Em 17 de janeiro de 1934 Ferdinand Porsche apresentou seu Exposé (basic design – projeto básico) sobre como ele via o projeto de um Volkswagen alemão. Vamos destacar o trecho abaixo que é o item 4 de um total de 5 com os quais Porsche esclareceu o significado que ele deu ao termo Volkswagen no contexto de seu projeto básico – mas este é o item que interessa neste caso:
“Um carro popular não deve ser um veículo para um propósito limitado, ele deve atender a quase todos os fins por meio de uma simples mudança de carroceria, ou seja, ele deve ser adequado não apenas como um automóvel de passageiros, mas também como carro de transporte e certos fins militares.”
Este Exposé foi a base da reunião em 22 de junho de 1934 entre a Associação Nacional da Indústria Automobilística Alemã (RDA) e a firma Eng. h.c. Ferdinand Porsche GmbH, que deveria desenvolver o Volkswagen e apresentar o primeiro protótipo em 10 meses a partir desta data. Mas como veremos adiante, não foi só o desenvolvimento do Fusca que foi feito a partir daquele dia, pois vários projetos foram desenvolvidos em paralelo pela incrível equipe de engenheiros da firma de Porsche.
Abaixo o croqui Sk. 864 do Volkswagen de agosto de 1934, ainda tosco e com uma linha de cintura. Este é um dos inúmeros estudos feitos pela equipe de Porsche. O importante é notar que este estudo mostra o status dos estudos 45 dias depois da assinatura do contrato com a RDA para o desenvolvimento dos primeiros protótipos do Volkswagen:
Naquele mesmo mês, paralelamente aos estudos do Volkswagen, surgiu o primeiro croqui de um veículo de transporte leve baseado na sua mecânica.
Abaixo o croqui Sk. 866 do primeiro estudo de um veículo de transporte. Note-se que dada a posição do motorista no carro o espaço disponível para a carga fica reduzido. Este estudo foi feito sete anos antes do primeiro Volkswagen ser produzido em Fallersleben em 1941. Os protótipos do Volkswagen até então eram construídos com componentes de terceiros montados pela empresa de Porsche ou por empresas contratadas.
O desenvolvimento do Fusca continuava e em setembro de 1936 os protótipos V3/1 e V3/3 fizeram uma viagem “de teste” até Monza, Itália onde estava correndo o famoso e vitorioso carro de Grand Prix Auto Union P-wagen projetado por Porsche, que estava lá acompanhando a corrida e pegou uma carona de volta.
Muita coisa estava ocorrendo ao mesmo tempo e esta e várias outras viagens de teste ajudaram a verificar itens de projeto.
Em 1938 o protótipo definitivo do Volkswagen, já batizado de KdF-wagen, ficou pronto, já com as duas janelinhas atrás, e foi iniciada a produção da “pré-série” com componentes montados pela Reutter, de Stuttgart. Eles fabricavam as carrocerias das versões sedã e sedã com teto solar de lona
Com muito trabalho manual, a Reutter produzia duas carrocerias por semana no verão europeu de 1938. Depois, vários protótipos e carros produzidos na pré-série acabaram sendo modificados em protótipos de outros veículos, como os de transporte e militares, que eram as outras linhas de desenvolvimento em paralelo. Como não havia muitos componentes “sobrando” para a execução dos diversos protótipos, a canibalização foi inevitável.
Na foto abaixo, em seu canto inferior esquerdo pode-se ver três carrocerias de KdF cujos chassis foram canibalizados para outros projetos:
Um exemplo da aplicação militar da mecânica que estava sendo desenvolvida para o Volkswagen foi o utilitário leve Kübelwagen descrito na matéria DER KÜBELWAGEN .
Naqueles tempos a oficina de Porsche andava cheia de protótipos em execução frenética, como pode ser visto nesta foto de 1941, muitos veículos interessantes, como vários protótipos do Schwimmwagen, um Kommandeurwagen (sedã para todo-terreno destinado a oficiais do exército, ainda um Stuka, e vários chassis empilhados:
Voltemos ao croqui Sk. 866, mais acima. Ele gerou o Tipo 68 — a picape modelo A de 1940. Para fazer este protótipo um KdF foi cortado e uma caçamba com uma elegante proteção de lona foi colocada. Apesar de todos estes projetos correndo em paralelo, Porsche se mantinha firme no propósito de desenvolver veículos de transporte leve, que podem ser considerados precursores da Kombi. Anos depois foram feitas muitas adaptações semelhantes como a da famosa empresa suíça Beutler.
