A década de 1920 foi riquíssima para o desenvolvimento do automóvel. Tudo ainda era muito novo, tanto espaço ainda disponível para novos conceitos e criações que permitiram uma enorme evolução do conceito que conhecemos hoje do carro moderno. Estávamos vendo as grandes criações de Ettore Bugatti, Ferdinand Porsche, dos irmãos Duesenberg, do próprio Henry Ford, chegarem ao mercado e maravilhar multidões, seja pela elegância, modernidade, ou pela beleza da simplicidade funcional.
Enquanto os americanos desenvolviam a sofisticação mecânica e luxo dos grandes Cadillacs, Packards e Duesenbergs, a França tinha Bugatti, Renault e Panhard trabalhando em carros mais compactos, eficientes. Os grandes criadores da época que ficaram para a história foram o que conseguiram ir mais longe, criar modelos vendidos ao público com certo sucesso, mas inúmeros pequenos nomes acabaram caindo na rede do esquecimento. Muitos, injustamente.
Um dos nomes que sofreram dessa maldição é Albert Bucciali. Nascido em 1889 na pequena cidade de Arras, interior norte da França, Albert e seu irmão Angelo eram fascinados pela mecânica. Filhos de um talentoso músico e construtor de órgãos (que curiosamente era surdo), aprenderam com o pai a fina arte da música e fabricação de instrumentos, habilidade que, segundo o próprio Albert, foi fundamental para desenvolver seu lado criativo e entender os conceitos de física e mecânica.
Logo jovem, cultivou seu gosto por automóveis e aviões, outra maravilha moderna ainda pouco conhecida para muitos. Ele aprendeu a voar ainda jovem. Já com fortes indícios que Albert era muito habilidoso, ele construiu seu próprio avião com apenas 22 anos de idade. Foi piloto da Força Aérea francesa na Primeira Guerra Mundial, e pelo o que a História indica, um excelente piloto.
Com o fim do conflito em 1918, Albert queria dedicar-se aos automóveis, trabalhando com seu irmão em uma oficina para modificações e preparações para clientes. Juntos criaram a Société Bucciali Frères (Sociedade Irmãos Bucciali) na cidade de Courbevoie, próxima a Paris. Não demorou para que os irmãos fabricassem seu próprio carro. Um dos primeiros carros que Albert teve foi um Martini com tração por corrente, que ele e seu irmão modificaram em 1918. Com uma nova carroceria e algumas alterações no chassi, o Martini foi batizado de BUC. Era claro para eles que vários novos BUCs poderiam ser feitos e vendidos.
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Entretanto, a dificuldade de se fabricar um carro logo apareceu. Não era tão fácil como parecia, especialmente por conta das questões financeiras, as quais se amenizaram com o casamento de Albert. Sua esposa Yvonne, viúva e herdeira de boas posses, tinha boa vontade para ajudar Albert com suas ideias.
No começo dos anos 20, os irmãos Bucciali já tinham algumas unidades feitas de seu modelo BUC, projetado e fabricado nas instalações da família da esposa de Albert. O motor de seis cilindros em linha de 1,5 litro dotado de comando de válvulas no cabeçote era bem eficiente, foi desenvolvido por Némorin Causan, amigo e parceiro da Força Aérea de Albert. O modelo B6-C24 de Grand Prix teve bons resultados na Europa. Era uma boa vitrine para os Bucciali demonstrarem sua qualidade.
Albert tinha uma visão de projeto voltada para inovações. Ele não queria ser “mais um” no mercado, mas apresentar diferenciadores que atraíssem o público para seus automóveis. A concorrência era muito forte na França, sairia muito caro ter uma produção que fosse competitiva, ainda mais se tentassem ter algum diferenciador técnico em relação aos concorrentes. A solução seria mais radical para que Albert e Angelo pudessem levar suas ideias inovadoras à frente: não fabricar carros.
