Há quase quatro anos, lá em 2019, detalhei em uma matéria (“Motores VW da família AP, um dos melhores já produzidos no Brasil”), toda a história e os detalhes técnicos do lendário motor AP, — EA-827 é a sua denominação de fábrica — em todas as suas configurações: 1,3, 1,5, 1,6, 1,7, 1,8 e 2,0, com carburador ou injeção, flex ou monocombustível, e por aí vai. Foi uma geração de motores fantástica, que reunia em um único projeto robustez, resistência mecânica, durabilidade, e a alta performance, que, no final das contas, acabou por batizá-los.
Com projeto original Auto Union, ou Audi se assim preferir, sua concepção básica passou ao controle da Volkswagen quando ela assumiu a Auto Union GmbH em 1964, então pertencente à Daimler-Benz desde 1958 Dali em diante, a Volkswagen teve acesso completo a esse ótimo conceito de motor, projetado pela Daimler-Benz e o Passat foi o primeiro carro da marca a utilizar essa mecânica. Aqui no Brasil, o modelo foi lançado em 1974 com a variante de 1,5 litro com carburador de corpo simples, gerando 65 cv (potência líquida).
Não era muito, mas, para a época, significava um bom resultado, e por isso o carro tinha desempenho interessante. Por essas e outras, o Passat surpreendeu na época. Para a linha 1976 veio o segundo integrante dessa família de motores, lançado no esportivo Passat TS: era o mesmo projeto mecânico, mas de 1,.6 litro, por meio de aumento do diâmetro dos cilindros — 76,5 mm para 79,5 mm, mesmo curso dos pistões de 80 mm —e carburador de corpo duplo, subindo sua potência líquida para 80 cv.
Nessa época, eu iniciava minha carreira jornalística, e dirigir um Passat TS era uma experiência inesquecível: se você parasse em um semáforo ao lado dos grandes Chevrolet Opala 4100 6-cilindros, Dodge Dart/Charger V-8 ou Ford Maverick 302 V-8, não precisava ter medo. O Passat, arrancando com vontade, acompanhava de igual para igual os maiores. Era só alegria a bordo do TS.
Em 1981, comecei a correr de Passat, sabendo que o carro tinha seus méritos e qualidades para o alto desempenho. Comprei um LS 1,5 duas-portas, desmontei seu 1500 e o altereis para 1.6 litro aumentando o diâmetro dos cilindros, como explicado Externamente, troquei o coletor de admissão e, num desmanche, achei o precioso carburador Solex 32/35 DIDTA de corpo duplo que vinha originalmente nos TS. Troquei o coletor de escapamento por um 4-em-1.
No circuito antigo de Interlagos, assim configurado e abastecido com álcool, chegava na freada da Curva Três, no final da reta, a 7 mil rpm em 4ª marcha, 192 km/h.. Isso era muito rápido! Seu motor vindo do projeto alemão, se dava bem em todas as categorias que participasse nas corridas, e os preparadores deitavam e rolavam com componentes, como comandos de válvulas, cabeçotes trabalhados e por aí vai, que faziam o compacto motor de origem Daimler-Benz chegar a resultados espantosos de desempenho.
Claro, o projeto era bom, e por isso evoluiu dentro da VW. Se na sua versão original, lá do início dos anos 70, aqueles motores já davam potência a mais de 5.500 rpm, mostrando seu lado “girador” que não tem medo de rotações altas, suas evoluções se tornaram queridinhas nas mãos dos preparadores. Os profissionais faziam o motor respirar melhor com coletores de admissão maiores, permitindo carburação especial: um Weber duplo IDF de 40 mm, ou até dois deles, com cada corpo alimentando um cilindro.
Melhor ainda quando o coletor permitia a adaptação de dois Weber 40 DCOE, horizontais, que trabalhavam em conjunto com um comando de válvulas alemão e um coletor de escapamento dimensionado. Estava aí a fórmula para fazer os Passats voarem baixo no início dos anos 80, época que já tínhamos Voyage e Parati que também vinham com essa família de motores. Inicialmente, o bom e velho 1,5 herdado do Passat, e que, já em 1983 deu lugar ao 1,6. Aí sim, a coisa pegou…
Em 1982 o 1,6 EA-827 passou por reformulação para consumir menos combustível e ganhar potência em rotação mais baixa, sendo chamado de Torque, O consumo diminuiu, mas o motor perdeu o brilho, embora tornasse possível um câmbio opcional de quatro marchas com escalonamento mais aberto, que ficou conhecido como “3+E”.
