Quem contou esta história foi Gordon Wilkins, afamado jornalista e locutor automobilístico e esportivo inglês, que nasceu em 6 de outubro de 1912 e morreu em 11 de abril de 2007, aos 94 anos. Wilkins foi testemunha ocular deste grandioso evento tendo estado lá como convidado do governo alemão para, inclusive, experimentar um dos novíssimos KdF da pré-série.
E como ele também falava alemão pôde participar de todos os acontecimentos com toda a propriedade; isto ajudou em especial a entender os discursos feitos durante o lançamento. Wilkins fez o trabalho abaixo para a revista australiana Wheels, no qual me baseei para editar esta matéria.
Ressalto que a parte em que ele descreve a experiência de dirigir o KdF foi muito interessante para mim, já que eu tinha uma grande curiosidade de saber quais seriam as sensações ao testar aquele carro revolucionário para a época. E, sobretudo, passá-las para o leitor ou leitora.nesta coluna “Falando de Fusca & Afins”. Veja o que Gordon Wilkins contou.
Um monumental lançamento
Foi o lançamento de carro mais grandioso já visto. Nada como visto antes ou depois; um lançamento adequado para o que se tornaria o carro mais vendido do mundo. Eu sei porque eu estava lá.
O programa teve um início espetacular com Hitler e membros importantes de seu governo em uma frota de Mercedes-Benz sedãs e cabriolés dirigindo da Chancelaria em Wilhelmsplatz até o Kaiserdamm, onde ficava o Salão do Automóvel de Berlim. Passando através de ruas fechadas ao tráfego e ladeadas por milhares de camisas-marrons, soldados da milícia motorizada do partido nacional-socialista, o NSKK (Corpo Motorizado Nacional-Socialista), a SS (Schutzstaffel, esquadrão de defesa) vestida de preto, e os trabalhadores do Arbeitsfront – Frente de Trabalho. Estava frio e tinha chovido, então havia sobretudos sobre os camisas-marrons, além dos habituais capacetes de proteção pretos ou bonés forrageiros e botas de cano alto.
De repente, vieram os berros dos escapamentos dos carros de Grand Prix Auto Union e Mercedes-Benz e o estouro dos escapamentos dos BMW 328 brancos e dos motociclistas que escoltavam o comboio oficial. Nós, visitantes estrangeiros, pudemos assistir aos preparativos, mas não ao comboio de alta velocidade em si, pois tínhamos que estar em nossos lugares reservados na cerimônia de abertura.
O governo havia assumido o Salão do Automóvel, mas a indústria automobilística teve de pagar a conta. O auditório era dominado por uma gigantesca águia dourada diante de altas cortinas vermelhas. Abaixo estava a tribuna para os oradores e, de cada lado dela, um Volkswagen. Atrás da tribuna, uma longa fila de trompetistas do NSKK e dezenas de porta-estandartes, cada um com seu estandarte com a suástica vermelha.
Um representante da indústria automobilística fez o primeiro discurso e, em seguida, Joseph Goebbels, ministro da Propaganda, avaliou o progresso na expansão do mercado automobilístico desde que Hitler aboliu os onerosos impostos sobre automóveis. Por fim, o próprio Hitler apareceu com um paletó marrom e calças pretas, bem mais impressionantes do que as calças largas e as botas de cano alto que às vezes usava. Foi um longo discurso com o familiar rosnado e os punhos, cerrados. Mais uma vez, ele exaltou as virtudes do Volkswagen que agora decretou que deveria ser chamado de KdF para identificá-lo com a Frente de Trabalho Alemã, fonte de facilidades como entretenimento subsidiado e cruzeiros de férias para os trabalhadores, cujo lema era KdF – Kraft durch Freude (“Força pela Alegria”), e que cuidaria da distribuição do novo Carro do Povo.
Entre os outros pontos do discurso, “o peso do carro deve ser reduzido para promover um funcionamento mais econômico … os carros devem usar mais plásticos e materiais sintéticos … Precisamos de menos modelos para reduzir os custos aos preços que as pessoas podem pagar.”
