Entusiasta: Que ou o que sente ou demonstra entusiasmo: espírito entusiasta.
Esta é a definição do dicionário para o termo que dá nome a este site e caracteriza tantas outras pessoas. Quando falamos que alguém é um entusiasta, ou no nosso caso um autoentusiasta, estamos afirmando que a pessoa é apaixonada pelo assunto. Algumas pessoas são mais que apaixonadas, elas vivem pelo entusiasmo
Quase 20 anos atrás conheci uma pessoa que define o termo entusiasta. Por muito tempo pratiquei o automodelismo de radiocontrole como hobby de fim de semana, freqüentando as pistas de corrida que havia em São Paulo. As pessoas conhecem o hobby em duas versões, a off-road e a on-road, na terra e no asfalto, respectivamente. Na época havia diversas pistas na cidade, provavelmente um dos principais motivos que acabou condenando a maioria delas. Sempre freqüentei as on-road, a primeira que fui era mais voltada ao carros 4×4 elétricos com carroceria (as “bolhas”) de turismo e pneus de borracha. Meu primeiro carro era um pouco diferente, um Jaguar protótipo dos anos 1990, elétrico de tração traseira e pneus de espuma, parecidos com pneus de autorama.
Nos modelos RC (radiocontrole) existe uma outra diferenciação, similar à do autorama, onde você tem os carros “asa”, que são como protótipos e têm muita velocidade, e os que chamam de escala real, que são as réplicas de carros de verdade, mais lentos porém bem mais realistas. Pois bem, este meu Jaguar era do tipo dos escala real, com a bolha bem detalhada, réplica do Jaguar XJR-12 vencedor da 24 Horas de Daytona de 1990, fabricado pela marca japonesa Tamiya, que também faz kits para montar de ótima qualidade. Como a maioria que andava naquela pista era do pessoal dos 4×4, isso gerava um pouco de incompatibilidade, fora o fato de eu não saber pilotar direito, obviamente.
Descobrimos outra pista pouco tempo depois, localizada na Avenida Interlagos, na zona sul de São Paulo, e fomos lá conhecer. Era completamente diferente da primeira. Esta era coberta enquanto que a primeira era ao ar livre. Era bem maior, com duas retas principais enormes e uma das curvas era superelevada, como em um oval americano ou em Monza, na Itália, uma parte do circuito italiano que não é mais usada. E o piso não era de asfalto como da primeira, era de carpete. Assim que entramos para conhecer vimos alguns carros andando. Eram modelos de carros de Fórmula Indy e alguns deFórmula 1. Estavam andando no anel externo da pista, usando aquela curva com superelevação — peraltada, como se diz em espanhol — , uns quatro ou cinco carros, todos bem próximos e rápidos, com várias ultrapassagens limpas e trocas de posição. Não era corrida, era só um treino. Eu e meu pai assistimos da entrada do lugar por uns minutos e então os carros pararam nos boxes e os pilotos desceram do palanque elevado. O pessoal estava rindo, comentando da brincadeira, tirando sarro um do outro, um clima divertido.
Uma das pessoas que estava andando naquela hora veio em nossa direção. Já era um senhor, bem humorado e sorridente, nos convidou para entrar e conhecer o local, ver os carros e a pista. Curiosamente, chamava-se Milton, assim como eu e meu pai. De cara simpatizou conosco, contamos que estávamos começando no hobby e que eu ainda não conhecia bem do carro nem como pilotar direito. O Milton perguntou se estávamos com o carrinho ali e disse que podíamos nos instalar por lá, que ele e o pessoal nos auxiliaria. Quando tiramos a caixa do porta-malas do carro e colocamos na bancada, ele abriu um sorriso de orelha a orelha como uma criança vendo seu brinquedo favorito. Além de termos o mesmo nome, ele era aficionado pelos protótipos de Le Mans, que depois fui descobrir que eram raros por aqui por terem sido pouco importados.