Pois é, parece contraditório, mas foi uma boa sacada. Concorrer com nomes como Renault seria impossível, fabricar automóveis mais sofisticados que os demais, caro demais. O jeito seria vender suas ideias para fabricantes já estabelecidos, e para isso, os irmãos Bucciali construiriam alguns poucos carros para demonstrar suas inovações. Talvez eles tenham inventado o termo Concept Car (carro conceito) sem saber. Seus automóveis seriam equipados com suas invenções técnicas como forma de demonstração pública para que pudessem vender suas patentes.
A melhor forma de apresentar um carro, para eles, seria o famosos Salão do Automóvel de Paris. Em 1922, os Bucciali já conseguiram um espaço no Salão para apresentar seu primeiro projeto. A fabricação de carros não foi encerrada, pois a venda de unidades ajudava no fluxo de caixa da empresa.
Das inovações que os Bucciali queriam patentear, a principal era um sistema de tração integral com suspensão independente. Ele entendia que tracionando as rodas dianteiras, o carro seria mais estável e menos complexo, com o pesado eixo motriz traseiro e a árvore de transmissão atravessando todo o carro. Em 1926, a decisão de limitar a fabricação de carros a apenas carros de demonstração e vender suas patentes já estava tomada.
Albert trabalhou incessantemente no seu sistema de tração dianteira. Vale lembrar que tracionar o eixo dianteiro não era uma novidade. Desde o fim do século 19, alguns veículos já eram equipados com este conceito. Harry Miller, o genial projetista americano, inscrevera um Miller Racer de tração dianteira na 500 Milhas de Indianápolis de 1926. A Tracta já tinha o sistema conceitual da junta homocinética criado no mesmo ano. Os Bucciali tinham sua própria versão do sistema, com diagramas detalhados para sua patente.
A patente US1837106 foi para aprovação em 1927 e devidamente registrada em 1931, com todo o esquemático necessário. A parte nova do conceito da tração dianteira de Albert estava na junta esférica articulada do eixo por onde o semieixo era alojado e no sistema de suspensão independente. Com um sistema de braços de controle, cada uma das rodas podia subir e descer livremente, mantendo o perpendicularismo do pneu com o solo para não haver variação de câmber como, por exemplo, ocorria na suspensão traseira do Fusca e no bem mais caro Mercedes 300 SL “asa de gaivota”. Também o sistema mola-amortecedor foi bolado de forma a ter um único elemento central que atuava nas duas rodas, na forma de um cilindro com uma haste de entrada de cada lado.
Este conjunto de motor, transmissão, suspensão dianteira e também radiador, eram montados de forma a serem facilmente removidos em um único pacote para facilitar a manutenção.
Também contava com conceitos de freio com atuadores elétricos e rodas de alumínio com tambor de freio integrado. Estas rodas, enormes para os padrões, comportavam pneus da mesma medida dos usados nos Bugatti Royale. Também trabalharam em uma caixa de transmissão transversal, mais compacta e adequada para ser usada com a tração dianteira.
Modelos deste sistema foram feitos para demonstração, mas não chamavam muita atenção. Algumas empresas entraram em contato com os Bucciali, como a Citroën, mas nada foi finalizado em termos de contratos. Os Bucciali precisavam ser notados de alguma forma. Assim, partiram para a criação de carros completos com as novas patentes, e carros que fossem notados rapidamente. Nada melhor que uma carroceria extravagante para chamar atenção.
Em 1929, eles apresentaram em Paris o modelo TAV, de Traction Avant, tração dianteira em francês (sim, como ficaram conhecidos os Citroën 7 e 11). Este TAV era equipado com um motor americano Continental de oito cilindros em linha, fabricado na França pela Hotchkiss sob licença. Como a proposta era vender o conceito e não diversos carros, optaram comprar motores prontos a fabricar seu próprio. Já tiveram mais repercussão e alguns interessados. No ano seguinte, fecharam um acordo com Emile Guillet, industrial com grandes influências que via futuro no trabalho dos Bucciali.
Guillet pretendia investir na Bucciali e ser o representante da marca nos Estados Unidos, mercado em largo crescimento no segmento de carros de luxo. Emile tinha um grande complexo com representação da Renault, onde poderia também fabricar os Bucciali para exportação. Este investimento veio em boa hora, pois a esposa de Albert, até então principal investidora, estava cortando as verbas. Um dos planos de Guillet era fazer um road tour nos Estados Unidos com os Bucciali e o TAV, demonstrando a tecnologia para as grandes marcas locais.
