O americano Kevin Cameron circula no meio das corridas de motos e da tecnologia destas por mais de meio século. Apenas isso seria excelente para ser o escolhido pela empresa dona da MotoGP, a espanhola Dorna, para publicar uma obra com a história técnica das motos e dos campeonatos. Mas Cameron estudou Física na Universidade de Harvard, em Massachussets, o que sem dúvida ajuda muito na qualidade de seus textos explicativos.
Sua pena mistura história, tecnologia e comportamento humano, este que em última análise decide o caminho a ser escolhido.
A revista americana Cycle World publica suas colunas há tempos, já que ele está na labuta por lá desde 1991, tendo sido o editor por vários anos. No canal da revista no YouTube há vídeos com explicações técnicas excelentes. Uma quantidade de informações maravilhosa para quem gosta do assunto. Muito material pode ser acessado no link ao final do texto.
Publicado em 2009, o livro varre desde 1949, antes do que se classificou como “campeonato mundial” ainda que com corridas apenas na Europa, o berço das marcas que iniciaram o esporte, até 2008.
Esse livro estava na estante para ser lido ha um certo tempo, ate que me debrucei nele e não me arrependi. Pelo contrário, fiquei sabendo muitas coisas que não entendia quando tinha mais ânimo de assistir corridas do campeonato mundial de motociclismo. Tempos de Freddie Spencer, Eddie Lawson, Ron ”Rocket” Haslam (largava sempre rápido como um foguete], indo mais adiante com um tal de Wayne Rainey, que, como Cameron explica, complicava a vida de engenheiros e mecânicos porque andava rápido com qualquer ajuste na moto, oposto ao comportamento de Michael Doohan, que era terrivelmente chato e exigente para tudo ser ajustado para seu estilo.
O livro foi publicado como item oficial de mercado da MotoGP, e o autor teve ajuda do ilustrador Pepe Burgaleta, que, fazendo um trabalho com muita qualidade, poderia tê-lo feito em maior quantidade. Deveria ter batido o pé para que fossem publicados desenhos de detalhes que explicassem a posição dos anéis de segmento num motor que gira a quase 20 mil rpm, por exemplo. Mas — e tudo na vida tem um mas — o trabalho de Burgaleta foi limitado a vistas completas das maquinas, umas poucas sem as carenagens. Assim, o livro tem duas notas distintas no meu entender. Um dez com louvor para o texto e um cinco para o conteúdo ilustrativo. Pouquíssimas fotos também, apenas no inicio dos capítulos, algo inexplicável.
Talvez tivessem pensado em tempo e o maior custo para colocar mais detalhes, mas valeria a pena, pois teria se tornado um livro épico. Como esta fica sendo “apenas” excelente.
O melhor de tudo são as historias de como as escolhas foram feitas, quantos cilindros um motor deve ter para o que se precisa, a diferença entre carburadores (usados ate 2001) e injeção eletrônica para o estilo de pilotagem de cada piloto (eu adianto: com injeção o trabalho do piloto fica muito mais fácil) como desenho do perfil dos pneus mudou completamente o modo de pilotagem, o posicionamento de motor no quadro afetando a distribuição de peso e mudando completamente como o piloto deveria comandar a maquina, e por ai vai. Absolutamente sensacional.
Algo que aprendi lendo a saudosa revista Motoshow (Oi, Roberto Agresti, onde você se encontra?) foi a introdução da derrapagem da roda traseira como método de apontar a moto para a saída da curva e manter uma maior aceleração. Ha um capitulo sobre a era de Kenny Roberts, que foi quem primeiro trouxe esse estilo aprendido nas corridas em ovais de terra (dirt track) nos EUA, e Cameron conta tecnicamente como este modo de pilotagem de Roberts mudou tudo. Em não muito tempo todos começaram a perceber que esse era o melhor jeito de andar mais rápido, e mesmo não aderindo inicialmente e reclamando bastante, os europeus aprenderam rapidamente. Se naquele final de anos 1970 Roberts era exceção, hoje não imaginamos Marc Marquez e seus colegas pilotando sem derrapar muito.
Mais impressionante ainda saber que quando a moto tinha excesso de aderência no pneu traseiro, mágicos como Eddie Lawson provocavam a derrapagem com rápidos toques no freio traseiro, no meio da curva!!!!!!!! Lawson, inclusive, foi vitima de um erro de seu mecânico, que após troca de pastilhas de freio esqueceu de colocar a trava e na primeira frenagem forte num treino, essas foram ejetadas da pinça. Sabendo que bater seria pior do que cair naquele local, Lawson jogou a moto no chão e escorregou ao lado dela ate parar. Frieza e raciocínio dignos de piloto de avião em combate.
O motor sendo o elemento mais pesado deve ficar o mais baixo possível para melhor estabilidade da moto, certo? Não mesmo! Se ele for muito baixo vai limitar a inclinação e anular a vantagem da aderência elevada dos pneus. Fácil ver hoje cotovelos dos pilotos perto e ate mesmo raspando o chão, e com o motor muito baixo isso não seria possível. Onde mais se pode aprender algo assim? Do mesmo naipe temos a informação de que o principal projetista das marca britânica Norton, Rex McCandless, construía os primeiros amortecedores hidráulicos para as motos de corrida utilizando componentes da Citroën.
Cameron esta no seleto grupo dos jornalistas-autores que são o exemplo de saber escrever e deixar registrado um texto sempre atual, que deve ser usado como fonte de conhecimento básica para se progredir na arte da escrita.
O livro não se classifica como barato, mas se você seguir os preços com uma certa frequência pode ter a sorte que eu tive e não despender demais nessa grande obra.
No site abaixo muito material excelente de Kevin Cameron.
https://www.cycleworld.com/authors/kevin-cameron/
JJ