Neste causo, “Foi assim…”, temos um relato surpreendente e a protagonista, uma jovem de 15 anos que demonstrou ter muito arrojo para a época numa atitude rara para meninas e comum entre rapazes. Isto se torna mais peculiar quando se considera a educação mineira de uma cidadezinha do interior na década de 1960.
Comecei a postar causos do livro “EU AMO FUSCA II – Uma coletânea de causos de felizes proprietários de Fusca” com o do Ronaldo Berg e dou seqüência a esta série com o causo muito especial de Maria Tereza de Barros Carlini, ou simplesmente Tetê para os amigos. Para minha alegria foi possível incluir causos de 13 mulheres, todos interessantes e com conteúdo. Sendo assim temos a proporção de 27% de mulheres para 73% de homens.
Entrei em contato com a Tetê e lhe pedi uma foto atual dela com a irmã para ilustrar esta matéria, mas recebi um presente: não só a foto da irmã Marília Olinda — a Olindinha — e da Tetê, mas também, entre as duas, a da sua a mãe d. Maria Isabel. A Tetê contou que esta foto foi feita há pouco tempo e mostra o momento em que as três resolveram relembrar a época em que ela “roubava” o Fusquinha do pai para aprender a dirigir e poder passear com a sua irmã. Todas deram boas gargalhadas.
Mas o pai, Capitão Eduardo Carlini, militar linha dura, correto em tudo que fazia, mas que, ao que tudo indica, nunca desconfiou que seu Fusca saía para dar umas voltas à noite, não está mais aqui para conferir esta farra toda.
Passemos ao causo:
Foi assim…
Por Maria Tereza de Barros Carlini
“Travessuras de outrora transformam-se em impulsos inovadores que te levarão a incríveis descobertas, a enfrentar desafios, superar limites e realizar sonhos… “
(Luiz Bastos)
Morávamos em Pouso Alegre, Sul de Minas, quando completei 15 anos. Muitos amigos, muitas festas, serenatas, piqueniques na Fazenda Porto do Sapucaí, muita música e pingue-pongue no porão da casa do Tito e Tonho. Beatles no auge da fama e a Jovem Guarda ditando o ritmo e a moda iê iê iê.
Quase todas as noites, amigas, vizinhos, colegas de escola e eu, nos reuníamos ao redor de uma grande pedra, esquecida numa calçada da Avenida Getúlio Vargas. Ali rolavam as novidades da cidade, a agenda de festas, as fofocas mais quentinhas, os primeiros flertes e primeiros namoros.
Nossos encontros eram sempre regados a música e violão. Com as letras na ponta da língua, cantávamos Yesterday, Help, “O Calhambeque”, “É proibido fumar” e outras paradas de sucesso. Às vezes acendíamos uma fogueira para espantar o frio e aquecer nossos sorrisos. A “pedra” tornou-se, como se diz hoje, o nosso “point”. Logo a “Turma da Pedra” ficou famosa na cidade. Tínhamos até jornalzinho, no qual Tito Carlini era o redator-chefe.
Nesse ponto de encontro, meus ouvidos estavam atentos a tudo que falavam e cantavam, mas meus olhos estavam preocupados em ver se meu pai Eduardo, passaria por ali rumo à Faculdade de Direito, uma jornada que ele levava a sério e com dedicação total. Meu coração acelerou em ritmo de aventura, ao vê-lo atravessar a rua com passadas largas a caminho da Faculdade. Isso era fundamental para colocar meu plano em ação. Há dias eu vinha arquitetando uma façanha.
Saí de fininho do meio da turma e tomei o rumo de casa. Ao virar a esquina, lá estava Ele no morro! Estacionado rente à calçada, branquinho no meio da noite, com dois olhos redondinhos brilhando, olhando para mim, refletindo a luz do poste. Era o nosso primeiro carro; um Volkswagen Sedan 1962, motor 1200. Meu pai comprou o Fusquinha com muito sacrifício, mas tinha um motivo muito importante para adquiri-lo.
Lembro-me como se fosse hoje do nosso primeiro passeio em família. Aquele cheiro de carro novinho e o som característico do motor tenho gravados na memória. Meu pai todo orgulhoso dirigindo o carro novo! Minha irmã Olindinha, que tinha paralisia nas pernas, era a mais feliz durante o passeio. Seus olhos brilhavam diante de novas perspectivas para sua vida e sorria dizendo: — Ele parece mesmo um besourinho!