Fomos ao escritório da pista e na parede haviam uns dez modelos pendurados, entre protótipos, fórmulas e Nascars. O nome da pista era All Racing e o Milton era o proprietário. Ficamos amigos e com o tempo, assim como os outros, até o chamava de Tio. Frequentávamos sempre a All Racing nos fins de semana.
Aquela pista era voltada para as corridas de carros RC do tipo mais para escala real, porém bem velozes. Lá vimos que um destes carros quando bem acertado, andava mais que um 4×4 com motor equivalente. Este era o padrão de pista que o Milton criou. Não era a primeira pista que ele teve, antes da All Racing outras tantas foram feitas, de diversas formas e tamanhos, nos mais variados lugares. Se você conhece o hobby, provavelmente foi por causa dele, um dos primeiros, se não o primeiro, a criar uma pista apropriada para prática do hobby. Seus olhos brilhavam sempre que se falava no assunto.
Aquele senhor vivia o tempo todo com a paixão pelo hobby estampada no rosto. Na juventude, foi piloto de kart, contemporâneo e colega dos Fittipaldi inclusive, então não só de carrinhos ele conhecia. Aprendi bastante com ele e o pessoal da All Racing naquela época. Aprendi como acertar o carro para andar no oval, no misto, com motor mais forte e mais fraco, relação de marcha, tipos de pneu e suspensão. Talvez o gosto pela engenharia de carros de corrida tenha vindo daí.
Também aprendi a dinâmica das corridas, como controlar a distância para o carro da frente e para o de trás, esperar a reta para aproveitar o vácuo do carro da frente para ultrapassar. Sim, os RC também geram vácuo significativo. Para ele, o espetáculo era tudo, nada de bate-bate e corridas feias, com acidentes a toda hora, e isso vale para a vida também, não se ganha nada fazendo as coisas na pressa ou sem pensar nas decisões que se vai tomar.
Vi também naquela pista a primeira corrida noturna de longa duração. Os carros recebiam luzes com lanternas e LED e a pista ficava com a iluminação apagada, como numa corrida longa de verdade na parte noturna. Essa talvez fosse a maior alegria do Tio Milton, organizar e correr em uma de suas corridas noturnas. Algumas duravam horas, com troca de bateria, de pilotos e até de pneus. Cronometragem eletrônica com sensores e fotocélula, igual nas corridas “de verdade”. Era show!
Coisas da vida, o Tio teve que fechar a pista, bem como muitas outras estavam fechando pela cidade na época. Foi uma pena. Continuei no hobby, agora com os 4×4 na pista chamada Riverside, que ficava na Marginal Pinheiros, onde hoje é uma concessionária Chevrolet, perto do prédio da Editora Abril. Alguns dos amigos da All Racing também freqüentavam a Riverside, e a amizade continuou. Por alguns anos ficamos por lá, mas também a crise forçou seu encerramento. Ficamos todos órfãos de pista, como dizíamos. Mas o Tio não desistia fácil.
Alguns anos depois recebi a notícia de que uma nova pista fora feita dentro do Kart-In do Jaguaré e fui lá conhecer. Era dentro do galpão do kart indoor em uma área separada, e para minha surpresa, de carpete. Na lojinha de peças que havia dentro da pista, quem eu encontro? O Tio Milton! Uma felicidade só, das duas partes. Ele sempre teve um carinho por todos os seus amigos, nunca esquecia de nenhum, e olha que haviam se passado alguns anos desde a última visita à All Racing de Interlagos. Por um tempo a pista existiu como ele a desenhou, fizemos algumas corridas lá, novas amizades surgiram, algumas das antigas voltaram à ativa, mas depois a pista mudou de dono, o carpete foi retirado e permitiram a entrada de carros com motor a combustão. Continuei por lá, mas o Miltão deixou de freqüentar, porém mantivemos contato.
