A pesquisa iniciada com a Parte 1 desta matéria acabou crescendo um bocado — belo trabalho de pesquisa do Jason Vogel! No total iremos apresentar sete publicações do O Jornal, duas do O Globo, e uma de cada um dos seguintes veículos de informação: Automóvel-Club, A Noite, O Imparcial, Mesbla-Notícias e O Careta. O que mostra que as notícias sobre o Fusca, aliás KdF naqueles tempos, eram bastante divulgadas no Brasil. E temos que considerar que havia replicações de notícias por muitos outros periódicos espalhados pelo país.
Esta matéria é certamente uma excelente fonte de pesquisa e informação sobre “a vida pregressa” do Fusca por aqui. E, como a pesquisa cresceu, e eu decidi não desprezar nenhum material, serão três partes em vez das duas previstas originalmente.
Da observação da quantidade de matérias por periódico fica claro que o O Jornal demonstrou, com sete matérias pesquisadas, ter um interesse especial pelo assunto. Este jornal circulou entre 1919 e 1974. Em 1924 foi comprado por Assis Chateaubriand. O Jornal foi o primeiro veículo comprado por ele, e se tornou o embrião do que viria a ser o império dos Diários Associados. Autodenominado “órgão líder dos Diários Associados”, sua circulação chegou a 60 mil exemplares por dia. Começou a entrar em decadência com a morte de Assis Chateaubriand, em 1968. Em 1973, sob o comando de Estácio Ramos e dirigido por Ary de Carvalho, O Jornal promoveu uma reformulação gráfica e editorial, mas já era tarde para salvar o periódico.
Isto posto, vamos retomar a apresentação do material pesquisado.
Automóvel-Club maio de 1935
Movimento automobilístico na Alemanha
Nesta matéria se ressalta o impulso que a indústria automobilística na Alemanha tomou com o aparecimento do Führer, impressão que transpareceu para os leitores da revista Automóvel-Club. Veja as duas páginas desta matéria abaixo:
É interessante observar que esta matéria foi publicada em maio de 1935, quando o contrato entre a empresa de Porsche e a Associação da Indústria Automobilística Alemã (RDA, a sigla em alemão) para o início do projeto do Fusca já tinha sido assinado em 22 de junho de 1934, portanto praticamente um ano antes. Mas o artigo da Automóvel-Clube remete a uma época anterior a esta assinatura, quando comenta:
Conforme o programa traçado pelo “Führer” deve o automóvel estar ao alcance de todos e em vista disso está sendo oferecido um grande prêmio para aquele construtor capaz de fornecer e de pôr no mercado o “Volkswagen” — automóvel popular que além de satisfazer as grades exigências de utilidade previstas — deve ser oferecido por menos de 1.000 marcos.
Com isto fica no ar se o redator não entendeu bem o que estava acontecendo em 1935, ou se esta matéria tinha sido requentada de informação de um ano atrás. Seguramente os leitores da época não tinham meios para se defender desta informação errada.
O Imparcial – 27 de maio de 1938
A Indústria automobilística na Alemanha
Em Fallersleben, o Sr. Hitler inaugurou¹ a maior fábrica da Europa
FALLERSLEBEN, 26 (T.O.) – Logo depois de sua chegada o Sr. Hitler passou em revista as duas companhias de honra do Exército que prestavam as continências de estilo. No meio de aplausos entusiásticos, de uma extraordinária multidão, o Führer seguiu imediatamente para a grande esplanada, onde devia ser realizada a cerimônia oficial, ocupando a tribuna ali construída.
O primeiro discurso foi pronunciado pelo Chefe da Frente de Trabalho alemã, Dr. Ley, dizendo que a grande fábrica de automóveis era uma obra pessoal do Führer, mas que a sua razão era somente possível graças à perfeita organização do trabalho na Alemanha.