Os tambores começaram a rufar, o grande público se levantou e cantou Das Lied der Deutschen (A Canção dos Alemães, o hino nacional alemão), seguido pela canção nacional-socialista de Horst Wessel (que era um tipo de hino paralelo). As ricas cortinas vermelhas se abriram e, sob os holofotes, lá estava o Salão do Automóvel. Ou parte dele, pois o mesmo encheu nove alas com carros, motocicletas, caminhões, ônibus, materiais e acessórios.
Não havia Volkswagens à venda, mas o chassi ocupava o lugar central no Hall da Fama, cercado pelos aerodinâmicos carros de recorde de velocidade da Mercedes-Benz e da Auto Union, um Hanomag a diesel que quebrou um recorde, BMWs e motocicletas vencedoras de corridas.
O governo “limpou” a outrora famosa vida noturna de Berlim, mas o Salão do Automóvel era o foco de muitos eventos sociais e fui convidado pelo Dr. Goebbels para uma festa brilhante no Hotel Adlon. Os convidados foram recebidos pela bela Frau Goebbels e como seu portfólio incluía o controle da indústria cinematográfica, havia aspirantes a estrelas ao lado de nomes consagrados. O Baile Schnauferl, equivalente ao jantar anual do nosso Veteran Car Club Britânico, foi um evento mais descontraído, com menos uniformes e cidadãos mais circunspectos em trajes de gala. Em vez de dançar “foxtrotando” com jovens loiras a fim de um casamento, me vi dançando com senhoras mais maduras e de constituição física mais robusta…
A esperada hora de dirigir
Às oito horas da manhã, um Volkswagen de pré-produção, construído a um custo enorme, cada um com seu motorista em uniforme SS preto, nos buscou em nosso hotel para dirigirmos o KdF. No momento em que pararam, foram cercados por uma multidão que tentava vislumbrar o carro para o qual dezenas de milhares já estavam compravando selos de poupança para colar em suas cartelas que, quando completadas, seriam trocadas por um carro novo (coisa que depois não viria a ocorrer).
Na Autobahn, nos acomodamos para trafegar mantendo a velocidade máxima de 100 km/h do carro. As comparações com os carros existentes eram difíceis porque este foi projetado para abrir um novo mercado não atendido pela indústria existente, cujos analistas disseram que o preço de Hitler de 990 Reichsmarks (marcos imperiais, moeda da época) era impossível.
O carro era maior que os nossos Austin Sevens e Morris Minors, mais espartano em equipamento e acabamento, e mais avançado em aparência e design. Sua dianteira em caimento e seus faróis embutidos, a curva suave do teto até a traseira, representavam a aerodinâmica como entendida na época. A aceleração era lenta, mas a marcha longa o fazia parecer mais relaxado e silencioso do que nossas pequenas “caixas de zumbido”, embora a ventoinha de arrefecimento uivasse na parte traseira. Havia um aquecedor rudimentar que não tínhamos em nossos “inglesinhos”; e suspensão totalmente independente, algo desconhecido nos pequenos carros britânicos. O rodar era um pouco desconfortável em baixas velocidades, mas o KdF lidou bem com paralelepípedos.
O motor boxer de 985 cm³ arrefecido a ar era superquadrado, com grande diâmetro de cilindro e curso de pistão curto (70 x 64 mm), o que teria acarretado uma pesada tributação na Grã-Bretanha, onde o imposto era baseado no tamanho do diâmetro de cilindro, mas garantiu baixa velocidade do pistão que, com coletores de admissão de pequeno diâmetro para manter a potência máxima de 20 cv, contribuiu para sua capacidade de poder manter a velocidade máxima indefinidamente. O consumo médio de combustível declarado era de 18,3 km/l. Apesar do câmbio longo, um peso de apenas 580 kg permitiu um desempenho melhor nos passos de montanhas do que seus contemporâneos mais pesados com potência de motor semelhante.
