Essa faz tempo que aconteceu. O ano foi 1978, início de novembro. Chego na casa de meu tio, irmão mais velho de meu pai, leitor e assinante das revistas Veja e Quatro Rodas, e ele logo me diz: “Olha só o que veio na revista Veja”. Abro e encontro um encarte da VASP – Viação Aérea São Paulo, com o título “O Mundo Maravilhoso da Aviação”, este da foto abaixo.
Fiquei maluco. Doze anos de idade, constantes dores no pescoço de tanto olhar para cima para ver aviões, meu pai já acostumado a ir ao aeroporto de Congonhas muitos finais de semana para ver aviões com o filho, um desespero completo para ler tudo que eu conseguia sobre essas máquinas, e me aparece isso. Uma publicação nacional que iria me ensinar uma porção de coisas que eu nunca desconfiaria, e que sabia ter todos os fascículos garantidos, sem precisar pedir para meu pai comprar — o dinheiro era bem curto em casa naquela época — pois estavam assegurados pela assinatura de meu tio.
Abri e li as 16 páginas ali mesmo, na hora, e entendi que seriam oito números, vindo encartados na Veja — e também na Exame — nas sete semanas seguintes. Uma maravilha e muita alegria.
No final, uma capa para juntar todos e encadernar se quisesse. Nunca fiz isso, apenas coloquei todos dentro da capa, e isso me permitiu agora fazer a foto abaixo para que todos vejam.
De uma forma bem simples e sem linguagem técnica, os autores explicavam o panorama geral de um avião, tanto do ponto de vista de pilotagem quanto das suas partes e sistemas, os treinamentos de todos os tipos de profissionais de uma empresa aérea, o funcionamento de um aeroporto, o trabalho detalhado e árduo do DOV, o Despachante Operacional de Voo, de um sistema de reservas de passagens, o trabalho da tripulação, uma rotina de manutenção, uma descrição geral da VASP desde sua criação e, para meu absoluto choque e delírio, a fábrica da Boeing, marca de toda a frota de motores a reação (jato) da empresa naquela época, com os 737 e aquele que é provavelmente o mais belo trimotor de todos os tempos, e o 727-200, com sua cauda alta em forma de “T” e tomada de ar do motor central na base do estabilizador vertical. Uma foto dele voando nos Estados Unidos aparece no fascículo sobre o treinamento dos tripulantes, onde se descreve as aulas na Boeing, em Seattle.
Eu nunca tinha visto fotos de uma fábrica de aviões antes dessa publicação, e fiquei mesmo impressionado. Imagine saber que apenas para projetar, construir e testar os aviões comerciais, a Boeing tinha nesse ano 40 mil funcionários! Também a Embraer foi brevemente descrita, pois a VASP tinha os bimotores EMB-110 Bandeirante atuando em rotas curtas, antes mesmo do termo aviação regional ter sido adotado .
Saber mais sobre o trabalho dos pilotos e de toda tripulação foi muito bacana. Eu não tinha ainda viajado de avião, isso demoraria muitos anos para acontecer, e fiquei mesmo maravilhado com aquelas informações, tudo praticamente novo para um menino de doze anos.
Achei muito justo falar sobre as várias profissões que formam a aviação comercial, inclusive os comissários e comissárias de bordo, esta ainda eram chamadas de aeromoças. O treinamento dessa turma que trabalha juntos dos passageiros durante o voo não é simples, nem curto, e nem superficial. O comentário mais triste que já ouvi de um comissário de bordo, irmão de um amigo, foi que eles encontram uma quantidade enorme de passageiros que ainda os consideram apenas garçons.
O Despachante Operacional de Voo tomou uma boa parte do texto naquele fascículo, e fiquei sabendo que ele é um profissional com conhecimento técnico praticamente igual ao do PLA, Piloto de Linha Aérea, não tendo, porém, a obrigatoriedade de se brevetar, ou seja, não precisa ser piloto que voa.
O DOV é o funcionário que prepara a operação da aeronave, pesquisa a meteorologia da rota necessária, determina a altitude e aerovia onde será mais econômico voar, confronta a situação de manutenção com os pesos que o avião terá que enfrentar e os ciclos — decola, voa, pousa — que são permitidos até os vários níveis de manutenção e consertos, escolhe onde serão colocadas as cargas de pesos e tamanhos diferentes do padrão nos bagageiros do avião, calcula quanto combustível o avião precisa após cada pouso para a próxima etapa, determina as velocidades de decolagem, V1, Rotation e V2 sendo as mais básicas. V1 é aquela em que ainda dá para abortar a decolagem, freando em solo.
