Neste causo o Alfredo Ralisch fala sobre o seu primeiro automóvel e as peripécias que ambos passaram. Tem de tudo um pouco: de ralis à ida de São Paulo a Brasília para assistir à uma corrida de Fórmula 1, passando por um assalto à mão armada. Sua leitura certamente deixará para uns a sensação de ter vivido algo parecido e para outros, um sabor de saudade. Detalhe para a ação educadora de sua mãe, Dona Ruth, ensinando primeiro seus filhos, depois seus netos, a dirigir.
Eu e meu primeiro automóvel, um Fuscão 1971
Por Alfredo Ralisch
Introdução
A história começa bem lá atrás, no início da década de 60, com meu irmão Eduardo e eu começando a dirigir um Fusca 1959, lógico não podia ser outro, que era de nossa saudosa mãe, falecida em 2016. Ela nos levava num grande loteamento com muitas ruas, todas asfaltadas e sem nenhum trânsito, perto da rua Vergueiro mais próximo da Rodovia Anchieta. Nessa época morávamos no Jardim da Saúde.
Eu tinha uns onze anos e lá íamos aos domingos e lá ficávamos uma, duas horas dirigindo naquelas ruas bem tranquilas. Era uma briga porque nenhum dos dois queria andar menos que o outro. Esta área me parece que foi depois um grande ferro-velho de carros abandonados.
Essa liberdade que nossa mãe deu, permitindo que dirigíssemos tão cedo, também a deu aos seus quatro primeiros netos, levando-os para dirigir numa região isolada, mas toda asfaltada, atrás de Alphaville. Isso já nos anos 90, correndo um sério risco de ser pega, sofrendo as consequências. Se ela já foi assim com os filhos, imaginem sendo avó o que não faria para os netos.
Anos se passaram, mudamos de casa, indo morar na antiga rua Botafogo, no Jardim Prudência e meses antes de eu completar dezessete anos meu pai às vezes saia comigo para eu treinar a dirigir.
Num domingo eu estava dirigindo com ele do lado, nas ruas bem desertas perto de casa, que na época era só mato e sem qualquer casa, quando dou de cara com um veículo policial vindo em sentido contrário. Apavorado pergunto ao meu pai: O que faço? E ele: siga em frente.
Cruzei com o carro de polícia e pouco depois de o cruzarmos a viatura parou e meu pai vendo que a viatura havia parado, pediu para que eu parasse também.
Conclusão, após um sermão que tomamos, fomos todos, inclusive os guardas, para nossa casa não longe dali com minha mãe oferecendo a eles bolo e refrigerantes. Estávamos salvos, principalmente meu pai que era o responsável.
Tempos depois, em novembro, eu completaria dezessete anos e comecei o processo para tirar carteira de motorista.
Poderão estar perguntando, como tirar carta com apenas 17 anos?
Sim, isso foi possível porque entre meados de 1968 até aproximadamente meados de 1969, foi o único período em que se permitia menores de 18 anos dirigir. Que sorte a minha!
Seguindo o protocolo da época, como primeiro passo seria obter do Juizado de Menores um documento no qual meus pais me autorizavam e seriam responsáveis pelo fato. Lá fui eu com eles, acho que ali no começo da avenida Brigadeiro Luís Antônio.
Fiz as aulas teóricas e práticas e em 20 de fevereiro de 1969 eu, um pirralho e magro que dói, recebi minha carteira de habilitação. Quatro parágrafos abaixo eu explico porque dessas observações.
Conheço só dois colegas meus que também tiveram a oportunidade de tirar a carta de motorista nestas condições, um deles Klaus E. Hübbe, que por coincidência o Alexander Gromow conhece e foi, digamos, seu vizinho de rua, e o outro, Pedro Saraiva, que é também colega do Klaus.
Maravilha, agora eu podia sair por aí sem me preocupar sabendo que eu estava dentro da lei, porém como obviamente eu ainda não tinha carro, eu utilizava o carro da minha mãe, um Fusca 1969, branco.
No ano seguinte ela trocou de carro, agora uma Variant 1970, vermelha.
Nesse quase um ano dirigindo, com cara de moleque que eu tinha, fui parado algumas vezes na rua pela fiscalização para me identificar e em duas oportunidades fui parar em delegacias para dar explicações do porquê eu, menor, já tinha carta, visto que os policiais que me fizeram conduzir até a delegacia não acreditavam e não conheciam a lei. Eu até andava com um recorte de jornal onde mostrava o tal decreto.
