Esta é a segunda parte deste trabalho; caso o caro leitor não tenha lido a primeira parte é só clicar aqui!
1935 – (uma pequena quebra na sequência para deixar espaço para a evolução de Porsche num fluxo contínuo)
Desenvolvimentos da Daimler-Benz de carros com chassi de tubo central, suspensão independente nas quatro rodas, motor traseiro e carroceria aerodinâmica
Como dissemos anteriormente, depois dos Tropfenwagen de passageiros que não vingaram, dos Tropfenwagen de corridas que formaram um vitorioso paradigma para outras marcas de carros de competição, a Daimler-Benz, também pela influência do então conselheiro técnico Josef Ganz (que chegou a levar carros Standard Superior para teste em Stuttgart), partiu para a fabricação de carros com motor na traseira. Iniciou com um carro com motor boxer de quatro cilindros arrefecido a ar, o MB-120, que logo foi abandonado pelo ruído interno, sendo substituído por um motor de quatro cilindros em linha arrefecido a água.
O conceito de carro com chassi de tubo central, semieixos oscilantes e motor traseiro continuou a ser usado na Daimler-Benz, como mostram as fotos deste modelo MB-130H Cabrio-Limousine (“H” de Heckmotor, motor traseiro). Portanto, é bom frisar novamente que os conceitos de carros com este tipo de concepção básica eram comuns na época, inclusive havia modelos em fabricação rotineira.
A história depois mostrou que o tempo que Porsche passou na Daimler-Benz, aliado ao know-how desta empresa na fabricação de carros com a concepção descrita acima, somado ao fato de vários dos protótipos do Fusca terem sido fabricados à mão e a preço de ouro pela própria Daimler-Benz, foram fatores importantes no desenvolvimento do protótipo final do Fusca apresentado em 1938.
1931-1939
Voltando na escala de tempo, passamos para o ator principal no desenvolvimento do Volkswagen, Ferdinand Porsche, não só por ter sido escolhido pelo governo alemão para esta tarefa, como por sua inconteste capacidade. O registro que se segue mostra aspectos do ponto de vista técnico, as tentativas antes da “reta final” regiamente “patrocinada pelo governo alemão” (como vimos, com recursos da DAF), sem entrar em demais aspectos políticos que não vêm ao caso. Ressalto que certamente o enorme aporte de dinheiro colocado à disposição do projeto viabilizou um projeto que se pode considerar megalômano, conduzido brilhantemente por Porsche, mas o que foi feito atendeu aos interesses do Terceiro Reich que visava suas metas com este carro, aliás conforme ao que Porsche tinha se comprometido com seu Exposé apresentado em 17 janeiro de 1934. A meu ver, exacerbar em “agradecimentos” a Hitler, como se observa em algumas comunicações que circulam pela internet, é correr o risco de atingir uma desnecessária e descabida conotação neonazista.
Desde que Porsche abriu em 1931 o seu escritório de projetos em Zuffenhausen-Stuttgart , ele começou a se aproximar do importante problema do carro popular que, aliás, já era uma meta sua há muito tempo — até então ele havia trabalhado em empresas que acreditavam que produzir alguns poucos carros de luxo dava mais dinheiro do que produzir milhares de carros pequenos. É de se destacar que ele era contrário à tendência de carros pequenos econômicos de três rodas que surgiu na época.
Em 1931 ele foi contratado pela produtora de motocicletas Zündapp para projetar um carro pequeno com motor traseiro, com chassis de tubo central, suspensão independente nas quatro rodas. Surgiu o protótipo Zündapp-Porsche Tipo 12. que é considerado como sendo o ancestral do Volkswagen. Tinha um motor radial de cinco cilindros, a carroceria executada pela firma Reutter era de madeira revestida com couro e nenhum dos três protótipos sobreviveu à Segunda Guerra Mundial. O projeto não foi adiante por falta de recursos.
Mesmo antes de terminar o projeto para a Zündapp apareceu um novo cliente, outro fabricante de motocicletas, a NSU, companhia que já tinha operado com automóveis fabricando carros sob licença da Fiat. As primeiras negociações ocorreram em 1933 e um dos aspectos iniciais foi a definição do motor, visto que a alternativa de motor radial que havia sido usada no protótipo Zündapp, por imposição desta, não foi bem-sucedida. Para a NSU, Porsche sugeriu um motor boxer de quatro cilindros, arrefecido a ar, semelhante ao que havia projetado em 1912 com sucesso para a Daimler, para aplicação aeronáutica. O desenho do chassi se assemelha à solução do Tatra e suscitou processos por quebra de patentes que não foram bem-sucedidos.
A carroceria deste protótipo, totalmente em aço, foi executada pela Drauz e um dos três protótipos sobreviveu à guerra e está no AutoMuseum Volkswagen ou na AutoStadt, dependendo da rotatividade de exposição do acervo da Volkswagen nestas duas localidades próximas.
