Quando juntamos três nomes de peso para um trabalho em conjunto, é de se esperar que o resultado seja excelente. Ao colocar no mesmo palco Plácido Domingo, Luciano Pavarotti e José Carreras, cantando com suas poderosas vozes, o que ficou conhecido como Os Três Tenores era quase imbatível no mundo dos espetáculos musicais. A harmonia entre eles era perfeita. Possivelmente, foi isto que faltou para o caso da tentativa de Henry Ford, Harry Miller e Preston Tucker criarem juntos um carro vencedor para a 500 Milhas de Indianápolis.
Nos Estados Unidos dos anos 1930, a 500 Milhas de Indianápolis era o evento automobilístico mais importante do ano. Na verdade, era um dos poucos organizado de forma profissional e quase que o único realizado em um autódromo deste porte dedicado ao esporte a motor, desde 1911.
Os maiores nomes do automobilismo estavam envolvidos e interessados na prova realizada no circuito de duas milhas e meia localizado em Indiana, estado vizinho de Michigan, onde os grandes fabricantes de automóveis estão sediados até hoje. Vencer a prova de 200 voltas no circuito oval de quatro curvas para a esquerda representava estar no ápice da cadeia, tanto para os pilotos como para os fabricantes dos carros competidores.
Algumas figurinhas carimbadas em Indianápolis eram favoritas só por estarem inscritas, mas novos nomes surgiam a cada edição da corrida que se tornava “o maior espetáculo do automobilismo” (The Greatest Spectacle in Racing como ficou conhecido nos EUA). Um deles foi Harry Miller, que construiu uma enorme reputação em torno das 500 Milhas nos anos 20. Com ele, um jovem apaixonado pelos carros de corrida chamado Preston, estava buscando oportunidades no meio automobilístico.
Harry Miller, um mago da mecânica
No centro desta história está o nome Miller. Quem foi Harold Arminius Miller, apelidado de Harry? Possivelmente, foi um dos, se não, o maior projetista automobilístico que os Estados Unidos teve. Nascido em 1875 no estado de Wisconsin, ao lado de Michigan, Harry começou cedo na vida profissional ao lado de carros de corrida, passando pela empresa Yale Automotive e depois trabalhando diretamente com Ransom Olds, fundador da Olds Motor Vehicle, que depois se tornaria Oldsmobile, quem conheceu por conta de trabalhos que ele prestava em uma oficina de usinagens para peças para automóveis.
Encantado pela mecânica, em especial nos motores, Miller partiu para a ala da preparação e construção de componentes para competição. Ele criou uma empresa em Los Angeles em meados dos anos 1900. Um de seus mais bem sucedidos itens era um carburador desenhado e fabricado por ele mesmo, que em 1915 já girava a empresa Miller’s Master Carburetor Company, vendendo itens para os preparadores e entusiastas de todos os lugares em que o nome Miller alcançava.
Uma coisa levou a outra, e quando menos se via, Harry estava fabricando seus próprios motores e, pouco tempo depois, seus próprios carros de corrida, de alto nível diga-se de passagem. Os motores eram sensacionais, com tecnologias inovadoras que facilmente vemos em motores modernos hoje em dia, como duplo comando de válvulas, quatro válvulas por cilindro, pistões fabricados em ligas de alumínio e câmaras de combustão hemisféricas.
Os motores de Miller, que começaram com versões de quatro e depois passaram a oito cilindros em linha, equiparam diversos vencedores das 500 Milhas nos anos 1920. Miller contava com Fred Offenhauser, que desde 1914, trabalhava no desenvolvimento de seus motores, e que acabaria por seguir com a produção após Miller encerrar as atividades, mas esta é uma outra história.
Assim como Ettore Bugatti, Miller era mais que um bom projetista, era praticamente um artesão de talento nato que executava seus projetos da forma mais delicada e perfeccionista possível. Em um tempo em que tudo ainda era novidade e não existiam regras definidas para o design de um carro, artistas da mecânica como Miller podiam vislumbrar os mais engenhosos projetos, como foram seus carros de Indianápolis de tração dianteira, por exemplo.
O sucesso dos carros e motores de Miller em Indianápolis indicavam um futuro de sucesso, porém, mesmo Harry sendo um gênio da mecânica, o cenário econômico dos EUA no raiar dos anos 1930 acabou com sua recém-criada empresa de engenharia e consultoria. A Grande Depressão fechou as torneiras dos investimentos em projetos de carros modernos e de luxo, deixando o projetista órfão de clientes.
Buscando novos projetos e investimentos, ele se une com o jovem Preston, ávido por uma experiência vencedora no automobilismo.
Preston Tucker, o articulador
Conhecido hoje pela marca Tucker e todo seu escândalo, muito bem retratado no filme Tucker: Um Homem e seu Sonho, interpretado por Jeff Bridges, Preston teve uma vida bem ativa no mundo automobilístico antes de criar sua própria fábrica.
Nascido em Michigan, nas proximidades de Detroit, em 1903, Preston desde criança tinha fascinação por carros. Antes dos 18 anos, já comprava carros usados, reparava-os e vendia para fazer dinheiro para seus interesses futuros, já demonstrando visão de negócios. Ele trabalhou como auxiliar de escritório na Cadillac e na linha de montagem da Ford, intercalado com passagens pela polícia (como policial, não como criminoso).