Nesse mesmo ano eu me preparava para fazer o meu primeiro vestibular em dezembro no Mackenzie. Um mês antes, no meu aniversário, eu tive o privilégio de receber de meu pai, de presente, meu primeiro carro. Carro não, era um Fusca!
Aqui começa a minha história com ele
Era nada menos que um Fusca 1500 modelo 1971, cor laranja Granada, zero- km!
A partir de então era poder curtir o meu Fuscão, ainda todo original e as primeiras saídas que me lembro foi ir com ele, em dezembro, prestar o vestibular no Mackenzie e em janeiro para a Cidade Universitária, nas instalações da Poli, fazer o vestibular unificado MAPOFEI. Acabei passando em ambos, mas optei pela FEI, para cursar a Eletrônica. Minha opção no Mackenzie tinha sido o curso de Mecânica.
Equipando meu Fuscão
Não demorou muito para eu começar a equipá-lo, primeiro instalando, por um breve período, um “trambolhão” toca-fitas ainda tipo cartucho que meu saudoso pai havia trazido numa viagem que ele fez à Europa. O problema era a pouca variedade e opções de músicas.
Logo depois surgiram os famosos toca-fitas tipo cassete (K7), Roadstar, Mitsubishi e TKR, bem mais compactos. Eu instalei um da marca Mitsubishi, exatamente o da foto abaixo, que por sinal tenho ainda comigo, como relíquia.
Foi uma febre e como havia muita procura, o roubo desses toca-fitas se tornou comum. Para evitar o roubo eu utilizava, como muitos fizeram, uma gaveta removível e toda vez que saía do carro tinha que levar o toca-fitas comigo. Um estorvo:
A grande vantagem foi terem surgido os gravadores de fitas K7 que permitiram que gravássemos as músicas preferidas.
Pouco depois instalei no assoalho de metal, atrás dos pedais, debaixo do tapete, uma chave tipo H, onde eu interrompia o fio da ignição dificultando seu roubo e também um volante esportivo marca F1 (com o logotipo F1 no centro do volante), semelhante ao da imagem abaixo, de 31 cm de diâmetro, que era fabricada por uma empresa localizada em Diadema.
O que faltava ainda para ele ficar com um ar mais esportivo? Rodas “tala larga” e o famoso escapamento Kadron com saída lateral.
Colocar o escapamento foi mais fácil, mas minha grana era curta e não tinha o suficiente para comprar as tais rodas e respectivos pneus, então utilizei um recurso que existia na época em colocar nas rodas traseiras um alargador, um espaçador de alumínio e magnésio de 5 cm de largura, fazendo com que as rodas ficassem mais rentes ao para-lamas, dando um ar um pouco mais esportivo, como pode-se notar com um pouco de dificuldade na foto pouco mais abaixo.
As rodas de aço originais, por sua vez, tinham a cor laranja, a mesma da cor do carro e foram por mim pintadas com a famosa “bomba de Flit”. Deu trabalho, já que tirei os pneus para poder fazer um serviço mais apresentável.
Aliás, eu o apelidei de ZARKUS, fazendo referência a cor do carro que parecia a tinta de fundo ou zarcão e tinha um adesivo com esse apelido aplicado no vidro traseiro que eu fiz com contact branco.
Outra adaptação que eu fazia com frequência nos Fuscas era entortar o encosto do banco do motorista, fazendo-o inclinar à força, visto que só havia três regulagens fixas.
Descíamos com frequência para o litoral norte. Para se chegar em alguma praia entre Bertioga e São Sebastião, ou mesmo Ilhabela, descíamos por Guarujá até Bertioga, passando pela balsa e depois, pela BR-101, ainda sem asfalto.
Nesse trecho, aliás, passei bons bocados, passando por grandes lamaçais quando chovia, mas bravamente enfrentado pelo meu Fuscão.
A outra opção era pela via Dutra, já que não existia ainda a rodovia Ayrton Senna, até São José dos Campos e depois pegando a estrada de São José dos Campos até Caraguatatuba pela Tamoios que era naquele tempo uma pista simples relativamente estreita, cuja serra era bem complicada e perigosa para descer. Klaus e eu descíamos a serra feitos doidos, mas nunca tivemos qualquer incidente. Hoje fico pensando o quanto irresponsáveis fomos.
