Um novo lançamento vindo da prancheta de desenhos (virtual, obviamente) de Gordon Murray é tão esperado e celebrado quanto um novo filme de Quentin Tarantino. Muitos vão adorar por seguir uma filosofia conhecida, outros vão detestar por ser fora dos padrões, mas, todos vão notar.
Assim como o excêntrico diretor de cinema, Murray segue suas próprias regras e sua convicção do que deveria ser o projeto perfeito, independente do que os outros estão dizendo ou fazendo. E, justamente assim, Murray se destaca num mar de mesmices.
Quando a Gordon Murray Automotive, empresa criada por ele para fabricar seus próprios carros, anunciou a produção do primeiro automóvel, o GMA T.50 que contamos aqui no Ae e detalhamos aqui com aprofundamento, os entusiastas do mundo foram à loucura. Seria o verdadeiro sucesso do McLaren F1, o carro esporte mais “raiz” já feito. Como seria o resultado de um novo F1 com as tecnologias de hoje? Pois bem, o T.50 respondeu a esta pergunta.
Agora que o T.50 já tem seu caminho trilhado, com praticamente todas cem as unidades já vendidas mesmo antes de serem fabricadas, a GMA seguiria o seu rumo e traria outro novo carro. Desta vez, o modelo foi chamado de T.33.
Diferente do que se pode imaginar pelo nome, não é uma versão menor e mais simples do T.50, mas um novo carro praticamente feito todo do zero, com exceção do motor, que deriva da mesma unidade do T.50, o Cosworth V-12.
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O primeiro produto a GMA nasceu com a proposta de ser o melhor carro esporte de todos os tempos, do ponto de vista de prazer em dirigir e experiência ao volante, assim como foi o McLaren F1. Para isto, Murray empregou todos os recursos disponíveis, e criou seus novos quando necessário, para chegar ao objetivo. O grande rotor que expele ar pela traseira do carro, assim como no Brabham da Fórmula 1, era necessário para atingir os níveis de refino aerodinâmico desejados por Murray.
Desta vez, o objetivo foi criar um automóvel que Murray tinha em mente há mais de 25 anos, que representasse sua visão de como seria um clássico moderno inspirado nos mais belos modelos dos anos 60, mantendo o foco na experiência máxima ao volante, mas de forma mais prática.
Inspirado nos GTs da década de ouro do automobilismo, como muitos chamam os anos 60, o T.33 teria que ter as proporções clássicas de modelos como o Alfa Romeo Tipo 33 Stradale, o Porsche 904 GTS, Ferrari SP e tantos outros italianos daquela época. Para-lamas protuberantes, habitáculo arredondado e, em especial, linhas limpas e orgânicas. Nada de asas, defletores, aletas. Uma forma pura e funcional.
Murray não segue tendências. Ele cria suas próprias e fica com elas o tempo que achar necessário. Enquanto os demais fabricantes de supercarros desenham modelos cada vez mais gritantes, exagerados e desnecessariamente complicados, a GMA segue com a filosofia do mínimo necessário. Tendo em mente as proporções que o carro deve ter, no caso, inspiradas nos seus modelos de referência do passado, Murray e sua equipe esculpem a forma da carroceria para que seja funcional e harmoniosa.
O resultado de anos de confabulações de como seria seu carro ideal com as premissas descritas acima, resultaram em um carro é até maior que o T.50. Mais precisamente, 35 mm a mais na distância entre eixos e 40 mm no comprimento total. Ainda assim, é similar em medidas externas a um Porsche Boxster.
O espaço para bagagem foi cuidadosamente pensado, esta, uma das principais características dos supercarros de Gordon Murray. Ele se preocupa em criar espaços, mesmo que fracionados, que permitam ao usuário carregar seus pertences. O T.33 comporta 280 litros de bagagem. Um Porsche 911 contemporâneo comporta 132 litros do bagageiro dianteiro, único lugar exclusivo para tal (sem contar o espaço no habitáculo atrás dos bancos dianteiros).
A posição de dirigir no centro do carro é exclusiva do T.50, uma vez que o T.33 não pretende ser igual, tampouco melhor que o irmão mais velho. O T.50 sempre será o ápice da linha da GMA, de acordo com Murray. Com dois lugares, o novo carro será bem mais convencional neste sentido.
