Há vários motivos que consolidam a F-1 como a categoria mais importante do automobilismo mundial. Nessa lista aparecem itens que vão desde sua presença regular na TV até a tecnologia de ponta que a especialidade cria e aplica em automóveis muito além do que a palavra peculiar pode descrever. Quanto maior o capital disponível para administrar uma equipe, maiores são as chances de vencer corridas e conquistar títulos; a atual situação que a Ferrari atravessa está aí para provar que esse paradigma é fraco para ser tomado como absoluto. Há outros exemplos para ratificar esta afirmação, como as tentativas da Honda e da Toyota em estabelecer suas próprias equipes. O caso da Scuderia, orgulho italiano e paixão mundial (foto de abertura), é único e envolve o programa Mission Winnow, marca da Philip Morris para comercializar cigarros eletrônicos.
Como já citei o fator econômico, continuemos por aí: historicamente nunca faltaram recursos financeiros para o time mais antigo da modalidade. A época de grids que tinham três ou quatro carros da marca é coisa do passado, mas se as corridas ficaram muito caras, os programas mais sacrificados foram os de protótipos e GTs, atividade hoje terceirizada. O máximo que a equipe de F-1 sofreu foi a redução para dois monopostos, algo regulamentado pela categoria. A cada novidade imposta pela FIA, Maranello jamais se privou de ter equipamentos extras (caso dos sistemas de abastecimento rápido usados nas décadas de 1990 e 2000, teoricamente limitados a dois por equipe) e não há registro de algum piloto que recebeu salário atrasado. Pelo contrário, há casos em que receberam para deixar de pilotar os carros vermelhos…
O faturamento anual da Ferrari superou € 3,7 bilhões em 2019, montante que tem origem diversificada. Passam pela venda de automóveis de rua e competição, manutenção e restauração de modelos clássicos, venda e manutenção de carros de F-1 a colecionadores, exploração do nome em negócios como parques temáticos (em Abu Dhabi e Barcelona), licenciamento da marca em produtos diversos, patrocinadores, o aluguel de unidades de potência e câmbios para as equipes Alfa Romeo-Sauber e Haas, a premiação por pontos no campeonato e um bônus extra.
Esse extra foi inventado por Bernie Ecclestone, que justificou a importância histórica da equipe pata tal privilégio. Enzo Ferrari era tão especial para o inglês que o italiano é destaque em um porta-retratos do seu escritório em Londres. Se tampouco é difícil encontrar similitudes entre ambos, a começar pelo modo autocrático com que ambos gerenciavam suas equipes e negócios, há diferenças entre eles. Bernie é um negociante de palavra, frio e implacável. Enzo não era tão fiel aos acordos e blefava em abundância, a ponto de vender o mesmo carro duas vezes.
Não há marca de automóvel no mundo que desperte maior paixão e desejo que a Ferrari: Porsche, Lamborghini e McLaren são algumas marcas de prestígio que tentam, sem sucesso, causar tanto impacto quanto a da província de Modena. Lembro de um padre que toca o sino de Maranello a cada vitória do cavalinho, de um jornalista carioca que exibia orgulhosamente o brasão de fundo amarelo em seu Gurgel… eu mesmo guardo com carinho um conjunto de biela e pistão de um motor de 3.0 de F-1 que ganhei em uma das vezes que estive em Maranello. Tão nobre sentimento abarca também pilotos de F-1 e 9,99 entre cada 10 daqueles contratados pelo time italiano declaram que “desde criancinha eu sonhava em pilotar esses carrinhos vermelhos”.
Ocorre que uma paixão solitária não faz verão, especialmente quando os rivais aliciam cérebros privilegiados de Maranello a abdicar da gastronomia italiana para trabalhar no interior da Inglaterra em troca de pequenas fortunas. Evitar a fuga de gênios é uma qualidade de grandes líderes e esta pode ser a consequência mais grave da crise 2020 que assola a Ferrari: se o motor de 2019 é mais do que simplesmente algo ilegal e triste lembrança, nem mesmo o chassi de 2020 se salva nesse clima de pandemônio. Ver Charles Leclerc e, principalmente Sebastian Vettel fora dos 10 primeiros do grid do GP da Bélgica (veja aqui o resultado completo da prova) e disputar posições com equipes de recursos mais limitados que usam o mesmo trem de força é digno de filme de terror para qualquer tifosi.
Convivi com alguns nomes que trabalharam e até chefiaram o “Riparto Corsa” de Maranello, em um ou outro caso com certa intimidade; tal privilégio me leva a crer que o exercício da liderança sempre foi o calcanhar de Aquiles da casa. Para grande temporada da Ferrari sempre houve um líder destacado, como Luca Di Montezemolo (o mais longevo) Mauro Forghieri, Jean Todt e até mesmo Ross Brawn. Seria então Mattia Binotto o culpado da vez? Giancarlo Minardi, ex-proprietário da equipe que serviu de base para a atual AlphaTauri e que conhece Maranello como poucos, não acredita:
“Não está claro qual o poder que Binotto no comando da equipe. Será que ele tem força para decidir as coisas lá dentro?”
As ações da Ferrari são comercializadas como RACE nas bolsas de Milão e Nova York e 67% estão nas mãos de investidores diversos. Piero Lardi, filho de Enzo, tem 10% e os restantes 23% são administrados pela Exor, empresa com base em Amsterdã e controlada por John Elkann, o escolhido pelo avô materno Gianni Agnelli para administrar a fortuna da família. Desde que assumiu o comando da FCA (Fiat Chrysler Automobiles), em 2014, ele fez crescer substancialmente o valor da empresa. Está na hora do executivo bem-sucedido que comanda mais de 15 empresas fazer a Ferrari viver novamente a saga da Fênix, algo que usou em uma série de podcasts difundidos em 2018 para justificar a criação da FCA. Quem sabe um olhar carinhoso de sua parte ajude a Scuderia renascer das cinzas e fazer jus ao nome do produto que é seu principal patrocinador.
WG
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