Então passei por ele, bati levemente no pára-lama, como lhe fizesse um agrado e falei baixinho só para ele ouvir: — Espere que volto já!
Entrei em casa sorrateiramente, cantarolando como quem não quer nada. Minha mãe sempre ocupada ou distraída assistindo televisão, nem percebeu minha primeira de muitas outras más intenções. Dependurada atrás de uma porta estava a arma do crime: as chaves do Fusquinha branco. Apanhei as chaves, com todo cuidado, sem tilintar e saí sorrateiramente como entrei. Meu coração batia cada vez mais acelerado diante das sensações mais inusitadas: Estaria fazendo algo errado? Claro que sim. Perderia a confiança de meu pai se descobrisse? Não tinha certeza disso. Voltaria sã com o carro a salvo , a tempo de estacionar no mesmo lugar? Eu estava com medo, mas queria provar a mim mesma que seria capaz de dirigir sozinha.
Nesse turbilhão de pensamentos, abri a porta do Fusca para a aventura na noite. Ajeitei o banco, girei a chave lentamente só até acender as luzinhas do painel e, sem dar a partida, acendi os faróis. O pé no freio e o ponto-morto eram os requisitos mais importantes naquele momento, pois teria que sair em silêncio, descer o morro da rua Adolfo Olinto e só ligar o motor quando estivesse bem longe de casa, lá em baixo no pé do morro.
Aí me concentrei. Foram meses e meses observando meu pai e meus tios dirigindo até criar coragem e agora tinha de colocar em prática: pisei na embreagem, engatei a primeira e acelerei, e sem dúvida, morte súbita! Várias tentativas e todas frustradas. Até que, aos trancos e barrancos, consegui sair e andar alguns metros. A emoção foi tanta que preferi parar e respirar fundo; pisei no freio, mas esqueci da embreagem. Morreu de novo! Minhas pernas tremiam tanto… era difícil controlar embreagem e acelerador. Quem sabe um incentivo poderia ajudar!? Vamos lá, besourinho! Temos que passear juntos essa noite! Nova tentativa e lá fomos nós, só de primeira. Passar segunda marcha, nem pensar! Começávamos a nos entender… Que dupla!
Bem devagarinho passeamos pela praça. Era inverno e encontramos poucas pessoas nas ruas. Estávamos tão felizes que nem percebíamos o frio que fazia lá fora. O calor daquele momento aquecia o meu corpo e mais ainda o seu coração: coitado do motor! Mas como bom companheiro não reclamou.
Contornamos a Igreja Matriz e subimos a Avenida Getúlio Vargas, e lá estava a “Turma da Pedra”. Demos um alô tímido na buzina e passamos direto com vergonha de parar e dar uma rata, isto é, “pagar mico”. Fizemos todo o percurso no embalo, sem parar nas esquinas.
Bons tempos aqueles! Não havia movimento de trânsito, nem guardas nem quebra-molas. Não havia semáforos nem faixa de pedestres. Só a luz do luar iluminava as ruas mais escuras e as pessoas caminhavam tranqüilas…
Bem, dali para frente foi moleza! Dobramos à direita e saímos novamente na Rua Adolfo Olinto. Descemos o morrão, com pé firme no freio. Desliguei o motor antes de chegar perto de casa e bem devagarinho estacionei rente à calçada com as rodas ligeiramente viradas, no mesmo lugar onde nos encontramos.
A primeira vez dirigindo um Fusca, é como o primeiro beijo, a gente nunca esquece, mesmo que seja rapidinho…
Foi assim que eu aprendi a dirigir. O besourinho branco tornou-se meu cúmplice e seria um companheiro inseparável de muitos momentos felizes.
Além das fotos atuais, pedi à Tetê que comentasse o seu incrível causo e exprimisse seu sentimento de com ele ter participado da compilação que resultou no livro. Eis o que ela me enviou:
Passados onze anos…
Que surpresa rever e reler meu texto, que foi escrito com muito carinho e emoção acima de tudo. Com certeza, todos que participaram sentiram o mesmo, sem falar num exercício de memória muito prazeroso!
Analisando agora, depois de tanto tempo, eu só ” roubava” o Fusquinha porque era por uma boa causa, eu achava que meu pai nunca me deixaria dirigir tão nova. Mas meu sonho falava mais alto: eu vou dirigir. Poder levar minha irmã para passear pela cidade, enquanto papai trabalhava e estudava, era o objetivo principal. Mas quando ele descobriu que a façanha já estava concluída, teve a idéia de conversar com o delegado de trânsito e pedir uma licença para que eu dirigisse só dentro da cidade para ajudá-lo com Olindinha.