O bicho pegou quando o 1.6 passou a ser oferecido também no Gol, Parati e Voyage (Foto: reprodução/findmotors.com.br)Em 1984, a grande surpresa foi a chegada do Gol GT, o primeiro Gol arrefecido a água. Seu 1,8 (1.781 cm³, 81 x 86,4 mm) continuava membro da família EA-827. Esse motor foi denominado AP-800 (AP de Alta Performance) e tinha novos bloco e cabeçote. Quase que simultaneamente, era lançados também o Santana e alguns meses depois camioneta Quantum, com o mesmo AP-800 do GT, só que amansado.
O AP-800 , cerce de seis meses depois passou por duas modificações importantes. O comprimento das bielas passou de 136 mm para 144 mm, melhorando a relação r/l, de 0,317 para 0,300, e as válvulas de escapamento aumentaram de 31 mm para 33 mm. Não me lembro da potência do motor a álcool, mas o a gasolina passou de 85 cv par 90 cv, Era um motor completamente diferente do “bielinha”. que com as bielas curtas tinha funcionamento áspero e mais atrito dos pistões a anéis contra os cilindros devido à maior decomposição da força vertical em lateral. O atrito foi reduzido também com os pistões de saia mais curta e anéis de segmento mias finos.
Em 1986 o motor 1,6 Torque foi substituído pelo AP-600, de mesmo bloco e cabeçote do AP-800, mudaram as dimensões diâmetro x curso, de 81 x 86,4 para 81 x 77,4 mm, 1.596 cm³. Quanto foram lançados o Santana e a Quantum com motor de 2 litros em 1988 (1.984 cm³, 82,5 x 92,8 mm), esse motor se chamou AP-2000, e por questão de uniformização, AP-600 se tronou AP-1600 e o AP-800, AP-1800.
Lembro-me de estar no meu início de carreira na revista Quatro Rodas quando tive a oportunidade de guiar os primeiros Gol GT, ainda com quatro marchas. Fiquei abismado com o desempenho, principalmente, da versão a álcool, que já utilizava a arrojada taxa de compressão de 12:1, um assombro para a época. Por ser mais leve e com motor de cilindrada maior, com mais potência disponível em toda a faixa de rotação, o GT, quando comparado ao antigo Passat TS de 1976, era um verdadeiro rojão: ganhava na cilindrada, na taxa de compressão (o TS tinha 8,5:1), e na relação peso-potência. Os pneus Pirelli P600 185/60R14 também faziam diferença no comportamento nas curvas. Vale lembrar que o motor AP-1800 fez sucesso no Passat GTS Pointer, que tinha as mesmas rodas e pneus.,
A diferença se tornou mais gritante com a chegada do câmbio de 5 marchas no Gol GT em 1985, o tão falado PV, de escalonamento mais fechado, mais adequado as características do motor.
De tanto que gostei do novo AP, uma evolução dos MD, logo corri pra comprar meu Gol AP-600 1987 (Foto: reprodução/zeroauto.com.br)Os motores AP me deixaram tão entusiasmados que, já em 1986, comprei um Gol LS com o AP-600 a álcool e 85 cv líquidos. Nele, mesmo com a menor cilindrada e sem pretensões esportivas, havia a boa taxa de compressão de 12:1, entregando nesse caso, 80 cv líquidos.
Apesar do meu Gol ainda ter o câmbio de quatro marchas (a 5ª só vinha nos modelos esportivos e de luxo), o carro apresentava um desempenho bom para a época, só era algo curto na estrada, No câmbio de cinco marchas a quinta era suplementar às quatro marcha em questão de relações: em vez de última marcha ser 0,909;1. no cinco-marchas era 0,729:1.