Preston passou também pelas marcas Stutz, Chrysler, Pierce-Arrow e Dodge, sempre como vendedor ou gerente de vendas, graças à sua vocação clara para os negócios, mas sem perder seu interesse pelo automobilismo. Assim como para todo entusiasta da época, as 500 Milhas eram o epicentro do automobilismo, e Tucker frequentava anualmente o evento. Lá, ele teve a chance de conhecer Miller, já consagrado como o maior projetista de carros de corrida do evento, com diversas vitórias em seu bolso.
O encontro foi quase como uma paixão à primeira vista, pelo menos para Tucker, que via em Miller um homem de sucesso atuando dentro de seu círculo de interesse mais profundo, o automobilismo. Ter a chance de conhece-lo levantou a hipótese de algo que Preston vinha concebendo há um tempo: criar um carro para disputar a corrida de Indianápolis, e Miller poderia ser a ferramenta perfeita para isto. Depois da falência da empresa de Miller, este foi para Nova York, onde encontrou Tucker novamente.
Na visão de Tucker, um bom projeto seria unir um chassi moderno com um motor bem consolidado e que fosse durável, eliminando riscos de quebras. Depois de algumas negociações entre Miller e Tucker, uma parceria foi forjada em 1935 para desenvolver o novo carro imaginado por Preston. Nascia a Miller and Tucker, Inc. para formalizar o negócio que pretendia vender seu novo carro para pilotos particulares e equipes.
Faltava apenas dois pequenos detalhes: dinheiro para o investimento e definir um motor.
Henry Ford, em busca do sonho com Edsel
A Ford Motor Company que conhecemos hoje basicamente nasceu de um carro de corrida criado por Henry Ford, o famoso 999 do começo dos anos 1900. A velocidade está diretamente ligada ao nome Ford, este, um entusiasta raiz que além de fortalecer o esporte a motor nos EUA, foi um dos apoiadores da criação do autódromo de Indianápolis e das 500 Milhas.
Aqui entramos em um ponto nebuloso desta história. Não é certo nem documentado exatamente como que ocorreu todo o processo desde a abordagem e até mesmo as reais motivações do contato entre a Miller, Tucker e a Ford Motor Company.
Alguns relatos apontam que Tucker, vendedor nato, tinha interesse nos motores V-8 flathead da Ford usados nos modelos mais sofisticados da empresa, e sabendo do interesse de Henry nas 500 Milhas, poderia oferecer ao empresário uma oportunidade de colocar o nome Ford em um carro vencedor. Outros indicam que teria sido possível que o caminho fosse o inverso, com Ford (no caso, Edsel Ford, filho de Henry) procurando Tucker e Miller para a construção de um novo carro para Indianápolis. O mais aceito de modo geral é a primeira versão.
Independente de quem tomou a iniciativa nas negociações, a conclusão é que a Ford forneceria motores e outros componentes como freios, diferenciais e instrumentos de painel, além de acesso a seu centro de desenvolvimento de engenharia, e uma quantia inicial de 25 mil dólares (hoje equivalente a algo perto de meio milhão de dólares). A Miller & Tucker deveria entregar dez carros completos para competirem na 500 Milhas de 1935. Este acordo foi firmado nas primeiras semanas de 1935, e a corrida estava agendada para o dia 30 de maio.
Miller teria a chance de criar um carro moderno e arrojado, com recursos financeiros e técnicos que poderiam proporcionar algo incrível. Ele planejou um chassi dotado de suspensão independente nas quatro rodas, algo até então inédito em Indianápolis, motor V-8 e tração dianteiros, algo que ele já dominava há uma década.
O projeto de Miller, moderno e ousado
Com as suspensões independentes, sem os tradicionais eixos rígidos, e sem um cardã passando por debaixo do carro, era possível fazer o chassi mais baixo, reduzindo a altura do centro de gravidade e melhorando a aerodinâmica do carro, que também contava com uma carroceria de linhas suaves e arredondadas para melhor cortar o ar em seu caminho. Os braços de suspensão eram carenado com elementos em forma de asa para melhorar a eficiência aerodinâmica. Todos pequeno detalhes que fazem um carro vencedor.
O motor Ford era o V-8 apelidado de flathead (cabeçote plano) por ter suas válvulas de admissão e escapamento no bloco. Com 221 pol³ (3,6 litros), Miller substituiu os cabeçotes originais por um conjunto em alumínio, fabricado pela empresa Bohn, especialista neste material, com ajustes e preparações feitas por Miller. Quatro carburadores Stromberg 97 de corpo simples alimentavam o motor para gerar 160 cv (originalmente o flathead oferecia 90 cv). Miller teve o cuidado de posicioná-los no coletor de admissão (também de alumínio) de forma que as cubas “empurrassem” o combustível para o corpo de admissão nas curvas, por causa do efeito centrífugo das curvas de alta velocidade só para esquerda de Indianápolis.