A foto abaixo eu tirei em 1972 quando, no Carnaval, acampei em um Camping na Praia da Lagoinha em Ubatuba, que lá existe até hoje, com dois colegas meus, Sidney Engelbrecht, infelizmente já falecido e John Ramcke, que aparece mais duas vezes nessa história.
A situação de ter que passar por lama eu encontrava também quando íamos à Praia de Guaraú visitar a casa do pai do meu colega Alan Trost, com quem tive outras aventuras que conto mais à frente, tendo que passar por um morro para lá chegar depois de Peruíbe. Quando chovia aquela estradinha dava muito trabalho. Lembro-me de uma ocasião em que na subida o meu Fusca derrapava e dois colegas tiveram que sair do carro e subir no para-choques traseiro para dar maior tração. Não foram poucas as vezes que tiveram que empurrar e ajudar a subir, mas como o carro era leve sempre conseguíamos sair do apuro, nunca precisando de outro carro para puxar, afinal era um Fusca!
Incontáveis as vezes que fui com ”ele” à FEI, que ficava em São Bernardo do Campo, basicamente uma viagem, e alguns “ralis”, como menciono mais à frente, para lá chegar.
Dando carona para minha avó materna
Dona Ignês, a mãe da minha mãe que se chamava Ruth, ambas já falecidas, foi uma fumante inveterada. Fumou até os últimos dias de sua vida. Já não tragava, mas acendia quase que um cigarro no outro.
Bastava ela entrar em qualquer carro para acender seu cigarro. Acendia com fósforo e muitas vezes com o cigarro invertido, queimando o filtro.
Bem, porque conto esta história?
Meu Fuscão tinha um acabamento, acho em material vinil, imitando madeira no painel e o cinzeiro, como todos sabem, ficava na parte inferior bem no meio, evidentemente para que tanto o motorista como o passageiro tivessem acesso.
Quando eu tinha que dar carona para minha avó, que era bem pequena, ela vinha sentada no banco da frente numa posição bem baixa e como na época não se utilizava cinto de segurança, toda vez que eu tinha que frear ela se inclinava para frente.
Era sistemático, ela entrava no carro e procurava acender o cigarro. Não havia meio de convencê-la a não fumar. Eu já sabia e como eu nessa época também fumava, para evitar problemas, eu acendia o cigarro para ela.
O problema era quando ela queria jogar a cinza do cigarro aceso no cinzeiro. Era um tal de balançar para cá e para lá, cutucando o painel com o cigarro. Eu ficava desesperado, não sabendo se prestava mais atenção no trânsito ou no cigarro dela!
Algumas pequenas manchas de queimado acabaram ficando no painel chamuscado.
Participações em ralis
Meu irmão Eduardo já participava de ralis como navegador com outro colega chamado Oscar Neves, prematuramente falecido, que tinha um Puma VW azul e isso fez com que eu começasse a me interessar, e com a ideia amadurecendo, em 1972 resolvi então participar com meu Fuscão de alguns ralis de regularidade, cujo navegador foi meu, já mencionado, colega Alan.
Conseguimos um patrocínio da Amortex do grupo Sachs, que fabricava discos e platôs de embreagem, porque o pai do John Ramcke, aquele mesmo que acampou comigo, trabalhava lá. Montamos uma mesa de madeira na frente do banco do navegador utilizando como suporte o porta-luvas aberto (hoje impensável por causa da segurança), onde colocávamos a máquina de calcular Facit e um cronômetro centesimal analógico.
Fazíamos a aferição do hodômetro do Fuscão nos primeiros quilômetros na rodovia Castello Branco e o cronômetro aferíamos com a antiga Rádio Relógio Federal do Rio de Janeiro, que emitia um bip a cada minuto.
Uma de nossas participações foi no VI Rallye Universitário no ano de 1972 (foto de abertura), até fazendo uma boa corrida, mas não me lembro que colocação obtivemos. Pesquisando no site do Centauro Motor Clube verifiquei que a vitória coube a dupla Decimo Mazzocato Jr./Nélson Bernardo com uma Belina 1300.
Houve uma sexta-feira em que estávamos na frente de casa preparando o carro para um rali de que participaríamos no dia seguinte.