Mais um tempo se passou e um dia recebi uma ligação dele, animadíssimo, disse que tinha uma novidade muito boa. Ele havia mudado para uma casa na rua São José, no bairro de Santo Amaro, e no quintal construiu uma pequena pista de asfalto. Isso mesmo, uma pista particular! Manter uma pista grande é caro, o aluguel de galpões em São Paulo é muito elevado, e o retorno financeiro de uma pista de RC não é dos melhores. O jeito foi fazer uma em casa para não ficar sem, e esta ficou conhecida como a pista da São José. Para falar a verdade, foi a melhor de todas. Não pelo traçado, pois a antiga All Racing era espetacular e insuperável, mas pelo ambiente amigável e caseiro.
Quando excluímos o fator business da equação, ou seja, não é um local comercial, vemos as pessoas de outra forma. Foi quando vi que o Tio Milton era mesmo ligado nas amizades, e os carrinhos eram só a cereja do bolo. Alguns dos mais próximos do tempo da All Racing freqüentavam sua casa. O legal era passar o dia falando besteira entre amigos e disputar umas corridas na pista, apenas pela diversão, sem premiação, sem cronometragem, nada. Mesmo em dias de chuva o pessoal se reunia na São José para bater papo, sempre com a hospitalidade do anfitrião e da tia Mara, sua esposa, e os cachorros, sua outra paixão. Ele tinha feito uma sala com sua oficina em um quarto voltado para o quintal e para a pista com uma grande porta, onde o grupo de amigos se reunia.
Nas entressafras, o Miltão nunca desistia, estava sempre à procura de um lugar ou de uma forma de conseguir fazer sua pista e reunir os amigos. Uma delas foi num galpão perto da Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, no bairro da Vila Leopoldina) onde tive o prazer de ter ajudado a construir a pista, medindo, cortando e colando carpete, até dando palpite no traçado. Era um ótimo lugar, a única coisa que faltou foi o curvão superelevado, previsto para ser implementado futuramente. Foram mais alguns meses neste local, ótimas lembranças, com as corridas noturnas e as de fórmula, velozes nos grandes retões paralelos da pista.
Esta era a principal característica de suas pistas, eram todas rápidas. O Miltão gostava de pistas velozes e grandes retas. “Não gosto de corrida de carrinho de supermercado ou corrida de estacionamento,” era o que ele dizia. Nada de pistas truncadas e curvas fechadas, o negócio era acelerar forte na reta e fazer as curvas de dedo cravado no acelerador.
A perseverança ainda fez com que mais duas pistas fossem feitas, uma delas inclusive dentro do autódromo de Interlagos, lugar no mínimo coerente para uma pista de RC. Infelizmente, com uma mudança na administração do autódromo, a pista foi cortada. Ficamos órfãos de novo, até pouco tempo atrás quando o Tio inaugurou uma nova pista em Santo Amaro, no estacionamento de um shopping center. Não era uma pista de carpete com o curvão superelevado que ele tanto amava, mas era uma excelente pista.
Uma coisa que sempre marcou todas as pistas que ele teve — mais de dez, diga-se de passagem — foi o empenho pessoal em conservá-las. Ele mesmo fazia toda a manutenção e cuidava de tudo, da limpeza diária ao retoque das faixas e marcações coloridas ao redor do traçado, com um carinho e minúcia de fazer inveja a um jardineiro de campo de golfe profissional. Tudo tinha que estar sempre perfeito, senão estava errado.
No último dia 30 de abril, ao fim da tarde, o Tio estava na sua pista, como de costume, mas infelizmente recebeu o convite para construir e administrar uma bela pista de carpete com o seu curvão superelevado em um lugar melhor.
Já está deixando muita saudade a todos que o conheceram e conviveram com seu bom humor e determinação, sua paixão pelas corridas em miniatura, sempre realistas e lindas de se ver, e pelas amizades que cultivou ao longo da vida. Tive a ventura de ser uma delas.
Miltão, continue ocupando o primeiro lugar no grid onde você está, lugar que já era bem conhecido seu, pois o que já fez por aqui jamais será esquecido. A definição de entusiasta veio de você.
MB