Fizeram um exame prático e pronto, recebi a licença! Meu Deus, que alegria maninha ficou quando soube! Agora o Fusquinha passa a ser o protagonista da história. Ele participava de toda festança. Brasil ganhou a Copa? Ele descia o morro e nos levava à praça enfeitado de bandeirinhas verde-amarelas…Carnaval? Obaaa! Nos levava para baixo e para cima abarrotado de fantasias e adereços para nosso bloco Ylu Ayê.
Chegando o Natal? Lá ia o Fusca arrecadando presentes e cestas básicas para as pessoas carentes…e maninha sempre junto, participando e interagindo com tudo e com todos! Ah …sabe o que ele gostava muito de fazer? De nos levar para uma passadinha rápida em frente à casa dos primeiros namoradinhos e dar uma buzinadinha bem discreta, pura emoção…Nossa, me empolguei e a história continuou…
Mas foi assim… como não amar o Fusca? Ele foi nosso primeiro amor, amor sincero, fiel e inesquecível. Como um amor platônico, guardado num cantinho especial do nosso coração!
Um grande abraço mineirinho a toda galera que Ama o Fusca, em especial, a você Gromow, que nos proporcionou essa experiência única. A oportunidade de reafirmar que nossos sonhos se realizam sim, e dão muitos frutos se formos perseverantes em nossos propósitos.
Tetê Carlini
Dando seqüência à matéria, como eu citei no primeiro causo, acrescento como anexo a minha introdução ao livro, na qual eu falo sobre como os causos foram “garimpados” e como o trabalho de compilação foi feito.
Introdução
Em março de 2003, lá na Concessionária Sabrico, em São Paulo, durante a coletiva de imprensa organizada pelo Sr. Koichiro Matsuo, realizada para apresentar o meu primeiro livro “EU AMO FUSCA – A história brasileira do carro mais popular do mundo”, eu verifiquei, por algumas perguntas disparadas por alguns dos jornalistas presentes, em especial pelo Sr. Wagner Gonzalez, que havia espaço para o registro da convivência entre o Fusca e seus usuários.
O projeto da presente compilação começou com o envio de e-mails para amigos e para algumas pessoas que haviam comprado o primeiro livro. Os causos começaram a chegar, mas de uma maneira bastante lenta e eu fiquei preocupado com o tempo que iria levar para reunir material para completar o trabalho, pois minha meta era lançá-lo na forma impressa um ano depois do primeiro.
Ressalto que o material que eu estava recebendo ia aumentando o meu entusiasmo por este trabalho. Certamente, existem milhares de histórias interessantes, pois quase todos da minha geração cresceram e conviveram com Fuscas, mas a questão era como consegui-las, e a idéia básica era recolher somente causos reais. Fiz campanha pela imprensa: jornais, revistas e rádio. Como ocorreu quando eu estava recolhendo material para a primeira obra, o retorno foi mínimo.
Numas tantas eu me lembrei de um concurso que a Volkswagen do Brasil havia feito com o mote: “Minha história com um Volkswagen”. Através da ajuda de meu amigo Daniel Branchini, que trabalhava na Volkswagen, obtive a indicação que necessitava para fazer meu contato. Então escrevi para a Sra. Júnia Nogueira de Sá, então diretora de Assuntos Corporativos e Imprensa da Volkswagen do Brasil. Deste contato resultou o acesso a vários dos causos que participaram deste concurso e que falavam sobre Fuscas. Este material foi passado para mim pelo Sr. Ivan Margarido da AJOM, empresa que realizou o concurso para a Volkswagen. Ele foi orientado neste sentido pelo Sr. Paulo Sérgio Kakinoff, na época diretor de Vendas e Marketing da Volkswagen para o mercado nacional.
Foi feita uma seleção de causos, com a ajuda da Lucia, minha esposa. A Srta. Karina Alberti assessorou o Sr. Margarido nos contatos com o pessoal do concurso da Volkswagen para a obtenção das correspondentes autorizações.
Ocorreu de tudo, pessoas que se encantaram em ver que seu trabalho poderia fazer parte de um livro, pessoas que decidiram não colaborar, e pessoas que nem se dignaram responder.