Ocupou depois a tribuna o engenheiro Porsche, autor do projeto definitivo para a construção do “carro popular”. O engenheiro lembrou que no ano de 1936 o Dr. Ley recebeu o encargo do Führer de começar os preparativos para a fabricação, na Alemanha, de um automóvel tipo popular, confortável, econômico, seja no consumo de carburante, como no preço de custo. No mesmo ano foi construída a primeira sociedade anônima e durante o ano vindouro o “carro popular” trafegará normalmente nas grandes auto estradas do país. Atualmente estão sendo realizadas experiências com as primeiras trinta unidades desse novo tipo de automóvel. Estas experiências demonstraram que os carros não necessitam do mínimo reparo durante os primeiros 150 mil quilômetros. Outros 70 carros estão sendo atualmente construídos para novas experiências de consumo de carburante e de fabricação de carroceria. O carro popular terá 2,20 metros de comprimento², 1,55 de largura e 1,58 de altura, pesando exatamente 655 quilos. O novo automóvel oferecerá assento confortável para cinco passageiros, tendo sido previsto local para transporte de bagagem. O motor será da potência de 25 hp, colocado na parte traseira do carro, gastando no máximo 6 litros de gasolina por cada 100 quilômetros e um décimo de litro de óleo.
Esse novo carro poderá desenvolver uma velocidade de 100 quilômetros por hora. O preço da venda ao público será de 990 marcos. Os novos “carros populares” serão vendidos a cinco marcos por semana e mais um marco para seguro. Isto representa um dos maiores triunfos da técnica industrial, econômico e financeiro da Alemanha. Todas as máquinas destinadas às diferentes seções de produção e montagem já foram encomendadas. Na cidade de Braunschweig já foi construída uma fábrica para produção de peças avulsas e para a instrução dos operários que serão empregados na grande fábrica local. O orador depois de outros detalhes de natureza técnica pronunciou o elogio entusiasta do regime atual dizendo que dentro de poucos anos em volta da velha aldeia Fallersleben nascerá uma das mais belas cidades modernas, contando com um mínimo de 60.000 habitantes. Além disso o governo alemão fixará os preços de garagens, facilitando ainda mais a venda do novo tipo de automóvel “popular”.
(1) – ATENÇÃO – mais uma informação errada! O que foi feito naquela oportunidade foi o lançamento da pedra fundamental da fábrica — ocorrida na véspera desta publicação, no dia 26 de maio de 1938. A Fábrica, aliás, não chegou a ser completada, tampouco inaugurada, antes da II Guerra Mundial. A sua construção só foi completada, segundo seu projeto original, depois da Guerra. Aliás o próprio texto fala: “Todas as máquinas destinadas às diferentes seções de produção e montagem já foram encomendadas” — se foram encomendadas, não foram entregues e a fábrica não tinha como ser “inaugurada”.
(2) – Aqui ocorreu outro engano, pois o comprimento do carro era de 4,20 metros.
O Jornal – 27 de maio de 1938
Acessível a todo operário da Alemanha
Novo veículo denominado de “Carro da Força pela Alegria”¹
PALAVRA DO FÜHRER
FALLERSLEBEN², perto de Brunswick, 26 (U.P.) – O sr. Hitler, ao lançar a pedra fundamental da fábrica destinada à produção de automóveis populares, denominou o novo veículo de “Carro da Força pela Alegria”.
Uma grande multidão ouviu as explicações dadas por um dos engenheiros sobre este pequeno automóvel, que será construído em três tipos: turismo. limusine e cabriolé³, com motores de 24 cavalos e velocidade máxima de 100 quilômetros por hora, ao preço de 990 marcos.
No fim deste ano, será inaugurado um sistema de economia destinado a facilitar a aquisição desse novo veículo.
DISCURSO DO FUEHRER
O Führer começou o seu discurso às 13.30 horas e declarou que, quando concebeu a ideia do carro popular, “disseram que seria irrealizável”. “Mas o que é possível em outros países — acrescentou o sr. Hitler — também é possível na Alemanha. Odeio a palavra impossível”. O chefe do governo alemão declarou que o novo carro não competirá com os automóveis de alto preço.
“O automóvel — esclareceu o orador — é geralmente considerado como objeto de luxo. O que eu quero é um carro não para duzentas ou trezentas mil pessoas, mas um veículo que, graças ao seu preço baixo, possa ser adquirido por seis milhões de alemães”.