Exemplo de Fusca picape de 1963 modificado pela empresa suíça Beutler a partir de 1951, que fazia também fazia peruinhas Volkswagen:
Recentemente começaram a aparecer adaptações de Fusca picape aqui no Brasil, como a feita por Marcelo Delgado de Ibiúna, SP. Ele enviou esta foto recentemente dizendo que fez o seu “Fusca picape” depois que viu uma foto de uma destas conversões.
Daquele primeiro veículo para transporte de 1934 chegamos ao Tipo 81, um furgão pequeno surgido em 1941. Os desenvolvimentos na linha dos carros de transporte disputavam espaço com os veículos militares que tinham total prioridade, pois a Segunda Guerra Mundial já havia começado em setembro de 1939. Até o KdF recebeu algumas alternativas também para uso militar — o Kommandeurwagen.
O Tipo 81 também foi feito na base do KdF, com suspensão elevada do Kübelwagen para acomodar a caixa de redução nas rodas traseiras, esquema desenvolvido por Porsche que depois foi usado na primeira Kombi. Note-se o quanto de espaço útil para transporte era perdido pela posição do motorista no meio do carro.
Alguns detalhes: a frente é do Fusca, com faróis de blecaute, a iluminação obrigatória de tempos de guerra; a traseira em nada lembra o Fusca, note-se a altura livre em relação ao solo, devido às caixas de redução nas rodas, que, como vimos, é um esquema derivado do Kübelwagen. Há várias adaptações que lembram este protótipo:
Mais alguns exemplos de adaptações com base no KdF e no Kübelwagen:
O “pulo do gato”
Em 1940, Porsche concebeu uma solução eficaz para o uso da mecânica do Fusca para um veículo leve de transporte com uma capacidade volumétrica de carga bem maior do que aquela obtida até então.
Podemos dizer que foi um “pulo do gato” para aumentar a capacidade de carga do chassi VW mantendo suas características básicas. Ou seja, isto foi obtido sem muitas modificações, com uma solução que manteve o maior número de componentes possível inalterados.
Nos projetos até então a localização do banco do motorista limitava a capacidade de carga. O que fazer para aumentá-la e manter os custos sob controle?
O “pulo do gato” seria deslocar tanto o banco do motorista para cima do eixo dianteiro quanto deslocar o sistema de direção, alavancas e pedais para permitir o controle do veículo nesta posição:
Os círculos coloridos indicam como foram realocados os componentes: vermelho – banco do motorista; azul – alavanca de câmbio; verde – volante e roxos pedais de comando.
Em 11 de março de 1940 a empresa de Porsche entrou com um pedido de patente para registrar esta solução junto ao Registro Suíço de Patentes, sendo que esta solicitação foi homologada em 15 de fevereiro de 1941 sob o número 213531 classe 126b. Abaixo apresento a testada desta patente (os números que aparecem nos desenhos acima se referem a citações no corpo desta patente, ou seja, os próprios desenhos fazem parte da patente):
Trata-se da PATENTE PRINCIPAL da empresa R. ING. H. C. F. PORSCHE K.-G., Stuttgart-Zuffenhausen (Deutsches Reich) que versa sobre “Chassis para veículos automotores” e cujo resumo inicial relata o seguinte: “A invenção refere-se a um chassi para veículo automotor, no qual o banco do motorista foi movido para frente, para, por exemplo, entre as rodas dianteiras, isto para permitir uma grande área útil de carga”.
Com esta patente Ferdinand Porsche antecipou em 10 anos em números redondos, a ideia de desenvolver um Transporter Volkswagen com volante à frente do eixo dianteiro, chassi de tubo central e motor traseiro arrefecido a ar, que viria a ser sugerido pelo holandês Ben Pon e cuja produção foi iniciada em 1950!
Esta patente é pública e continua acessível na Suíça. Consegui receber uma cópia por e-mail um dia após ter feito a solicitação. E apesar de estar em alemão eu a coloco à disposição de meus leitores e leitoras na forma de um caderno no sistema ISSUU .
