tem um sentido especial: foi o dia de 1934 em que o escritório de projetos do Prof. Ferdinand Porsche recebeu a incumbência de projetar e construir o carro do povo.
Sua coluna “Falando de Fusca” estará no Ae toda segunda-feira às 10h00, na qual o Alexandre Gromow compartilhará conosco todo seu conhecimento a respeito do e da Volkswagen.
Quanto ao carro da foto, você entenderá assim que ler a sua primeira coluna .
Seja bem-vindo, Alexander!
Bob Sharp
Editor-chefe
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PIAN GT EM 3D, HOMENAGEM A UM GÊNIO DO DESIGN BRASILEIRO
Por Alexander Gromow
Meu grande amigo e excepcional designer Márcio Lima Piancastelli faleceu no dia 18 de junho de 2015, após anos de luta contra grave enfermidade.
Em 2003, seu nome estava na ponta da língua, tanto citado que foi no capítulo dedicado ao VW Brasília no meu primeiro livro, “Eu amo Fusca”. Mas ele estava distante. Muitos anos depois, no dia 6 de setembro de 2014, participei de um encontro do VW SP2 Club em sua casa, em Araçoiaba da Serra (SP), a 125 quilômetros da capital, para comemorar o seu aniversário. Como se sabe, Piancastelli é autor do desenho do grã-turismo SP1/2, além de outros trabalhos como os VW TL, Brasília, e de ter participado da criação da família Gol, do Santana, do Logus, do Passat GTS Pointer e do Gol de segunda geração.
Ao chegar lá, dei-lhe um exemplar de meu livro com uma dedicatória especial. O encontro foi selado com um abraço. Com alegria, mostrou o livro aberto no capítulo do VW Brasília, sua obra também, para seu colega de tantos anos, José Vicente Novita Martins, o Jota.
Nesse evento, tive oportunidade de visitar o ateliê do Piancastelli, cujas paredes estavam cobertas com seus trabalhos. Também tive acesso a um álbum que ele intitulou “Márcio Piancastelli — O designer do Brasil — Meus brinquedos favoritos”. Fiz diversas fotos, que podem ser vistas neste álbum. Esta é uma parte do acervo que o Piancastelli tinha, eram aquelas que ele mais gostava de mostrar para seus visitantes. Entre os desenhos que consegui fotografar havia muitos estudos que não vieram a ser executados, alguns muito interessantes. Fiquei então imaginando como seria se eles tivessem sido realizados…
Veio-me naquele momento a idéia de homenagear o Piancastelli, mas para isso eu precisaria da ajuda de um amigo, o Dan Palatnik, expert em desenhos em 3D feitos for computador através de modelagem e renderização. Ele não só concordou de pronto a participar da homenagem, como disse ser um fã do Piancastelli, inclusive já tendo iniciado uma série de trabalhos com carros de designers brasileiros que não saíram do papel, caso da “materialização virtual” de projetos do Simca Xangô, do Anísio Campos, e do DKW GT, do Ari “Aruanda” Antônio da Rocha, além do Metra GT dos irmãos Bob e Rony Sharp. Era preciso eleger um desenho do Piancastelli para “virar realidade”
Em janeiro de 2015 falei com a filha dele, a Alessandra, que conversou com seu pai, ficando definido que seria o seu primeiro desenho feito durante estágio na Carrozzeria Ghia, em Turim, na Itália, em 1963 — estágio que foi o prêmio recebido pelo segundo lugar no “Concurso Lúcio Meira”, em São Paulo, em 1962, oferecido pelo carrozziere Luigi Segre (criador do Karmann-Ghia), que fazia parte do corpo de jurados juntamente com Brook Stevens, Mario Fissore e Giuseppe Farina.
O desenho original havia sido atualizado em 1998 e foi o material de partida. Mas era necessário que proporções e várias informações adicionais fossem definidas para permitir o trabalho do Dan. Para isso foi providencial a ajuda do Marcelo Lóss, marido da Alessandra, especialista em renderização (ele trabalha na Ford como Design Quality Engineer). Em alguns fins de semana ele e Alessandra foram à casa do Piancastelli e, com orientação dele, Marcelo estabeleceu as dimensões e definições necessárias.
