Era um domingo de manhã e lá estava eu de motoca na cidade de Pirassununga, interior de São Paulo. Chamo de motoca minha Yamaha YBR 125 de sei lá que ano. Motoca é um apelido carinhoso, pois ela é muito boazinha. Às vezes passa mais de mês sem que eu vá à fazenda e saia com ela para passear, e quando a pego basta abrir a torneira de gasolina e dar uma ou duas pedaladas com o afogador acionado que ela logo começa a funcionar suave e silenciosa. O segredo para que passe semanas ou até meses sem uso e logo pegue é fechar a torneira de combustível e deixá-la funcionando até que a gasolina da cuba termine. O motivo de escolhê-la na época foi achar seu motor o mais suave da categoria. Todas evoluíram e hoje não sei qual delas é a mais suave.
Pirassununga, como todo interior de São Paulo, é um vasto campo de garimpagem quando se busca por bons carros nacionais antigos, principalmente os mais populares, tipo Fusca, Chevette, Variant e Corcel, além de caminhonetes e caminhões. E é fácil vê-los, já que a maioria das garagens está exposta à rua, então bastam atentos “rabos de olhos” que rodando logo se acha coisa interessante. Outra coisa que ajuda é ter um amigo mecânico na cidade, pois esses sabem onde está o que você procura, de quem é e se vendem ou não. Adianto para que tire o carro da cabeça se ele for de uma velhinha ou velhinho, pois velhinhas e velhinhos abominam mudanças, inclusive as que são para melhor.
Não adianta dar uma de moço sorridente bonzinho e católico fervoroso, tomar cafezinho com o dedinho levantado e pernas juntas, escutar pacientemente infinitas queixas e olhar atento um grosso álbum de família; não adianta, porque no fim haverá de escutar o mesmo “Vai me desculpar, mas não vendo o carrinho nem que a vaca tussa”. Os filhos dos velhinhos, que torciam e tentavam ajudar no negócio, erguerão os ombros e as sobrancelhas, como que dizendo: “Não te falei?”
De motoca, dobrei a esquina do posto do Beto e lá estava um Dodginho bem inteiro e original. Era um Dodge Polara, mas em Pirassununga ele é chamado de Dodginho e fim de papo. Se alguém aparecer por lá perguntando se alguém conhece um Dodge Polara que esteja à venda, ninguém vai saber que carro é esse. O mesmo se passa com o “Zé do Caixão”. Se perguntarem sobre um Volkswagen 1600, vão achar que procuram um Fuscão. O Dodginho recebeu esse apelido logo ao ser lançado, e em diminutivo porque seu irmão maior, o musculoso Dart, já era famoso na área. E boa fama tinha o Dart. Carro bonito, principalmente o cupê, bem estruturado, tremendo motor V-8, e com reputação de “não dar problemas”.
Meu pai teve um, e se o Dart o aguentou sem reclamar é porque o bicho era robusto mesmo. Meu pai seguia o lema dos primeiros motoristas da história, início do século passado, que achavam que carro bom era o que fazia tudo em última marcha. A 1ª e 2ª marchas eram só para tirá-lo da inércia, e uma vez ele em 3ª tinha que dobrar esquinas fechadas, subir ladeiras ou arrastar um bonde. Os Rolls-Royce fizeram sucesso também por causa disso. Motor de enorme cilindrada, grande curso de pistão, torque monstro, pesadíssimo volante; tudo voltado a ter forte potência em baixa. O Dart cupê do meu pai, com três marchas na coluna de direção, era um carro especialista nisso. “Isso é que é carro bom! Essa terceira é pau pra toda obra!”, dizia ele.
Vi o Dodginho e a frase que de estalo me veio à boca foi: “Esse já foi ruim!”. Acabei rindo sozinho, pois lembrei que o costumeiro é dizer “Esse já foi bom!”, mesmo que o carro tenha sido um fiasco.
Temos a estranha mania de vangloriar tudo o que é do passado, até quando ele ou aquilo não o mereça. Se um safardana morre, pronto!, vira santo. “Ele roubava, mas roubava até que pouco, comparando com esses aí.”. “Roubava, mas fazia.” “Ela adorava as criancinhas. Nunca fez nada por elas, nem levantou um dedo, mas sempre tinha um sorriso pra elas”. Já eu não sou muito disso, não. Sou meio cruel e imperdoável. Prefiro dizer: “Foi tarde.” “Esse lazarento já deve estar se torcendo no espeto do capeta”, e coisas do tipo. Ora! Afinal, de que adianta um sujeito se esforçar para ser bom, se basta ele empacotar para ser nivelado aos safados? Sejamos, portanto, justos. No passado foram fabricados carros bons, mas também fabricaram ruins.