No painel de instrumentos havia dois mostradores: um o velocímetro, o outro simplesmente um diagrama mostrando as posições das marchas. Três interruptores, para as luzes, os pequenos e lentos limpadores de para-brisa e os indicadores de direção semfóricos instalados nas colunas centrais. Lá embaixo, uma torneira de combustível com posição reserva em vez de um medidor de nível do tanque. Havia grandes pontos cegos nos cantos superiores curvos do para-brisa e olhar pelas minúsculas janelas traseiras era como olhar pelo buraco de uma fechadura. Os bancos estofados com tecido, embora duros e difíceis de ajustar, tinham uma boa forma.
Mais tarde fiz outro teste. Para engatar uma marcha mais baixa para acelerar, era necessário dar dupla embreagem, pois não havia sincronização. Mas qualquer tentativa de curvas mais rápidas produzia saída de traseira feroz. Os estreitos pneus dobravam sob os semieixos oscilantes, o pneu externo com câmber para o lado errado, havia perda de aderência e a traseira escapava. Este Besouro podia morder.
A direção rápida, precisando de apenas 2,5 voltas de batente a batente, dava aos motoristas experientes uma chance esportiva de recuperar o controle, mas este carro seria vendido para motoristas inexperientes. O Professor Porsche conhecia o problema. Embora tentasse reduzir cada centavo do custo para cumprir a meta de preço de Hitler, ele aceitou o custo dos cabeçotes de alumínio e fundições de magnésio para a carcaça e a caixa de câmbio para reduzir o peso na parte traseira.
A Comissão Técnica Britânica, a Ford Motor Company, o Rootes Group e outros que consideraram o Volkswagen um veículo bruto, sem futuro comercial, foram ridicularizados desde então por terem dito isso, mas na época eles estavam certos. Não teria sido possível vender aquele Besouro original para britânicos ou americanos em 1939 ou em qualquer momento. Os oficiais do Exército britânico que o colocaram em produção depois da guerra já o estavam aprimorando.
Trinta anos depois desta experiência Gordon Wilkins visitou Wolfsburg onde viu o seu conhecido KdF nº 3. Daquele pequeno lote de Volkswagens pré-guerra, apenas um sobreviveu, o terceiro da série. A VW conseguiu comprá-lo de volta depois de uma vida difícil em que cobriu 485.000 quilômetros. E nesta visita ele perguntou se poderia dirigi-lo novamente. Fazia seis anos que não funcionava, mas uma pequena remoção de ferrugem do tanque e do tubo de combustível, e uma bateria nova, eram tudo o que era necessário.
No que ele comentou: “É o mesmo carro que dirigi pela primeira vez em Berlim em 1939, esta máquina tem um passado e tanto. A história deste carro podia ser traçada praticamente até o momento da abertura do Salão do Automóvel de 1934, quando Adolf Hitler reclamou amargamente que seus leais alemães não podiam comprar um carro para usar nos fins de semana enquanto a maioria dos americanos podia.”
Sim, deve ter sido uma experiência e tanto participar daquele megaevento em Berlim em fevereiro de 1939. E para nós ficam as impressões dele e o conhecimento de como foi lançado o primeiro Fusca pelo próprio Hitler, o homem que o “encomendou” a Ferdinand Porsche.
AG
Gordon Wilkins produziu a sua matéria original para a editoria inglesa para a qual ele trabalhava em 1939. Anos depois ele colaborou com a revista australiana Wheels, isto em 1998, recontando a história. A Wheels republicou este trabalho em 2016. Já a história do reencontro do Wilkins com o KdF nº 3 foi reportada na edição de julho de 1968 da revista americana Mechanix Illustrated. Parte do material fotográfico é da Wheels e o restante foi resultado de uma longa pesquisa na internet. Por muitos anos as fotos dos tempos do nacional-socialismo na Alemanha eram proscritas. Muito material acabou se perdendo e ficou muito difícil encontrar material daquela época nos dias de hoje.
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