O interessante é o nome do arquivo da patente que recebi por e-mail da Suíça: VW Bulli Patent CH_1941.pdf sendo que Bulli é um dos apelidos da Kombi na Alemanha, ou seja, para o Registro de Patentes Suíço esta é a Patente da Kombi da Volkswagen emitida em 1941 na Suíça, cuja sigla é CH (Confederação Helvética).
Conclusão
Mas assim como vários dos projetos que vimos até agora, esta patente não chegou a virar um produto, não deu tempo para isto ocorrer. Se bem que havia condições de realizá-lo, mas, com o avanço da II Guerra Mundial as prioridades foram deslocadas para os veículos e soluções militares.
Resta a curiosidade de como seria a Kombi que Porsche e seus engenheiros teriam desenvolvido, a mecânica estava pronta em princípio, faltava a sua carenagem. Mas é certo que as bases para um tal veículo já tinham sido lançadas em 1934 com o Exposé de Porsche e vários componentes já haviam sido testados em protótipos de versões de veículos para transporte leve.
A participação de Ferdinand Porsche na Volkswagen terminou no fim da guerra. Ele esteve pela última vez na cidade do carro KdF (depois Wolfsburg) em 11 de janeiro de 1945 e aparentemente resignado retirou-se para a Áustria, onde viu o fim da guerra em sua propriedade Schüttgut em Zell am See.
No dia 8 de maio de 1945 o III Reich é derrotado e termina a II Guerra Mundial na Europa. A ocupação aliada em Fallersleben iniciou-se imediatamente pelos EUA e seguiu em junho com forças Inglesas, a cidade já rebatizada Wolfsburg., Antes disto já não havia mais condições para dar prosseguimento a quaisquer projetos que estivessem em desenvolvimento.
Aqui termina a primeira parte da História Real da Kombi que eu chamo de “Era de Porsche” que foi, a meu ver, o real inventor da Kombi, sendo que acredito que seus documentos e desenvolvimentos estavam à disposição da equipe que acabou dando continuidade ao projeto em 1949. Só que a patente de Porsche, que só “ressurgiu” por volta de 2008, não chegou a ser citada então, mas isto já é assunto para uma outra matéria.
AG
Os seguintes livros foram consultados:
-Der VW Bulli – Die Transporter-Legende für Leute und Lasten
O VW Bulli (apelido das T1) – A lenda das vans – para pessoas e cargas
Bernd Wiersch (Tenho um exemplar autografado pelo autor)
-Die Käfer-Chronik – Die Geschichte einer Autolegende
A crônica do Fusca – A história de uma lenda automotiva
Bernd Wiersh (Também tenho um exemplar autografado pelo autor)
-Der Käfer – Ferdinand Porsche und die Entwicklung des Volkswagens
O Fusca – Ferdinand Porsche e a evolução do Volkswagen
Chris Barber
-VW Transporter and Microbus
Vincent Molenaar & Alexander Prinz (Participei deste livro com o envio de fotos de Kombis brasileiras)
-Volkswagen Beetle – The rise from the ashes of war
VW Fusca – A ascensão das cinzas da guerra
Simon Parkinson
-Changing Lanes under British Command – The transformation of a Factory into a commercial enterprise 1945-1949
Mudando de pista sob o comando britânico – a transformação de uma fábrica em uma empresa comercial 1945-1949
Markus Lupa
Também foram feitas consultas na Internet, em especial na Wikipédia. O trabalho de compilação e redação deste trabalho segue o que havia sido feito no preparo da minha palestra KOMBI – Sua Real Origem que tive a oportunidade de proferir em várias ocasiões.
NOTA: Nossos leitores são convidados a dar o seu parecer, fazer suas perguntas, sugerir material e, eventualmente, correções, etc. que poderão ser incluídos em eventual revisão deste trabalho.
Em alguns casos material pesquisado na internet, portanto via de regra de domínio público, é utilizado neste trabalho com fins históricos/didáticos em conformidade com o espírito de preservação histórica que norteia este trabalho. No entanto, caso alguém se apresente como proprietário do material, independentemente de ter sido citado nos créditos ou não, e, mesmo tendo colocado à disposição num meio público, queira que créditos específicos sejam dados ou até mesmo que tal material seja retirado, solicitamos entrar em contato pelo e-mail alexander.gromow@autoentusiastas.com.br para que sejam tomadas as providências cabíveis. Não há nenhum intuito de infringir direitos ou auferir quaisquer lucros com este trabalho que não seja a função de registro histórico e sua divulgação aos interessados.
A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.