E também costumam nivelar carros clássicos a carros antigos, o que é um tremendo erro. Seguindo as recomendações do experiente escritor Ariano Suassuna, não devemos usar superlativos à toa. Então, se eu gasto a palavra clássico num Chevette, como chamarei um Cadillac? De “classicasso?”, ou melhor, “classicíssimo?”. Sejamos como alguns executivos envolvidos na Lava-Jato, uns experts em tramoias que também se revelaram ótimos para apelidar seus comparsas. Eles apelidaram uma colaboradora somente de “Coxa”. Não gastaram um imerecido “Coxão” com ela.
O Dodge 1800, devido aos inúmeros problemas que apresentava no início da produção, se queimou logo de cara. Depois, após anos e anos, ficou bom, virou Polara, porém já era tarde. Logo que foi lançado, meu tio e meu irmão compraram cada um o seu. Ambos eram brancos. Eram bem bonitos e confortáveis, e até que tinham bom desempenho, mas o do meu irmão logo apresentou barulheira que vinha de todo lado, tipo estar no meio de um tiroteio de faroeste, parecendo que os operários apertaram pela metade tudo quanto era parafuso e porca. Apareceu ferrugem, também. Ferrugem até que era algo comum, na época, mas no dele ela veio que nem nuvem de gafanhoto. O Dodginho do meu irmão, em suma, novo já era velho.
Já o Dodginho do meu tio, logo de cara recebeu do preparador Silvano Pozzi um bom trabalho de cabeçote e um carburador Weber de corpo duplo. Ficou show. Andava muito bem. Recebeu também pneus radiais, já que no começo o Dodginho vinha com diagonais. Ele tinha tração traseira e suspensão traseira por eixo rígido. Era um carro gostoso, mas devido aos sucessivos problemas, logo meu tio perdeu a confiança no carro e o passou para frente.
Depois sigo com carros, mas antes preciso defenestrar um ícone do passado: o traste de moto que o Peter Fonda usou no filme Easy Rider. Como o leitor sabe, era uma Harley-Davidson modificada para estilo chopper. Mais especificamente, era uma modelo Panhead de 1951 que foi estragada. Observe o leitor a foto e vamos descer o pau por partes.
Não tem freio na roda dianteira. Muitos motoboys paulistanos podem achar isso normal, já que nunca usam o freio dianteiro por “medo da roda travar”, sendo que é justamente o da frente que freia a moto ou o carro. Sendo assim, a moto do Fonda freia muito mal. Ela não freia; só vai parando. Note que a Panhead original tinha freio na dianteira.
Não tem suspensão traseira nem selim com molas. Ela é seca. Simplesmente seca. Haja coluna vertebral. E para piorar, pela posição do piloto, com as pernas esticadas adiante, não há como ele se erguer do banco caso veja que não dará para desviar de um buraco ou obstáculo. Esse negócio de ser rebelde só funciona em país adiantado e com asfalto tipo tapete. Rebelde no terceiro mundo só se lasca. O selim da Panhead tinha molas.
A moto do Peter também tinha outro defeitinho desagradável. O tanque de óleo era localizado entre as pernas do rebeldão, atrás do cilindro traseiro. O problema é que ele armazena óleo do motor, óleo quente, pelando, quando o bom seria que armazenasse água gelada. Esse óleo borbulhante está, portanto, a menos de um palmo das partes íntimas do ator. A sorte da Bridget Fonda, a linda filha do Peter, é que nasceu antes da filmagem, porque depois dela acho que dali nunca mais saiu um espermatozoide vivo. Note que o selim da Panhead distanciava o piloto desse tal tanque.
Agora, ruim também era o primeiro Gol, que veio com motor 1300 “a ar”. O Gol veio para substituir o que não precisava ser substituído, o Brasília. Bom, a namorada do meu irmão apareceu uma noite em casa com um desses Gol 1300 novinho saído da loja. Ela toda animada e sorridente e me convidando para experimentar o carrinho novo dela. Foi triste. Deu dó da moça, uma linda bailarina. Carro manco estava ali. Qualquer Fusca 1300 o despachava, e a barulheira do motor era infernal. Parecia que não havia parede corta-fogo entre a gente e o cofre do motor. Acho que o carretera 18 do Camillo Christófaro tinha melhor isolamento acústico. E como a moça adorava escutar música, a ideia genial que meu irmão e eu tivemos foi nos juntarmos para colocar um som violento no Gol. Instalamos um toca-fitas TKR com amplificador de não sei quantos watts para que sobrepujasse a ronqueira. Ficou um som legalzão. Hoje, provavelmente, a tal moça deve ser uma bonita coroa. Hoje, certamente, a tal moça deve ser um tanto surda.