Paralelamente, eu ia preparando os causos para a Editora, catalogando, fazendo contatos principalmente com os autores que me enviaram causos diretamente, atendendo às dúvidas, e assim por diante. O trabalho foi intenso e nem sempre um mar de rosas, mas, em todo o caso, o material tomou corpo.
Vários tipos de pessoas participaram deste projeto: escritores premiados, pessoas de nível universitário e até semianalfabetos, cujos causos tiveram que ser inicialmente interpretados para que fosse possível descobrir o que eles queriam dizer. Com isto este livro apresenta uma visão que abrange o povo brasileiro como um todo. Ressalto a significativa participação de mulheres, o que demonstra que o Fusca era realmente do agrado de todos.
As ilustrações foram feitas pelo Elifas Alves, que se aprofundou no contexto dos causos para extrair ideias para as ilustrações.
Juntos, ambos os livros dão, de um lado, a história do carro, desde os seus primórdios na Alemanha até a sua despedida definitiva no Brasil, e de outro “a resposta do usuário”, aqui tomando emprestado o jargão de controle de qualidade da Iso 9000, detalhando este intrincado e complexo relacionamento entre homem e máquina através do relato de causos.
O trabalho com os causos isolados já foi muito interessante, mas a leitura do livro pronto foi realmente emocionante para mim dado o contexto global como os causos foram se sucedendo, e espero que esta impressão também seja a sua ao ler este trabalho. Inicialmente a idéia foi de ordenar os causos pela ordem alfabética dos sobrenomes dos autores, conforme sugere a prática internacional de livros semelhantes, mas como eu tive a grata surpresa de também receber vários causos de um mesmo autor ou autora eu acabei decidindo ordenar os causos pela ordem alfabética de seus títulos.
Estou convencido que existe material para mais um livro como este e abro espaço para quem quiser enviar o seu causo para um trabalho futuro. o material pode ser enviado para o endereço eletrônico a.gromow@hotmail.com.
Não posso esquecer-me de citar a alegria e honra que tenho por este livro ter um importante prefácio magnificamente escrito pelo amigo Bob Sharp. O seu nome não necessita de um esclarecimento, mas como registro histórico posso citar que Bob Sharp, nascido em 1942, é carioca radicado há mais de duas décadas em São Paulo, é jornalista especializado em veículos e possui formação técnica em construção de motores e máquinas. Toda a sua vida esteve intimamente ligada ao automóvel, tendo trabalhado em concessionárias, numa das quais foi sócio, e fábricas como Fiat, Volkswagen e General Motors. Alternadamente, há 27 anos vem atuando na imprensa especializada, com ênfase nos últimos quinze, entremeados com trabalhos de assessoria de imprensa. Foi piloto de competição em diversas categorias, durante 25 anos. Teve a grata oportunidade de conhecer o Volkswagen aos 10 anos de idade, quando seu pai comprou um em 1953, fato que permitiu que ele também participasse deste livro com o incrível causo “Feijoada em Quitandinha”. Atualmente colabora coma revista Quatro Rodas e colaborou com o site Best Cars Web Site, além de ser consultor editorial da revista Engenharia Automotiva e Aeroespacial, da SAE Brasil.
Ressalto que a sua simpatia, coragem, conhecimento profundo de causa e importante independência de opinião o destacam em seu trabalho. Sempre recebi dele apoio para as minhas pesquisas, o que muito me ajudou em tudo que já realizei no campo dos automóveis antigos.
Aproveito a oportunidade para reproduzir parte do e-mail que recebi dele dois dias após do lançamento de meu primeiro livro, evento no qual ele também participou: “Já ‘devorei’ seu livro e adorei. Não que não conhecesse a história, mas por tê-la agora contada por um amigo. Fica mais pessoal do que ler obras de autores estrangeiros (apesar de alemão, você é brasileiro) ”.
O Fusca foi um carro que moldou com sua alegre presença várias gerações de brasileiros durante os 46 anos que esteve presente no Brasil, considerando o intervalo entre 1986 e 1993 como não tendo sido uma interrupção de sua participação no cenário automotivo brasileiro. Este trabalho, acima de tudo, é uma sincera homenagem ao Fusca feita por um grupo de brasileiros que, com o relato de seus causos, representam os milhões de brasileiros que jamais esquecerão suas próprias histórias vividas com este carro amigo. Agradeço a todos eles pela participação nesta obra que é o “nosso” livro. Também agradeço às demais pessoas citadas acima por sua colaboração com este trabalho.
Alexander Gromow
AG
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.