Há vários motivos que consolidam a F-1 como a categoria mais importante do automobilismo mundial. Nessa lista aparecem itens que vão desde sua presença regular na TV até a tecnologia de ponta que a especialidade cria e aplica em automóveis muito além do que a palavra peculiar pode descrever. Quanto maior o capital disponível para administrar uma equipe, maiores são as chances de vencer corridas e conquistar títulos; a atual situação que a Ferrari atravessa está aí para provar que esse paradigma é fraco para ser tomado como absoluto. Há outros exemplos para ratificar esta afirmação, como as tentativas da Honda e da Toyota em estabelecer suas próprias equipes. O caso da Scuderia, orgulho italiano e paixão mundial (foto de abertura), é único e envolve o programa Mission Winnow, marca da Philip Morris para comercializar cigarros eletrônicos.
![](https://www.autoentusiastas.com.br/ae/wp-content/uploads/2020/09/20200901-Coluna-Ferrari-FWW-K-Evo.jpg)
Como já citei o fator econômico, continuemos por aí: historicamente nunca faltaram recursos financeiros para o time mais antigo da modalidade. A época de grids que tinham três ou quatro carros da marca é coisa do passado, mas se as corridas ficaram muito caras, os programas mais sacrificados foram os de protótipos e GTs, atividade hoje terceirizada. O máximo que a equipe de F-1 sofreu foi a redução para dois monopostos, algo regulamentado pela categoria. A cada novidade imposta pela FIA, Maranello jamais se privou de ter equipamentos extras (caso dos sistemas de abastecimento rápido usados nas décadas de 1990 e 2000, teoricamente limitados a dois por equipe) e não há registro de algum piloto que recebeu salário atrasado. Pelo contrário, há casos em que receberam para deixar de pilotar os carros vermelhos…
O faturamento anual da Ferrari superou € 3,7 bilhões em 2019, montante que tem origem diversificada. Passam pela venda de automóveis de rua e competição, manutenção e restauração de modelos clássicos, venda e manutenção de carros de F-1 a colecionadores, exploração do nome em negócios como parques temáticos (em Abu Dhabi e Barcelona), licenciamento da marca em produtos diversos, patrocinadores, o aluguel de unidades de potência e câmbios para as equipes Alfa Romeo-Sauber e Haas, a premiação por pontos no campeonato e um bônus extra.
![](https://www.motoresclassicos.com.br/wp-content/uploads/2020/08/20200901-Coluna-Ferrari-ABuDhabi.jpg)
Esse extra foi inventado por Bernie Ecclestone, que justificou a importância histórica da equipe pata tal privilégio. Enzo Ferrari era tão especial para o inglês que o italiano é destaque em um porta-retratos do seu escritório em Londres. Se tampouco é difícil encontrar similitudes entre ambos, a começar pelo modo autocrático com que ambos gerenciavam suas equipes e negócios, há diferenças entre eles. Bernie é um negociante de palavra, frio e implacável. Enzo não era tão fiel aos acordos e blefava em abundância, a ponto de vender o mesmo carro duas vezes.
![](https://www.motoresclassicos.com.br/wp-content/uploads/2020/08/20200901-Coluna-Binotto.jpg)
Não há marca de automóvel no mundo que desperte maior paixão e desejo que a Ferrari: Porsche, Lamborghini e McLaren são algumas marcas de prestígio que tentam, sem sucesso, causar tanto impacto quanto a da província de Modena. Lembro de um padre que toca o sino de Maranello a cada vitória do cavalinho, de um jornalista carioca que exibia orgulhosamente o brasão de fundo amarelo em seu Gurgel… eu mesmo guardo com carinho um conjunto de biela e pistão de um motor de 3.0 de F-1 que ganhei em uma das vezes que estive em Maranello. Tão nobre sentimento abarca também pilotos de F-1 e 9,99 entre cada 10 daqueles contratados pelo time italiano declaram que “desde criancinha eu sonhava em pilotar esses carrinhos vermelhos”.
![](https://www.autoentusiastas.com.br/ae/wp-content/uploads/2020/09/20200901-Coluna-Luca-Todt-Ferrari.jpg)
Ocorre que uma paixão solitária não faz verão, especialmente quando os rivais aliciam cérebros privilegiados de Maranello a abdicar da gastronomia italiana para trabalhar no interior da Inglaterra em troca de pequenas fortunas. Evitar a fuga de gênios é uma qualidade de grandes líderes e esta pode ser a consequência mais grave da crise 2020 que assola a Ferrari: se o motor de 2019 é mais do que simplesmente algo ilegal e triste lembrança, nem mesmo o chassi de 2020 se salva nesse clima de pandemônio. Ver Charles Leclerc e, principalmente Sebastian Vettel fora dos 10 primeiros do grid do GP da Bélgica (veja aqui o resultado completo da prova) e disputar posições com equipes de recursos mais limitados que usam o mesmo trem de força é digno de filme de terror para qualquer tifosi.
![](https://www.motoresclassicos.com.br/wp-content/uploads/2020/08/20200901-Coluna-Minardi-Minardi-Club.jpg)
Convivi com alguns nomes que trabalharam e até chefiaram o “Riparto Corsa” de Maranello, em um ou outro caso com certa intimidade; tal privilégio me leva a crer que o exercício da liderança sempre foi o calcanhar de Aquiles da casa. Para grande temporada da Ferrari sempre houve um líder destacado, como Luca Di Montezemolo (o mais longevo) Mauro Forghieri, Jean Todt e até mesmo Ross Brawn. Seria então Mattia Binotto o culpado da vez? Giancarlo Minardi, ex-proprietário da equipe que serviu de base para a atual AlphaTauri e que conhece Maranello como poucos, não acredita:
“Não está claro qual o poder que Binotto no comando da equipe. Será que ele tem força para decidir as coisas lá dentro?”
![](https://www.motoresclassicos.com.br/wp-content/uploads/2020/08/20200901-Coluna-Elkmann.jpg)
As ações da Ferrari são comercializadas como RACE nas bolsas de Milão e Nova York e 67% estão nas mãos de investidores diversos. Piero Lardi, filho de Enzo, tem 10% e os restantes 23% são administrados pela Exor, empresa com base em Amsterdã e controlada por John Elkann, o escolhido pelo avô materno Gianni Agnelli para administrar a fortuna da família. Desde que assumiu o comando da FCA (Fiat Chrysler Automobiles), em 2014, ele fez crescer substancialmente o valor da empresa. Está na hora do executivo bem-sucedido que comanda mais de 15 empresas fazer a Ferrari viver novamente a saga da Fênix, algo que usou em uma série de podcasts difundidos em 2018 para justificar a criação da FCA. Quem sabe um olhar carinhoso de sua parte ajude a Scuderia renascer das cinzas e fazer jus ao nome do produto que é seu principal patrocinador.
WG
A coluna “Conversa de pista” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.