Ford, experiente no mundo dos negócios, garantiu que seus interesses fossem protegidos, em especial, sua reputação. Por meio de contrato com Preston e Miller, eles poderiam ficar com os eventuais prêmios em dinheiro da corrida e também os carros, enquanto que Ford teria todo o direito de imagem dos resultados. Henry e Edsel contaram a agência N. W. Ayer & Son para cuidar da parte promocional e apresentação do projeto, dos carros e de como a imprensa seria envolvida no assunto.
Sendo uma das, se não a mais antiga agência de marketing do país, datando sua fundação em 1869, era plenamente capaz de administrar a imagem da Ford neste projeto. Se algo desse errado, eles iriam cuidar do que os americanos chamam de damage control, ou controle de estragos, que poderiam prejudicar a imagem da Ford Motor Company.
Além das propagandas na mídia, os próprios carros seriam uma vitrine para Ford. O logotipo estilizado do novo V-8, igual ao usado nos carros de passeio da Ford e nas suas propagandas, foi pintado na lateral de todos os carros de Miller, indicando que ali tinha um V-8 Ford.
Tudo parecia bem, no papel, para que o projeto desse bons retornos para todos os envolvidos.
O tempo curto para tamanha empreitada
Uma máxima na engenharia não falha: falta de testes levam ao desastre. E foi o que o projeto de Miller e Tucker enfrentou em um glorioso fracasso aos olhos de milhares de pessoas.
Com o acordo firmado entre as partes, tudo poderia começar a ser desenhado e fabricado o quanto antes para que os dez carros estivessem prontos para a ação no dia 30 de maio de 1935. Entretanto, tudo só começou efetivamente em março, pois o equipamento que Ford enviaria para a oficina da Miller & Tucker junto com as peças atrasou.
A verba também ficou mais curta que o previsto, os 25 mil dólares acabaram mais rápido do que esperaram, e Tucker conseguiu convencer Edsel Ford a liberar mais 50 mil. Mesmo com mais dinheiro em caixa, o tempo era escasso para projetar, construir e testar o projeto inovador de Harry. Apenas cinco carros estava prontos no dia da classificação da 500 Milhas.
Sem tempo hábil para realizar todos os testes necessários e localizar as falhas que eventualmente podem surgir, os cinco carros sofreram no autódromo oval de Indiana. Apenas quatro deles conseguiram se classificar. Mesmo com pilotos habilidosos, inclusive vencedores das 500 Milhas, como Peter DePaolo, não apreciaram o resultado dos esforços de Harry Miller, principalmente o sistema de direção.
Dos quatro carros que largariam, dois pilotos eram novatos na corrida (Ted Horn e Bob Sall, este último que teria ainda boas participações em anos futuros) e dois eram veteranos (Johnny Seymour e George Bailey). Em 1935, era obrigatório que o mecânico do carro também estivesse a bordo, ou seja, os carros eram de dois lugares.
Para o desespero de Miller e Tucker, todos os carros começaram a apresentar o mesmo problema ao longo da corrida. A direção ficava mais pesada a cada volta, até travar. A caixa de direção estava muito próxima ao coletor de escapamento, que com o tempo, aquecia mais do que deveria e sofria danos por conta do calor excessivo. O melhor resultado foi um distante 16° lugar do novato Ted Horn, que conseguiu levar o Miller-Ford até a 145ª volta. 72,5% do percurso.
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Depois do vexame, pouco restava para a Ford aproveitar do que poderia ter sido uma excelente propaganda para a empresa de seu novo V-8. Para piorar as coisas, Tucker e Harry mandaram a conta final para ser paga, que dos 75 mil dólares pulou para 117 mil. Henry Ford aceitou pagar o valor total, mas, ficaria com os carros para si, ao contrário do que era o acordo inicial. Desta forma, teria total controle sobre o que seria feito com eles, com o intuito de evitar novas más propagandas para o nome Ford, caso os carros corressem novamente e fracassassem. Miller e Tucker não tinham muito como argumentar contra, dado o péssimo resultado e a conta a ser paga pelos investimentos feitos no projeto. Ou era isso, ou arcariam com enorme prejuízo.
Depois desta tentativa de 1935 com a Ford, os sócios da Miller & Tucker trabalharam em mais alguns projetos de carros de corrida, até a morte de Miller em 1943. Tucker seguiu a vida na indústria e partiu para a criação de sua própria fábrica que levaria seu nome.
Quanto aos cinco carros fabricados que participaram da 500 Milhas de 1935, Ford guardou-os por alguns anos, depois vendeu-os para pilotos particulares, alguns fazendo novas tentativas em Indianápolis, com modificações como o uso de novos motores Offenhauser. Um deles ficou com a Ford, e hoje está exposto no Henry Ford Museum, em Dearborn.
Mesmo com a genialidade de Harry Miller, o projeto fracassou. Não por ser um carro ruim, mesmo porque foi um dos mais velozes naquele ano em Indianápolis, mas por falta de tempo para preparação. Se o carro tivesse sido testado minimamente, o calor emanado do escapamento teria danificado uma caixa de direção durante alguma sessão de testes, erro que prontamente seria corrigido.
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MB