Àquela altura as condições de Piancastelli pioravam, cansava-se facilmente.
Com base nos dados fornecidos por Marcelo, Dan compilou a modelagem e no dia 29 de janeiro enviou a renderização para ele. Esse dia fora o de mais uma quimioterapia e, terminada, Piancastelli, muito cansado, recostou-se no carro da filha antes de voltarem para casa, quando Marcelo mostrou a arte ao seu sogro. Como num passe da mágica, Piancastelli se encheu de energia, aprumou-se no banco, pegou uma caneta e se pôs a comentar e rabiscar as primeiras artes feitas por Dan. Aquela ação de modelagem estava realizando um pequeno milagre…
O Dan estava dando prioridade para este trabalho que por si só trazia uma forte carga de emoção e o concluiu acrescentando a engenharia de interior e detalhes de acabamento escolhidos com o cuidado e o requinte que a qualidade deste design exigia.
Até este ponto, 8 de fevereiro do corrente ano, o carro ainda não tinha um nome, mas depois de algumas consultas foi batizado como Pian GT.
As fotos do carro chamaram a atenção de especialistas e de leigos no mundo inteiro, e muitos queriam saber quando ele estaria disponível para a compra. As fotos falam por si sós.
Márcio Lima Piancastelli merecia mesmo essa homenagem. Onde quer que esteja, que dê inspiração aos jovens designers brasileiros.
O processo de criação
O processo de modelagem e renderização, que permite dar vida a desenhos, é algo incrível e que requer muito conhecimento e proficiência no uso dos softwares que permitem se chegar ao resultado final. Este vídeo, feito a partir de uma apresentação preparada pelo Dan, dá uma idéia do trabalho envolvido e demonstra o quanto de competência foi empregado, bem como a qualidade e senso aguçado de estética do Dan, um verdadeiro designer cibernético.
Gostaria de complementar esta matéria com o ponto de vista do Dan e do Marcelo:
Dan: “Quando você, Alexander, me fez a proposta de modelar uma criação do Márcio, fiquei muito honrado de poder participar, ainda que de forma indireta, da concepção do projeto, porque a modelagem deu vida, mesmo que virtual, a um desenho interessantíssimo que permanece atual passados tantos anos.
Logo que recebi os primeiros desenhos achei que o Pian GT, como foi batizado o desenho, daria um belo resultado. Afinal, trata-se de uma berlinetta bem-proporcionada, típica do princípio dos anos 60. Embora tenha influência de vários desenhos, é originalíssima.
O desenho do Márcio é claríssimo e foi preciso pouca informação complementar para preencher os detalhes que não aparecem no original. Conversando com o Marcelo, definimos a curvatura da frente afilada, a área alargada sobre as rodas traseiras, o desenho das lanternas. Iniciei a modelagem e só mais adiante notei que as portas eram estilo carlinga (com o vidro da frente e capota num só módulo) e ausência da coluna A. Marcelo confirmou que era essa a intenção do Márcio.
Acrescentei detalhes do interior — bancos, painel, volante — de modelos de esportivos italianos que já havia feito e o Pian GT ficou pronto. O resultado, sou suspeito, foi elogiado por designers e conhecidos que atuam na confecção de carrocerias artesanais mundo afora. Um tento para o design automotivo brasileiro.
Eduardo Prado certa vez me enviou o desenho técnico do Metra GT que os irmãos Sharp fizeram nos anos 60, mantendo a mecânica e o entre eixos original do DKW. Conversamos sobre as vantagens da modelagem 3D como simulador do processo real de projeto que vai do desenho ao “buck” de argila ou madeira pré-estamparia das chapas. Usando as vistas como base, fiz apenas algumas alterações sutis na carroceria. Recompensador ver as perspectivas de um desenho que até então só existia em vistas ortogonais.