Rotation é a velocidade de rotação, quando o piloto puxa o manche para iniciar a decolagem, e o avião rotaciona em torno do eixo transversal, ou seja, aponta o nariz para cima e a força de sustentação é suficiente para vencer a força peso. V2 é a velocidade em que o avião tem segurança na subida, mesmo com falha de um motor, por exemplo. O DOV também informa em seu relatório quantos graus de flape para decolagem deve ser usado, a velocidade em que os flapes devem ser recolhidos, e por aí vai.
Hoje isso tudo tem ajuda de computação, mas o DOV existe e é vital no planejamento de um voo. Se hoje seu relatório vai a bordo via computadores do tipo tablet, no tempo dos fascículos era uma folha de papel amarela, que dá para ver na mão do comandante, na foto abaixo.
Na parte da obra em que se fala de manutenção, muito mais informação valiosa, como saber que não há atividades em um avião que apenas uma pessoa pode efetuar, sempre havendo outro profissional que verifica o que foi feito, para evitar que um erro vá em frente. Também foi explicado que a empresa aérea tem uma biblioteca com todos os manuais dos aviões, e que se os mecânicos em um aeroporto não conseguem ter todas as informações para solucionar um problema, essa biblioteca era consultada via telefone e telex (coisas antigas), e lá, engenheiros iriam buscar a solução e informar o processo correto para solução.
Também aprendi que as ferramentas especiais usadas na manutenção também tinham que ser testadas, para se ter certeza que estavam sem problemas, e que não iriam, por exemplo, permitir torque falso em um parafuso. Além disso, saber que, diferente do que se faz em um carro, não se pode esperar algo falhar em um avião para ser consertado ou trocado. Horas de voo determinam o que fica e o que é substituído. Aí entra a frase mais ou menos popular, que compara um carro a um avião, que diz que a diferença entre ambos é que o carro tem o acostamento logo ao lado, mas o avião só pode parar aqui embaixo, no solo.
Numa esclarecedora foto, via-se a famosa e popular “caixa-preta”, que é o gravador de dados de voo, e que nunca é preta, mas sim laranja. Pelo menos eu passei parte da infância já sabendo que caixa-preta não é preta. A foto é a que está a seguir.
Aprender um pouco sobre o funcionamento de um aeroporto também foi muito legal, podendo entender melhor o que fazia cada um daqueles vários veículos que ficavam junto dos aviões, e isso já me fascinava nas inúmeras idas ao hoje extinto terraço de Congonhas, onde a criançada sentava numa mureta com guarda-corpo metálico, que parecia ter sido feito para isso, pois havia espaço entre este e o muro, dando para passar as pernas com tranquilidade.
Até mesmo adultos podiam fazer isso. Não pude deixar de procurar uma foto desse local e colocar aqui. Era passeio grátis, já que nem mesmo estacionamento era cobrado no local, e ainda havia a chance de comer pipoca e comprar uma balão de gás, no pé da escada do terraço, estes pagos, obviamente.
Para não deixar de homenagear seus funcionários, o último fascículo, encartado com a revista Veja de 20 de dezembro de 1978, mostrou as atividades da empresa, desde a criação em 4 de novembro de 1933 até à data da publicação. A criatividade da empresa é enaltecida, explicando que os engenheiros que lá trabalhavam inventaram um distribuidor automático de chamadas, um tipo diferente de PaBX, mas que permitia que o cliente não deixasse de ser atendido de imediato quando telefonava para fazer uma reserva de assento.
Já havia reservas por computador, mas apenas dentro da VASP, por isso era sempre necessário falar com uma atendente. Uma foto de um Boeing 727 com vários funcionários ao lado não poderia faltar na obra.
Na contracapa aparecia o nome da equipe que produziu os deliciosos fascículos, com a coordenação de Ernesto Klotzel, veterano profissional da aviação, nascido alguns dias antes da criação da Varig, em 1927, um engenheiro elétrico que atuava como engenheiro de voo que voou dezenas de aviões, desde os tempos da Real Aerovias. Klotzel tem hoje 89 anos e ainda é ativo na imprensa, escrevendo sobre notícias e curiosidades na revista Aero Magazine.
Já a VASP foi declara falida oficialmente em 2008, depois de muitos anos de problemas de todos os tipos após sua privatização. A área que ela ocupava em Congonhas é a mesma onde hoje é realizada a Labace.
Guardar papel pode parecer algo estranho para muita gente, mas o prazer que isso pode trazer a quem se dedica a manter a história, mesmo que de um item simples e de valor comercial inexistente como essa publicação, é enorme. E a alegria de compartilhar com os leitores é toda minha.
Livros e aviões fazem bem à saúde!
JJ