Eu estava sentado no banco do motorista e o Alan no banco de passageiros, ambos concentrados na instalação da mesa e acessórios e não percebemos a aproximação de dois bandidos armados, um de cada lado do carro. Uma sensação terrível ver o cano do revólver bem próximo do rosto. Conclusão: levaram meu Fuscão todo montado e pintado, caracterizado do jeito que estava, preparado para o rali.
Foram meio idiotas porque com o carro todo caracterizado, com quatro baitas números 191, foi muito fácil a polícia identificá-lo e localizá-lo. Pouco tempo depois foi localizado na favela do Jardim Miriam. O carro fora utilizado para fazer outro furto, porque quando a polícia localizou o veículo havia um relógio de pulso entre os bancos dianteiros. O pior foi não poder participar do rali no dia seguinte e ainda perder o dinheiro da inscrição. Não me lembro se os equipamentos foram levados.
Muitas vezes eu ia para a faculdade com meu Fuscão “fazendo rali”, todo caracterizado e pintado e às vezes até com a mesa com os acessórios instalados.
Fórmula 1 em Brasília
No começo do ano de 1973 eu ganhei um Fusca 1300, amarelo, ficando meu Fuscão para o meu irmão Eduardo, que nessa época tinha um pouco mais de dezoito anos.
A foto abaixo, do meu novo carro, eu tirei quando viajei com o John Ramcke a Brasília para assistir a única corrida de Fórmula 1 que lá ocorreu, mas não válida para o campeonato, isso já em 3 de fevereiro de 1974.
O Eduardo foi também, mas com o Oscar, seu colega de rali, com o Puma VW.
A corrida de 40 voltas, que teve apenas doze carros, terminou pouco antes das 13 horas, com a vitória de Emerson Fittipaldi em seu McLaren, com seu irmão Wilson Fittipaldi chegando em 5º e José Carlos Pace (o Moco) em 9º.
Teve a participação ainda de alguns pilotos famosos como Carlos Reutemann, Jody Scheckter, James Hunt, Jean-Pierre Beltoise, entre outros.
Saímos do autódromo logo após a corrida, almoçamos, abastecemos os carros e começamos a viagem de volta para São Paulo.
Na foto abaixo, já na estrada, visto do vidro traseiro do meu Fusca, o Puma azul do Oscar.
Acampando no Carnaval de 1973
Voltando à história do Fuscão, no Carnaval de 1973 fomos acampar em Ilhabela com uma grande turma, colegas da escola. Eu fui de Variant emprestada da minha mãe, por ter mais espaço e poder levar toda a tralha e meu irmão foi com o Fuscão, que nessa época já era dele.
Retornando à noite para São Paulo, num comboio, meu irmão vinha com o Fuscão pela Dutra atrás de um dos carros de um dos colegas, na pista da esquerda, já chegando em São Paulo. Um carro que estava pista da direita, se assustou ao ver a cerca da ponte muito perto, pois na ponte não havia acostamento, desviando para esquerda. O carro da frente freou forte, o Fuscão arrastou os pneus e bateu na traseira dele. Felizmente só danos materiais.
Não me lembro qual foi o destino do Fuscão, sei que meu irmão o vendeu e comprou um Brasília amarelo 1974, zero-km.
O Fuscão deixou muitas saudades por ter sido, de fato, o meu primeiro automóvel.
Uma particularidade: o Klaus tinha um Fusca branco, o Pedro, um Puma DKW, o Alan . um Land Rover não me lembro de que série, o Sidney, um VW 1600 TL e o John, um Citroën Traction Avant 11, normalmente preto, mas que ele pintou de amarelo.
Agradeço ao Alfredo Ralish por mais esta participação aqui na coluna “Falando de Fusca & Afins” com sua recordações ligadas a Fuscas em sua juventude. Mais interessantes histórias acrescentadas ao acervo de causos desta coluna. Reitero o convite aos leitores e leitoras que tenham seus causos que os enviem para o acervo, análise e eventual publicação.
AG
Um esclarecimento quanto as fotos: elas foram recuperadas de slides que já estavam com ataque de fungos, foram lavados e tratados, mas a nitidez sofreu. As fotos foram mantidas mesmo assim dado o seu contexto com a matéria e são de autoria do Alfredo. Já as fotos de produtos, são resultado de pesquisa na internet, buscando exemplificar estes dispositivos de época.
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