Nessa mesma época, início dos anos 80, meu irmão estava bem de grana e comprou um Mercedes 280 SL, o tal Pagoda, ano 1972. Não era um carro caro como hoje é, depois que virou um clássico. Na época o Pagoda era considerado só um vistoso esportivo meio velhusco e que tinha fama de ser o preferido das moças alemãs de vida fácil custeadas por velhos de vida difícil. Custou o mesmo que um VW Passat novo, o que hoje seria como algo entre o Gol e o Golf. Bom…, o Pagoda ele comprou do Satã, apelido como era conhecido um negociante de carros que ficava na av. Brigadeiro Luís Antônio, um sujeito meio baixo só que forte feito um gladiador romano. A munheca do cara era da grossura do meu tornozelo e o bíceps dele, que ele gostava de medir para a gente ver, passava dos 50 cm. Era bruto, o cara. Um dia o Satã deu um murro num Chevette que parou após quase tê-lo atropelado. Deu tamanho murro na traseira do carro que a tampa do porta-malas abriu. O Chevette se mandou cantando pneus, claro.
Mas o Satã era gente boa e de confiança e o Pagoda prata estava bom. O problema do carro era de nascença mesmo, pois tinha câmbio automático de quatro marchas com acoplamento fluido (não era conversor de torque), o que o tornava tão preguiçoso quanto o ex-governador Sérgio Cabral quando tem que limpar o banheiro da cadeia de Bangu. Não andava nada aquele carro. Uma pena, porque quando ele tem câmbio manual de 4 marchas anda até que direitinho. Apesar da sigla SL significar “esporte leve” em alemão, ele é pesado e nada ágil. Acho que é um esportivo para um leve esporte, e não esporte pra valer. Se você quer desempenho, procure outro carro.
Na estrada, a 4ª e última marcha era curta de doer. A 120 km/h o motor já se esganiçava e a 140 km/h parecia que ia explodir, o coitado. Então, quando meu irmão e eu viajávamos juntos, eu não queria guiar e boa. Dava desgosto. Mas meu irmão seguia naquela ilusão de se imaginar numa propaganda de cigarro do cara bacanudo num carro esporte conversível e lá ia ele devagar, mas todo estufado, guiando de braços esticados o carrão dele. Uma tarde vínhamos de capota arriada de Guarujá para São Paulo e no espaço que havia atrás dos bancos ele enfiara uma caixa com a Geralda, uma bicho-preguiça que meu irmão, de dó, comprara numa feira do Guarujá para soltar no mato da fazenda. Ela gosta de folhas de embaúba e lá tem dessa árvore. O nome Geralda não foi dado por causa de um governador bicho-preguiça que anda sonso por aí, mesmo porque naquele tempo acho que nem seus colegas de classe o conheciam. Era só que a Geralda tinha cara de Geralda, e boa.
Bom…, os bichos-preguiça trabalham em reduzida. São lentos, mas têm uma força descomunal nos braços. Só sei que a Geralda conseguiu, vagarosamente, romper as amarradas da caixa e tirou os braços para fora e, sem que percebêssemos, ela abraçou meu irmão por trás. Suas garras, com longas unhas, ferraram o peito do meu irmão e foram entrando aos poucos na sua carne. O bicho, meu irmão, só grunhiu: “Urgh! Naldo! Pegue a direção já!”. Levei o carro para o acostamento enquanto ele agarrava as garras da Geralda. Esticou pele ali. Com o carro parado cada um ficou com uma garra tentando abri-la, até que conseguimos. Deu dó do cara, seu peito ficou com duas rodelas roxas difíceis de explicar pros outros, mas no fim a Geralda foi mesmo parar no mato da fazenda e lá viveu feliz. Talvez até tenha virado governadora lá daquele mato, já que não nunca mais se viu obra nenhuma por ali.
O passado teve outros, muitos, carros ruins, mas no momento não me lembro de nada de engraçado sobre eles. De coisas e pessoas ruins, graças a Deus, a gente esquece.
AK
(Atualizado em 23/02/16 às 12h5)