Dentre os modelos enviados para a América, o carro de destaque seria o TAV 30 com carroceria feita pela Labourdette (nenhum dos carros de tração dianteira era vendido pelos Bucciali com carroceria, apenas o chassi, recurso comum na época). O TAV foi carinhosamente apelidado de La Marie (a Maria) pelos Bucciali. Os clientes potenciais incluíam a Chrysler, Graham-Paige, Peerless, Mercedes, Willys, Hupmobile, GM, Studebaker e Du Pont. Alguns destes receberam os viajantes europeus nas próprias sedes, outros em apresentações conjuntas no Salão de Nova York.
De todas as empresas contatadas, apenas a Peerless se interessou pela patente. Certamente as linhas baixas e não muito convencionais para a época, graças ao sistema de tração dianteira que permitia que o chassi e carroceria fossem mais baixos que nos carros tradicionais, atraíram a Peerless. A proposta era a parceria na qual os Bucciali representariam a empresa americana na Europa, e a Peerless vendesse novos modelos equipados com o sistema de tração dianteira dos franceses também nos Estados Unidos.
O que os Bucciali não contavam é que sua nova parceira encerraria a produção de automóveis em menos de dois anos, mudando completamente o ramo de atuação, passando de fabricantes de carros a fabricante de cerveja. A última injeção de dinheiro em um automóvel Peerless foi num conceito de motor V-16 e fabricação de carroceria e estrutura em alumínio. Das patentes dos Bucciali, apenas as rodas de alumínio com tambor de freio conjugado foram adotadas.
Foi considerado fabricar um motor de 16 cilindros pelos irmãos Bucciali, baseado no Continental de oito cilindros já utilizado. Um modelo não funcional foi feito e montado em um dos chassi existentes para ser exibido em diversos salões na Europa. Poucos sabiam que o carro não era funcional, mas sua função foi cumprida: atrair os olhos do público.
No começo dos anos 1930, a empresa estava cada vez mais enrolada em questões financeiras, e a chegada da Grande Depressão americana em nada ajudou. Um dos únicos clientes a se interessar por um Bucciali equipado com todas as inovações apresentadas apareceu. Georges Roure, banqueiro francês, tinha gosto por carros exóticos na época. Ele queria um modelo conversível, que recebeu uma carroceira feita nas instalações de Emile Guillet, mas não agradou ao comprador. Paralelamente a este carro, um outro equipado com uma carroceria da Saoutchik estava sendo finalizado.
Baseado nas linhas do conversível, uma nova carroceria fechada foi encomendada na Saoutchik. Com o chassi longo nas mãos, favorável para desenhos alongados e baixos, os artistas franceses fizeram uma obra-prima. O carro foi apelidado de Fleche d’Oro (Flecha de Ouro), adornado com uma cegonha dourada na lateral do capô, em alusão ao símbolo do esquadrão de aviões que Albert voou na guerra. No lugar do motor Continental, Georges Roure pediu algo mais sofisticado. Um imponente V-12 da Voisin foi utilizado, adaptado para ser usado com p câmbio transversal e a tração dianteira. Era um carro de fazer inveja até em um Bugatti Royale, exceto pelo motor que tinha pouca potência para tamanha carroceria.
O TAV 8-32 Fleche d’Oro foi basicamente o primeiro e último carro vendido pelos irmãos Bucciali na época como um carro zero-quilômetro. Em 1932, se deram por vencidos e encerraram as atividades da empresa. As patentes, então só acordadas para a Peerlees, afundaram num barril de cerveja. A Grande Depressão acabou com os grandes carros de luxo e com os sonhos dos dois franceses, que, além de patentes muito bem elaboradas, deixaram para o mundo pouco mais que alguns carros completos fabricados, sendo que hoje provavelmente apenas dois TAV sobreviveram.