Ser mais convencional não quer dizer que ele será comum. Pesando menos de 1.100 kg, o T.33 tem uma construção diferente do T.50 e dos demais supercarros do mundo. Ao invés de uma estrutura de compósito de fibra de carbono completa, de ponta a ponta do carro, ele é feito de um híbrido de uma estrutura de alumínio com fibra de carbono apenas na região central. Esta proposta vem do conceito criado por ele chamado iStream.
A célula central do carro é feita de compósito de fibra de carbono revestindo perfis e colmeias de alumínio (honeycomb) para maior estrutura e rigidez. Numa construção assim, normalmente, a parte dianteira e traseiras são feitas separadamente e fixadas ao corpo central. No T.33, estas sessões (de alumínio apenas) já estão integradas ao núcleo do carro, eliminando as fixações que são mais pesadas e flexíveis. A GMA não divulgou, e provavelmente nem vai divulgar imagens deste chassi, mas é como se fosse um chassi único, de ponta a ponta, mas apenas com o centro reforçado com os sanduiches de compósito de fibra de carbono.
Diferente do T.50, novamente, o T.33 permite que o motorista regule a posição do banco, dos pedais e do volante. No antecessor, estes itens eram fixos, posicionados sob medida para cada cliente, com objetivo de otimizar o peso do carro, eliminando os dispositivos de regulagem.
O interior parece simples e funcional. Murray detesta telas com comandos táteis para ajustar parâmetros como ventilação, ar-condicionado, rádio, configurações do carro e afins. Temos algo em comum. Já tentaram acertar o comando numa tela com o carro balançando e sem olhar para o painel? Impossível, só serve para irritar o motorista.
Um dos assuntos favoritos de Murray, a aerodinâmica, é outro ponto alto do carro. Mesmo sem os recursos do T.50, o novo modelo usa o conceito baseado no anterior, com recursos aerodinâmicos usando controle de fluxo de ar nos extratores por meio de engenhosos dutos de ar. Não é tão eficiente quanto o T.50, mas ainda assim, Murray diz ser 30% melhor que dos supercarros modernos cheios de asas e penduricalhos.
O mesmo V-12 Cosworth foi utilizado, mas em outra configuração, com uma rotação máxima ligeiramente menor, agora chegando ainda a 11.000 rpm e com 615 cv (no T.50, 12.000 rpm e 662 cv). Nova configuração de cabeçotes, comandos e mapeamento eletrônico fazem do novo motor mais usável no dia a dia. Gordon diz que não é um downgrade, mas sim uma nova configuração diferente.
Um dos elementos que Gordon queria incluir em seu novo carro era a admissão de ar forçada fixa diretamente no motor, “como eram as tomadas de ar dos motores da Fórmula-1 dos anos 70”, como ele diz. Desta forma, todo o sistema de admissão de ar é solidário ao motor, ou seja, se movimentam juntos como um único elemento, e não separadamente. Isto ajuda na qualidade de do fluxo de ar admitido, melhorando até a eficiência do motor.
As tampas de válvulas amarelas identificam o novo GMA V12.2, como foi chamado o Cosworth exclusivo do T.33.
Além do câmbio padrão de seis marchas manual, será oferecida uma opção automatizada. Ambas desenvolvidas pela XTrac sob a supervisão da GMA, a nova opção promete ser a mais veloz em trocas de marcha do mundo, com uma tecnologia desenvolvida em parceria entre as empresas.
Mesmo sabendo que a automatizada é mais eficiente, Murray não abre mão da manual, pois o que importa em seus carros não são números de desempenho, mas sim, sensações ao pilotar. E pelo visto seus clientes concordam. Dos cem carros anunciados, mais da metade já tem interessados, e apenas três escolheram o automatizado.
Por que o T.33 não é só mais um supercarro no meio de tantos, se não tem mais a posição central de dirigir nem uma turbina exaustora de ar montada na traseira do carro que mais lembra um foguete? Simples, porque ele foi feito para o entusiasta que acredita no que Murray pode oferecer, e ele nunca decepcionou. Podem dizer que ele entrou no meio comum, oferecendo até um câmbio automatizado, mas digo que não. Se fosse assim, utilizaria uma qualquer já consolidada no mercado, mas, optou por ajudar a projetar o melhor câmbio deste tipo que o mundo já viu. Isto já diz muito.
