Esta é a história de um funcionário da produção da Volkswagen do Brasil. O “Zé das Portas”, hoje merecidamente aposentado, iniciou o seu trabalho na indústria automobilística na Fábrica II da Volkswagen do Brasil, no Ipiranga, na Vila Carioca, antiga Vemag.
O registro de funcionário foi feito em 1969 na Fábrica Anchieta, onde ficava o setor de recrutamento.
Naquele tempo o DKW-Vemag já não era mais produzido (havia apenas uma produção de peças de reposição). A fábrica, agora da Volkswagen, produzia o VW 1600 quatro-portas, depois apelidado de “Zé do Caixão”, e o TL.
O “Zé das Portas” foi trabalhar na área de funilaria e lá acabou se especializando em portas. Sim, por incrível que possa parecer, naqueles tempos desenvolviam-se especialistas na funilaria de partes dos carros, mas a especialização não pára por aí, não.
Obviamente, os carros têm lados, direito e esquerdo, ambos iguais, e em função das ferramentas disponíveis, dado o trabalho manual de lixamento e ajuste necessário para tirar algumas imperfeições e garantir a qualidade final do produto, formaram-se especialistas em lados: direito e esquerdo.
Mas esta escolha não era muito democrática, a preferência recaía sobre as portas do lado direito, mais fáceis de processar. Ocorre que o “Zé das Portas” não recusava tarefas e enfrentou com galhardia a tarefa de processar portas do lado esquerdo. Uma complicação, verdadeiro desafio!
Na equipe em que ele trabalhava todos eram destros, inclusive ele. Para operar a lixadeira o operador segurava no apoio da mesma com a mão direita, com isto o sentido de operação da lixadeira era definido pelo operador, ou seja, este apoio servia para direcionar o instrumento para o local a ser lixado. A locomoção era iniciada sempre para frente do carro (considerando estar processando uma porta direita), ou seja, da esquerda para direita.
Já trabalhando no lado esquerdo, a lixadeira era a mesma, e como não podia mudar este apoio auxiliar — um tipo de cabo com manopla (ainda não havia uma preocupação ergométrica com os operadores) — começavam da direita para esquerda, o que obrigava o operador a se deslocar para trás. Este era um grau maior de dificuldade para os destros! Apesar desta dificuldade peculiar, o “Zé das Portas” se especializou em trabalhar no lado esquerdo das peças estampadas.
Em toda a sua vida profissional na Volkswagen do Brasil o “Zé das Portas” sempre trabalhou nas portas do lado esquerdo do VW 1600, TL e DKW-Vemag — estas para o mercado de reposição. Este lado era sempre recusado pelos colegas de trabalho! Diante deste fato, em 1979, ele foi transferido para Fábrica Anchieta.
Alguns detalhes desta mudança de local de trabalho. A Fábrica II, antiga Vemag, era situada em São Paulo e portanto estava fora da área de atuação do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e permaneceu funcionando durante a grande greve de 1979 no ABC. Nesta ocasião o “Zé das Portas” acabou sendo transferido para a Fábrica I (Anchieta), também para cobrir os demitidos em função desta greve. No mesmo ano as atividades na Fábrica II foram encerradas e suas dependências passaram a ser usadas como depósito.
Na Fábrica I ele foi alocado na Ala 2 e trabalhou exclusivamente no Voyage e na Parati, também no lado esquerdo destes carros! Lá já existiam robôs na linha de produção, porém, exclusivamente na armação do monobloco, sendo que os pára-lamas, portas e capôs, ainda eram produzidos em processo manual.
Porém, devido à tal grande greve foi feito um investimento radical em robôs para diminuir a dependência de operários. Acho que todos sabem quem era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC na época…
E o “Zé das Portas” acabou sendo remanejado em meados de 1990 para a Ala 21, onde ficava o estoque de peças de reposição, onde trabalhou como conferente de peças para atender os mercados interno e externo.