Além do Flecha de Ouro, outro TAV que é visto em concursos é o La Marie, que ao longo da vida, teve diversas carrocerias diferentes. Depois de rodar os EUA e a Europa como carro de demonstração da patente da tração dianteira, o TAV3 passou por diversos donos e várias transformações, até a versão atual, com uma carroceria Saoutchik conversível adaptada vinda de um Mercedes 680S.
Historiadores relatam que Albert afirma que a Bucciali montou vinte TAV de seis cilindros entre 1928 e 1930, doze carros de oito cilindros entre 1931 e 1932 (todos com motores Continental), e dois V-12 Voisin entre 1932 e 1933.
E O JEEP WILLYS?
Onde entra o mais fomos veículo leve de transporte com tração nas quatro rodas de todos os tempos nessa história? Bem, recapitulando, os Bucciali fizeram diversas demonstrações nos Estados Unidos para tentar vender suas patentes, uma das empresas contatadas foi a Willys. O Jeep ainda estava longe de ser concebido, pelo menos dez anos.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a Europa devastada e a França se reerguendo, Albert Bucciali teve contato com os pequenos veículos de transporte rápido usado pelos Aliados nas operações de guerra que ficaram perdidos pela Europa. Era o pequeno Jeep de tração nas quatro rodas. Ao olhar o veículo com mais atenção, notou como funcionava o sistema do eixo dianteiro e viu grandes semelhanças com seu projeto TAV.
Assim como o TAV, o Willys utilizava um conceito de alojamento esférico articulado para permitir o movimento do conjunto da manga de eixo para que as rodas esterçassem de um lado para o outro. De fato, era bem similar ao que ele havia criado no fim dos anos 1920. Diferente do Bucciali, o Jeep tinha eixo rígido dianteiro, contra a suspensão independente dos Bucciali, mas a forma com que os engenheiros encontraram para fazer o esterçamento das rodas remetia ao que Albert criara.
O francês teve certeza que, quando apresentou o projeto para a Willys em sua visita aos Estados Unidos, a empresa viu o potencial de sua invenção mas não quis pagar por ela, entendeu como funcionava e fez sua própria versão anos depois no Jeep, ganhando contratos milionário com o governo na época da guerra.
Albert entrou na justiça francesa e americana contra a Willys e sua suposta quebra de patente. A disputa judicial durou décadas, consumiu praticamente todos os recursos financeiros da família e não levou a nada. As leis de patente eram diferentes na França e nos Estados Unidos. Nos EUA, era mandatório que para se ter um processo caracterizado por roubo de patente, todos os elementos dela deveriam ser copiados, e no processo identificaram que apenas dois dos onze itens patenteados haviam sido usados pela Willys. Pelas leis francesas, as duas já seriam suficientes, mas de nada adiantaria pois as fábricas da Willys estavam na América.
Também foi indicado que, pelas regras americanas, a Willys teria uma “culpa parcial” no problema, uma vez que o eixo dianteiro foi desenvolvido pela empresa Spicer, hoje Dana. Assim, o processo deveria ter sido levantado contra a Spicer e não contra a Willys. Albert queria ser remunerado por ter criado o sistema que permitiu a fabricação do Jeep, então para ele, sem sua patente, o Jeep nunca teria sido fabricado com tração nas quatro rodas, logo ele teria direito a receber algum valor por cada um dos Jeeps já fabricados, que entre 1941 e 1945 somaram 550.000 unidades..
Literalmente Albert lutou pela sua patente até o fim da vida em 1981, mas nunca viu um único centavo pelo o que acreditava ser sua criação, quem sem ela, o Jeep não teria sido fabricado como foi. Além da Jeep, ele tentou brigar na justiça contra a Citroën e a Tracta pela invenção da tração dianteira em carros de uso civil. Também teve disputas com a Renault por criações de sistema de cambio, sem sucesso.
Mesmo com muitas inconsistências, quantidades de veículos fabricados sendo superestimadas, de tudo que sabemos, temos que considerar que os Bucciali, em especial Albert, foram homens de grande visão e que poderiam ter tido um lugar bem mais justo na história do automóvel como o conhecemos.
MB