“HOJE, TODA A ALEMANHA TRABALHA”
O sr. Hitler reportou-se às péssimas condições econômicas da Alemanha quando os nazistas galgaram o poder, frisando que, então, existiam sete milhões de desempregados. “Hoje, toda a Alemanha trabalha”. O chanceler alemão disse que o carro será construído com materiais alemães, a despeito das dificuldades da produção do país.
Ao concluir, o sr. Hitler externou os seus agradecimentos aos homens “que tornaram esta obra possível”, mencionando o sr. Ley e o dr. Porsche, que desenhou o modelo. O primeiro apresentou o sr. Hitler dizendo: “Pai, tornastes esta obra possível. Ensinaste-nos que todas as grandes obras podem ser realizadas somente com um esforço comum”.
Referiu-se ao “Volkswagon” (grafia da notícia) como “realização favorita” do sr. Hitler e adiantou que nos fins do ano vindouro os primeiros carros já deverão estar funcionando.
TRINTA CARROS EM EXPERIÊNCIA
O engenheiro da construção, que falou a seguir, disse haverem sido fabricados, a título de experiência, trinta carros, que resistiram aos testes a que foram submetidos, havendo um deles percorrido cem mil quilômetros. O engenheiro Lawrenz revelou que o carro do povo terá 4 metros e 20 centímetros de comprimento e metro e meio de largura, devendo consumir seis a sete litros de gasolina e um décimo de litro de óleo em cada cem milhas de percurso.
Os carros poderão ser construídos para quatro ou cinco passageiros. O referido técnico salientou que três mil operários já estão trabalhando na fábrica e que em breve, esse número se elevará a seis mil. Acrescentou o aludido engenheiro que nas proximidades da fábrica, será edificada uma cidade, primeiramente para trinta mil habitantes, devendo ser mais tarde alargada para acomodar sessenta mil pessoas.
(1) “Carro da Força pela Alegria” é a tradução do alemão “Kraft durch Freude”, cuja sigla é KdF, que foi o nome escolhido pelo III Reich, por motivos políticos, para denominar o carro do povo. O KdF era um dos departamentos da DAF – Frente de Trabalho Alemã, cuja função precípua foi desviada passando, também, a cuidar do projeto do Fusca e da construção da fábrica. Para isso foi constituída em 1937 a Sociedade para o Desenvolvimento do Carro do Povo Alemão (GEZUVOR, a sigla em alemão) que depois se tornou Volkswagen GmbH. Na verdade, o departamento “Kraftt durch Freude” era um dos programas da DAF para proporcionar lazer ao trabalhador alemão, por exemplo, viagens coletivas de férias; que em princípio não tinham nada a ver com o projeto de um carro ou o projeto e a construção de uma fábrica. Mas foi este o jeito que Hitler encontrou para custear seu sonho do carro popular (visto o boicote da indústria automobilística alemã aos planos de carro popular do III Reich), sangrando gigantescos recursos financeiros da DAF que eram alimentados pelas contribuições sindicais de todos os trabalhadores alemães, justamente os meios para materializar o carro do povo oficial do III Reich. Daí se conclui que a fábrica e o Fusca foram pagos pelos trabalhadores alemães.
(2) – Fallersleben: O nome da região na qual a fábrica foi construída; somente durante a ocupação inglesa o nome mudou para Wolfsburg (Castelo do Lobo) nome de um castelo próximo à fábrica que existe até hoje.
(3) – Na nomenclatura corrente os tipos seriam: sedã, teto solar e cabriolé
O Jornal – 24 de julho de 1938
O CARRO POPULAR
Uma realização notável da técnica alemã
O Jornal publicou em 24 de julho de 1938 uma extensa análise sobre a viabilidade econômica do carro popular alemão. Esta análise foi feita pelo jornalista alemão Georg Bernhard, judeu e ativista de esquerda, que na época na qual escreveu esta matéria estava refugiado na França, pois sua permanência na Alemanha não era mais possível (daí a comparação de preços com carros franceses da época).