O legal nos anos 1980, é que a GM vinha na mesma balada com seu motor 1,6, também de origem alemã (Opel), lançado no Monza em 1982. Para fazer frente à VW, a marca da gravata borboleta já tinha, com o aval da Opel, seu 1,8 na manga, inicialmente oferecido com carburador de corpo simples e depois carburador de corpo duplo. O motor da GM também era uma fera para a época. Coincidência ou não, o Monza foi o carro mais vendido do nosso mercado em 1984, 1985 e 1986. A briga era boa!
Só como referência, o Gol assumiu a liderança, tomando-a do Monza, em 1987, e assim ficou até 2014, totalizando 27 anos consecutivos.
Satisfação ao dirigir, isso sim, era pilotar um VW Gol GTi apresentado no Salão do Automóvel de 1988 como ano-modelo1989. Quem teve a oportunidade de estar ao volante desse valente Gol metido a valente sabe do que estou falando. Em minha opinião, foi o ápice da lendária família AP, incluindo seus antecessores. Nessa época, o 2,0 era o irmão maior dessa família, lançada em 1988 ainda a carburador. Em paralelo, a engenharia da VW já preparava o 2.0 com injeção analógica LE-Jetronic com sistema de ignição digital. EZ-K, ambos sistemas da Bosch.
Se o AP-2000 não era lá essas coisas quando com carburador, ele renascia por completo com a injeção, como um verdadeiro foguete. A primeira versão de lançamento tinha nada menos que 114 cv líquidos, e torque máximo de 17,6 m·kgf líquidos. Hoje parecem pífios, típicos de um 1,0 turbocarregado, mas espantosos para o final dos anos 1980 e início dos 1990, ainda mais em um levíssimo Gol, nascendo assim um dos melhores carros nacionais já produzidos.
O GTI fazia de 0 a 100 km/h em 8,8 segundos e atingia fácil os 190 km/h de máxima, esses sim números de respeito para os dias atuais, mesmo falando de esportivos. O 2,0 AP tinha seu sistema Bosch LE-Jetronic de injeção, ainda analógico, que trabalhava com a moderna ignição eletrônica EZ-K, essa digital e com sensor de detonação no bloco: com ele, o sistema “ouvia” o primeiro sinal de detonação para fazer correções constantes na curva de avanço do motor. Esse era um AP para ninguém botar defeito, e praticamente inquebrável, pois o próprio sistema de injeção cortava a alimentação o motor e impedia o excesso de rotação.
Nos anos 1990, os AP vieram com os sistemas de injeção em toda a linha, isso em 1994, ainda com tecnologia monoponto (os chamados 1.6i, 1i8i e 2.0i), isso valendo para álcool e gasolina, inclusive no Gol GTI 16V “bolinha” (a injeção dele já era digital). Mas, já dois anos depois, por uma questão de consumo e emissão de gases poluentes, a VW adotou a injeção multiponto, e assim surgia a sigla “Mi”, de Multipoint injection, para toda a linha 1997.
No início dos anos 2000, em 2003 para ser exato, os VW AP ainda mostravam pioneirismos: além de ter sido o primeiro motor com injeção eletrônica no Brasil, eles também estrearam a tecnologia flex por aqui. E, claro, o Gol Total Flex foi o primeiro carro a receber essa tecnologia que permite o funcionamento com gasolina, álcool, ou a mistura de ambos, em qualquer proporção. Desta vez, a grande inovação vinha na variação AP-1600, de 1,6 litro, mas ainda um AP.
Essa família foi tão importante para o mercado nacional que continuou em produção por aqui, considerando o Passat 1974, por quase 40 anos: sua despedida se deu em 2013, um ano depois da Parati, oferecida em fim de linha com uma versão modernizada do AP-1600. Mesmo veterano, o AP, em seu último ano de produção estava praticamente empatado com o então moderno 1.6 EA-111, criado em 1996 para ser seu substituto.
Os números de potência máxima eram quase iguais (diferença de 1 cv), enquanto o torque diferia em até 1 m·kgf, uma vitória para um motor tão longevo e com poucos recursos tecnológicos da atualidade. Por isso é tão cultuado até hoje, e considerado por muitos o melhor motor já produzido no Brasil.
DM
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