Através da modelagem do carro recordista Carcará, fiz contato com Anísio Campos. Ele me ligou e fez uma visita ao estúdio, onde entre muitos casos mencionou o projeto do Xangô, um esportivo montado sobre chassi encurtado do sedã Simca Chambord. No mesmo instante dei uma busca na internet e baixei a vista lateral que ele tinha desenhado, uma linda arte em tons de ultramarino. Combinamos que o Xangô ganharia vida digital para, como o Metra GT, poder ser apreciado em todos os ângulos. O que faltasse de informação visual seria orientado pelo próprio Anísio em troca de e-mails até as imagens finais.
O terceiro esportivo nacional da galeria foi o DKW GT de Ari Rocha. Descobri esse desenho numa conversa com Roberto Fróes, proprietário de um sedã DKW-Vemag, e solicitei mais informações ao próprio Ari, que então publicou a arte original e descreveu como seriam a frente e a traseira. Mais um projeto que se tivesse chegado às ruas teria mudado o panorama automobilístico brasileiro e hoje seria cobiçadíssimo entre os colecionadores.
Sem falar no privilégio que é a interação com esses projetistas pioneiros do automobilismo brasileiro.
Continuo em busca desses projetos que nunca foram adiante, para ampliar o setor dos esportivos virtuais nacionais na minha Garagem Digital. Se você souber de mais desses desenhos… É um trabalho de divulgação apenas. Mas assim vamos acrescentando mais detalhes à história do design automobilístico nacional.”
Marcelo: “O Pian GT, como foi batizado, sempre foi um dos meus desenhos favoritos no acervo do Márcio. Sempre admirei as linhas limpas e clássicas daquele carro que no meu imaginário sempre teve um motor central, plano. Fiquei muito feliz quando depois das conversas o Márcio escolheu justamente o que eu mais gosto para ser modelado e renderizado pelo Dan, principalmente devido às suas proporções e seu tamanho.
Deste período existem algumas propostas que ele elaborou na Ghia para a Ford, Borgward, Lamborghini e Jaguar que estão no arquivo pessoal dele. Porém o Pian GT não foi feito para nenhuma destas empresas, mas ele declarou que foi um dos primeiros desenhos elaborados já com o conhecimento adquirido no período de aprendizagem/estágio na Ghia.
Quando começamos a modelação para atender aos pedidos do Dan, logo apareceram umas perguntas sobre a proporção e a minha idéia principal foi identificar veículos que tinham o mesmo tamanho/proporção. Identifiquei o Porsche 914/6 como base, e depois das minhas perguntas fomos ao ateliê do Márcio, acho que foi uma das últimas vezes que estivemos lá juntos. Ele resgatou um desenho em blueprint do Alfa 33, que ele guardou desde a época de seu estágio e que tem a vista lateral, superior, frontal e traseira. Com estes desenhos em mãos fizemos alguns esboços e comentários que serviram para a modelação,
Minha maior surpresa foi quando ele afirmou que o desenho original do Pian GT deveria estar em proporção. E após medições, a proporção perfeita foi identificada na distância para o solo, na altura do teto do carro e na distância entre eixos.
Assim, cada desenho enviado pelo Dan foi recebido com muito carinho e deixava o Márcio impressionado com a capacidade dele de representar com realidade as suas idéias.
A forma da dianteira e a duas janelas foram imediatamente lembradas por ele. O formato do vidro dianteiro foi um resgate das idéias iniciais dele na Ghia, um carro conceitual de um estudante sonhador à época. Até ele mesmo já havia se conformado com o fato de que um carro sem colunas é muito difícil de ser realizado, mas a pergunta do Dan sobre a coluna A resgatou esta idéia.
Assim, cada impressão dos desenhos do Dan trazia mais um sopro de vida, visto que a doença do Márcio progredia rapidamente. E os últimos dados que foram definidos foram o formato das lanternas, e o logo que ele escolheu, que foi o triângulo vermelho da bandeira de Minas Gerais, de onde era natural.
O resultado final foi um orgulho para todos e ele presenteou, com cópia,s irmãos, sobrinhos e netos.”
AGr
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.