Este artigo diz, basicamente, que o preço de mil Reichsmarkd seria inviável numa economia aberta e só foi possível graças aos métodos particulares do III Reich; com base numa produção em massa — difícil de ser atingida e mantida.
Em resumo: quem bancava e subsidiava o carro era o Deutsche Arbeitsfront (DAF – sindicato único de trabalhadores alemães) — e, por consequência, todos os operários e trabalhadores alemães através de suas contribuições sindicais, ainda que não tivessem meios de comprar um KdF-Wagen… (aliás, tanto o caríssimo projeto do Fusca, quanto o projeto e a construção da fábrica também foram pagos assim).
No fim, o texto ainda afirma que o projeto é uma forma de acelerar a motorização do exército alemão. Talvez ele tivesse tido acesso ao “Exposé” de Porsche que já definia, de princípio que a mecânica do Fusca deveria servir, dentre outras finalidades, também “para certos fins militares”.
O Jornal – 18 de setembro de 1938
O automóvel do povo na Alemanha
É grande o número de pretendentes
A ação de economias para a compra do automóvel do povo, “K. d. F.”¹, mal principiou e já teve que ser suspensa, por enquanto, em muitos lugares da Alemanha, em vista do enorme número de pretendentes. Sendo o preço de compra de 1.000 Reichsmark² e a importância mínima a economizar 5 Reichsmark por semana, essa ação importa em que cada qual tome as suas disposições pelo espaço de duzentas semanas, número redondo, i.e., por um espaço de quase quatro anos.
O fato de principiar-se a economizar, já antes de principiarem a produção, preenche um fim duplo: o comprador tem tempo para juntar, em tempos, grande parte da importância para a compra, antes de adquirir o automóvel, simultaneamente se conseguindo os meios para se dar princípio à produção da fábrica de automóveis populares em vias de construção, fabrico este que, quanto à produção não se vê guiada pela tendência do lucro e sim, somente, pelo corolário de pensamentos sociais.
(1) – A grafia correta desta sigla é “KdF”, sem os pontos.
(2) – Reichmark era a moeda do III Reich, marcos do Reich.
O Jornal – 2 de outubro de 1938
OS CARROS POPULARES NA ALEMANHA
Da troca de ideias com o Jason destaco o texto abaixo. Ele, que trabalha no jornal O Globo, nos brinda com suas conjecturas de redator:
“Aqui, um texto legenda (ou TL, como chamamos no jargão das redações) do diário carioca “O Jornal” sobre a cerimônia da pedra fundamental da fábrica.
Essa foto é muito conhecida. O detalhe curioso é que o evento acontecera em 26 de maio de 1938 – e esse TL foi publicado na edição de 2 de outubro (4 meses e 7 dias depois do fato) …
A imprensa brasileira já havia noticiado fartamente a cerimônia. O próprio “O Jornal” saiu com uma caprichada cobertura apenas um dia depois do evento!
O que terá levado à publicação desse TL tanto tempo depois?
Sobrou espaço na seção dominical de automóveis, não havia o que pôr naquele espacinho de duas colunas imprensado entre anúncios, e o TL entrou como calhau (pequeno anúncio do próprio jornal usado para cobrir espaço publicitário ou de texto não utilizado conforme previsão)?
O texto veio por telegrama e a foto de navio?
Eu, pessoalmente, acredito que o redator de automóveis de “O Jornal” gostava tanto do projeto que arrumou uma desculpa qualquer para publicar a imagem e falar um pouco mais dos “carros populares” da Alemanha.
E note que ainda faltava um ano para a Segunda Guerra começar, mas o jornalista já previa o efeito que o confronto traria para a produção em Fallersleben/Wolfsburg.
O cara era bom mesmo: como naquela matéria de 1934, ele parece ter usado bola de cristal! Pena que nosso jornalista-vidente não assinava seu nome nos textos — ficaremos sem saber quem foi…”
Ainda tenho material para a Parte 3, que vai encerrar este estudo que irá até o ano de 1949, já “na véspera” da chegada do Fusca ao Brasil, quando passamos a ser coadjuvantes desta história.
AG
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