No dia 22 de junho de 1934 foi assinado o contrato entre o escritório de Porsche e a Associação da Indústria Automobilística Alemã (RDA) para o desenvolvimento do Carro do Povo (oficial, com o beneplácito do governo) e começou a reta final para se chegar ao carro que, depois de terminada a guerra, veio a conquistar o mundo.
Em 1995 o dia 22 de junho foi escolhido para ser o Dia Mundial do Fusca, data comemorativa que eu lancei em Bad Camberg na Alemanha.
Com dificuldades e premido pelo tempo Porsche projetou, com sua admirável equipe, os primeiros protótipos e este é o chassi daquela época. O curioso é que o motor, na época de dois cilindros horizontais opostos, era equipado com dois carburadores; a evolução até o modelo final passou por várias etapas de desenvolvimento.
Queimando algumas etapas dessa história, aqui estão duas gerações de protótipos lado a lado, o VW 30, submetidos ao maior teste de protótipo jamais realizado na indústria automobilística até os dias de hoje, no qual 30 protótipos percorreram um total de 2,4 milhões de quilômetros; e o primeiro protótipo V1.
Durante os testes e a evolução dos protótipos muitas inovações foram sendo agregadas em relação às ideias iniciais. Um exemplo claro disto é o chassi que inicialmente deveria ter um tubo central e placas de madeira para fazer o fundo do habitáculo (madeira teria uma vida útil razoável e sua eventual substituição seria barata). Depois de testes, estudos e recálculos feitos pela Universidade de Stuttgart, adotou-se a solução de fundo integral em chapa de aço para aumentar a rigidez do conjunto, que passou a ser um dos pontos altos do projeto deste carro.
No frenético caminho do desenvolvimento do Fusca, concluído por Porsche e sua equipe em 1938 com a apresentação do protótipo definitivo, que ocorreu paralelamente com o desenvolvimento de projetos de versões de transporte e de veículos militares todos, basicamente, com a mecânica do Fusca ocorreram muitos eventos e há um farto material sobre isto. Mas esta matéria já atingiu o seu objetivo.
Na foto acima tirada em setembro de 1938, durante um teste de percurso dos protótipos VW303 que foram os definitivos, já com duas janelinhas traseiras. Porsche, de costas, admira a sua criação, que esteve quase por não sair em sua primeira fase no desenvolvimento dos primeiros protótipos, novamente por falta de recursos. Foi necessário que o governo nacional-socialista direcionasse vultosos recursos, do sindicato, que não estavam previstos inicialmente, para que o projeto chegasse a termo — já que Hitler já tinha empenhado sua palavra na apresentação do Carro do Povo oficial do país. Mas atingir esta etapa com a apresentação dos protótipos que deram início aos poucos carros pré-série (fabricados precariamente por terceiros, pois a fábrica ainda não estava pronta) de nada ajudou, pois em 1º de setembro de 1939 a Alemanha invadiu a Polônia dando início dois depois à Segunda Guerra Mundial e impedindo os planos de fabricação em grande volume do Fusca para fins civis na novíssima fábrica construída para este fim. A fábrica foi confiscada pela Força Aérea Alemã (Luftwaffe) no contexto do esforço de guerra. Mas o resto desta história já não é mais o foco desta matéria.
O que se pretende é proporcionar meios de estudo para a época que antecedeu à conclusão do projeto do Fusca. Independente de todos os acontecimentos, das dificuldades, das implicações políticas, do endeusamento que o governo alemão fez da pessoa de Porsche, é inegável que ele foi uma figura importante da indústria automobilística do século passado e que seu legado irá, merecidamente, ultrapassar a barreira dos tempos.
Finalizando, certamente o Tropfenwagen de Rumpler deve ter chamado atenção por sua forma muito estranha. Quem tiver curiosidade de ver este carro andando, ai vão algumas cenas daquela época:
AG
Nota do Autor: este material foi originalmente publicado na minha coluna “Volkswagen World”, do Portal Maxicar (www.maxicar.com.br), e esta publicação ocorre de comum acordo com o meu amigo Fernando Barenco, gestor do MAXICAR, companheiro de muitos anos de trabalho em prol da preservação dos veículos VW históricos e de sua interessante história. O conteúdo foi revisado, ampliado e atualizado. O seu conteúdo é de interesse histórico e representa uma pesquisa bastante aprofundada do assunto. Pesquisas complementares na internet. Ilustrações: acervo próprio e pesquisa na Internet. Destaque para a foto de Hitler no Salão do Automóvel e da Motocicleta de 1933, cujo autor é Von Robert Sennecke, da Bibliothèque Nationale de France
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.