A título de curiosidade, o “Zé das Portas” comentou que os trabalhos no Voyage e Parati para o mercado americano e canadense (Projeto P99, alusão ao volume planejado de 99.000 unidades), que lá acabou sendo batizado de Fox — nome da época que não tem nada em comum com o atual Fox e que repetia a denominação do Audi 80 naqueles mercados uma década antes — eram de outro nível, pois a chapa era de qualidade superior; assim, não havia a necessidade de serviços de funilaria como era requerido para os carros de produção normal. Mesmo assim estes carros brasileiros não tiveram o sucesso esperado na América do Norte, em grande parte por não terem câmbio automático, crucial nos mercados americano e canadense.
O “Zé das Portas” é uma pessoa que não recusou qualquer atividade, enfrentou as dificuldades naturais que surgiram, transformando isto no que hoje em dia se convencionou chamar de “vantagem competitiva”.
Com este relato entramos num dos milhares de aspectos envolvidos na fabricação dos carros Volkswagen no Brasil e onde pessoas como o “Zé das Portas” fizeram a diferença, isto nos tempos anteriores aos robôs e aos padrões de controle de qualidade atuais.
A qualidade era resultado de um complexo de atividades onde os artesãos envolvidos tinham uma função de destaque para que os carros saíssem de um modo tal a conquistar a confiança dos usuários.
Na pessoa do “Zé das Portas” registramos o importante trabalho deste exército anônimo de “especialistas de portas esquerdas”, de “direitas”, de incríveis “ajustadores/afinadores de câmbio pelo ouvido” e assim por diante, que certamente puseram a mão na massa nos carros de muitos dos colecionadores que mantém viva a tradição destes valentes veículos.
Fica aqui o reconhecimento e os parabéns a toda esta legião de “especialistas” anônimos, verdadeiros heróis!
O nome real do protagonista desta história foi omitido a pedido dele. Mesmo passados tantos anos, ele preferiu ficar no anonimato. Decidi chamá-lo de “Zé das Portas”, pois este apelido está ligado ao caso. Esta matéria foi escrita com base nas informações do seu genro, e que também não pôde ser identificado para atender ao pedido de seu sogro de não ter o nome revelado.
Vemag
Mesmo não sendo o foco deste trabalho, como citei a Vemag acho que cabe ressaltar a importância desta fábrica no contexto da indústria automobilística brasileira. Era uma fábrica moderna que foi pioneira na produção de veículos nacionais plenos (com todo respeito às Indústrias Romi S.A., de Santa Bárbara d’Oeste/SP, cujo produto, o Romi-Isetta, era um microcarro). O ocaso da Vemag se deve a uma situação que estava totalmente fora de seu controle e que foi um reflexo de acontecimentos na Alemanha que resultaram na sua compra pela Volkswagen e da descontinuação da fabricação de motores de dois tempos para veículos de passageiros. Se bem que ficou a dúvida sobre se este princípio não teria como ser modernizado para atender às condições de meio ambiente que levaram à sua extinção.
Para colecionadores e preservadores da história, a erradicação da Vemag, inclusive física com a demolição da fábrica, sem o cuidado de ter sido preservado ao menos o prédio da administração (que poderia ter sido aproveitado no projeto do atual uso do terreno) é motivo de uma tristeza adicional. Hoje quem for procurar o que existe no número 1.036 da Rua Vemag, endereço original da fábrica, irá encontrar parte do Central Plaza Shopping e a seu lado a Estação Tamanduateí do Metrô…
.
.
Ainda sobre a Vemag, para meus contemporâneos as cenas do vídeo que se segue ainda devem estar presentes em suas mentes, mas sempre é uma boa oportunidade de rever este trabalho do cineasta francês radicado no Brasil Jean Manzon (2/02/1915–1/01/1990), com a locução do lendário Luiz Jatobá (5/01/1915–9/12/1982), num elogiável trabalho de preservação da Dana Holding Corporation Brasil:
AGr
Nota do autor: este material, foi originalmente publicado na minha coluna “Volkswagen World”, do Portal Maxicar (www.maxicar.com.br), e esta publicação ocorre de comum acordo com o meu amigo Fernando Barenco, gestor do MAXICAR, companheiro de muitos anos de trabalho em prol da preservação dos veículos VW históricos e de sua interessante história. O conteúdo foi revisado, ampliado e atualizado. Material pesquisado junto ao genro do “Zé das Portas”, fotos de acervo e da internet.
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.