A leveza e a primazia pela eficiência de projeto colocam os carros de Murray em um lugar próprio no mercado. Nenhum outro carro é feito com o mesmo refinamento, mesma preocupação com manter o peso baixo para maximizar a relação peso-potência. Hoje, um Renault Sandero pesa o mesmo que o T.33, e digamos que há muito mais a se oferecer no GMA. Tudo tem sua função.
Lembro de uma entrevista que Gordon deu há alguns anos atrás, quando perguntado o que ele mudaria no McLaren F1, na época, vinte anos depois do carro ser lançado. Sem pestanejar, respondeu: “Eu mudaria este maldito suporte”, apontando para uma pequena chapinha de alumínio que sustentava o interruptor da luz de cortesia do cofre do motor.
Era um suporte montado sobre outro suporte, que para ele, era inconcebível. Por que não fizeram um único suporte com múltiplas funções integradas, mais leve e otimizado? Para piorar, foi uma peça criada pelo seu time depois que ele já tinha dado o projeto como concluído, pois inicialmente Murray tinha previsto que o interruptor ficaria preso na tampa do compartimento, mas durante os testes viram que poderia dar problema de acionamento da luz indevidamente e reposicionaram o interruptor com este novo suportezinho, pelo visto, sem avisar o chefe. “É o tipo de coisa que se vê num Ferrari”. Este é o nível de exigência de Gordon Murray.
Obviamente o carro não será barato. Nem pode ser. Espera-se um preço de 1,37 milhões de libras esterlinas (9,8 milhões de reais), sem impostos. Mas, Murray afirma que a manutenção do carro será mais realista, com custo “relativamente baixo” se comparado com o McLaren F1, por exemplo. Só o fato de usar pneus convencionais fornecidos pela Michelin, da linha Pilot Sport, e não itens exclusivos como os do F1, capazes de suportar os quase 400 km/h de velocidade máxima, já trazem os custos para patamares menos assustadores.
Mesmo não sendo tão radical quanto o T.50, o novo GMA vai ser incrível, graças a visão de seu criador. Infelizmente, apenas dirigindo poderemos saber como é a sensação de guiar um carro feito para ser guiado, da melhor forma possível. Números de desempenho não vão dizer muito, o próprio Gordon já afirmou.
Futuros modelos eletrificados
Em diversas entrevistas que Murray deu no lançamento do T.33, foi dito que a GMA está trabalhando em outros projetos com focos diferenciados. A base do T.33 será compartilhada com outros dois novos modelos a serem lançados ainda, sem detalhes do que serão, mas já adiantou que não serão todos supercarros.
Este também deve ser o último modelo não híbrido da marca. Esta informação já me deixaria um pouco desanimado, pois o último dos templários da Sagrada Combustão Interna está tendo que ceder ao futuro eletrificado. Mas, vindo de Murray, tenho curiosidade em saber o que pode ser feito. O engenheiro que cria seus próprios padrões pode nos surpreender.
Assim como o primeiro híbrido de corrida que vi ao vivo mudou minha concepção sobre esta tecnologia para as pistas, o Audi R18 e-tron, Murray pode nos presentear com algo que um autoentusiasta de fato goste em um carro elétrico. Não deve ser apenas um meio de locomoção.
Com o mesmo tipo de pensamento que gerou o câmbio automatizado do T.33, a forma de se pensar em um carro elétrico precisa ser revista. “Precisamos pensar de forma diferente sobre peso, densidade de energia e tempo de recarga. Estamos estagnados hoje. Tudo o que fazemos é criar carros maiores e mais pesados para aumentar o alcance. Isto não é progresso, e queremos fazer o oposto.”
Se o câmbio não era bom o suficiente para ele, decidiu ajudar a criar a melhor que já existiu. Quem sabe o que o mesmo pensamento pode fazer com um carro elétrico. Só nos resta aguardar pelas novidades. Talvez teremos um novo Pulp Fiction…
MB