Os chamados supercarros como conhecemos hoje se estabeleceram nos anos 1980 com a criação de modelos icônicos como o Ferrari F40, o Porsche 959 e o Lamborghini Diablo, este já na virada para a década seguinte. Estes modelos se destacavam perante seus familiares por serem mais extremos que os demais.
O F40 era um carro de pista para as ruas, desprovido de qualquer luxo (ou mesmo acabamentos básicos), capaz de atingir mais de 320 km/h. Na Alemanha, a Porsche lançou o 959 como o seu modelo mais completo, equipado com tecnologias de ponta, como tração nas quatro rodas com controles eletrônicos, também capaz de superar os 310 km/h.
Desta época para frente, os fabricantes trouxeram à vida modelos cada vez mais potentes, velozes e sofisticados. Veio o Ferrari F50, o Enzo, o Porsche Carrera GT, o Pagani Zonda, o Bugatti Veyron, e tantos outros. Todos eles são muito mais potentes e rápidos que qualquer carro comum de sua época, muito mais exclusivos e caros. Com todos estes atributos, se olharmos para trás, podemos identificar um antepassado dos supercarros modernos, vindo de uma marca que praticamente não investiu em carros extremos nos últimos 80 anos.
OS IRMÃOS MASERATI
Rodolfo e Carolina Maserati viviam na província de Piacenza, na região norte italiana da Emilia-Romagna, hoje conhecida pelos entusiastas como um dos berços do automobilismo europeu, por abrigar também as províncias de Modena (onde nasceu a Ferrari) e Bologna (onde foi criada a Lamborghini).
Rodolfo era engenheiro com ampla experiência em ferrovias, e o casal teve nada menos que seis filhos, começando por Carlo (nascido em 1881), Bindo (1883), Alfieri (1887), Mario (1890), Ettore (1894) e Ernesto (1898). Alfieri na verdade foi o quarto filho nascido, pois antes dele um bebê de mesmo nome não sobreviveu.
A maioria dos filhos seguiram o caminho de Rodolfo, com aprendizado e dedicação nos campos da engenharia e mecânica. O filho mais velho, Carlo, foi o primeiro a ingressar na indústria, trabalhando numa fábrica de bicicletas onde desenvolveu seu próprio motor à combustão monocilíndrico para propulsão de bicicletas.
Depois, foi para a Fiat e de lá, para a Isotta-Fraschini, trabalhar com projetos e testes de veículos. Na Isotta, então um forte nome da indústria, atuando tanto no ramo de automóveis como na aviação, Carlos levou seus irmãos Alfieri, Bindo e Ettore para trabalharem lá.
O aprendizado numa empresa como a Isotta era incrível. Ver a criação, fabricação e testes de carros e motores abriu a mente dos irmãos Maserati. Alguns anos depois, em 1905, Carlo e Alfieri foram para a empresa Bianchi, onde envolveram-se com carros de corrida.

Carlo veio a falecer em 1910 de tuberculose. Seus irmãos, já com alguma vivência na indústria e no automobilismo, viram que poderiam criar sua própria marca. Alfieri chegou a ter uma oficina especializada em motores Isotta-Fraschini em 1913, mas no ano seguinte, junto com seus irmãos, criaram a Societa Anonima Officine Alfieri Maserati em Bolonha.

Investiram numa fábrica de velas de ignição e baterias em Milão durante a Primeira Guerra Mundial, batalha na qual Alfieri e Ettore participaram, que em 1919 foi transferida para Bolonha.
Com o fim da guerra, os três irmãos se dedicaram ao automobilismo, modificando carros e motores de competição.
O PRIMEIRO CARRO MASERATI
Um marco na história dos irmãos Maserati foi o primeiro carro propriamente montado por eles. Alfieri estava disputando provas locais com carros da SCAT (Società Ceirano Automobili Torino, pequena empresa de Turim que atuou de 1906 a 1929, até ser comprada pela Fiat) mas sem sucesso. Seus rivais pilotando Isottas, Alfas e Italas se mostravam superiores.
Alfieri parte para uma solução própria, juntando partes dos carros que conseguia e julgava adequadas para competição, como um chassi Isotta-Fraschini, motor Hispano-Suiza, transmissão SCAT e eixos do Itala. O resultado foi o que chamaram de Maserati Tipo Speciale (Tipo Especial, termo bastante comum para carros bem modificados). Com este carro, Alfieri juntamente com seu irmão Ernesto, conseguiram a primeira vitória com o nome da família, em Susa-Moncenisio no ano de 1921.
Depois desta vitória, diversas outras conquistar vieram com o Speciale. Em 1923, a empresa Diatto chama os agora famosos irmãos Maserati para serem consultores. A Diatto era uma tradicional empresa italiana, criada em 1835 para fabricar carruagens, e que migrou para os automóveis nos anos 1900. A ligação dos Maserati com a Diatto durou pouco, e em 1926 finalmente teriam uma fábrica com o nome da família para criar seus próprios automóveis.

Graças a ajuda financeira de Diego De Sterlich, rico entusiasta que acompanhava o trabalho dos Maserati, ele comprou e enviou para Alfieri dez chassis Diatto, transmissões e várias peças sobressalentes, quando a empresa decidiu abandonar as competições e se desfez do seu ativo.
Utilizando o conceito que eles desenvolveram junto com a Diatto para os carros de corrida e os chassis recebidos de Sterlich, o primeiro carro a receber o nome Maserati foi chamado de Tipo 26, em alusão ao ano de seu lançamento. A estrutura do carro era relativamente simples, como todos os carros de corrida da época, com um chassi de duas longarinas longitudinais unidas por diversas travessas para fixação do conjunto motriz e carroceria, assim como são os caminhões até hoje.

O motor de oito cilindros em linha desenvolvido para o Tipo 26 também nasceu com base no Diatto, porém era um 1,5-litros e não mais 2-litros para se adequar as regras da provas de Grand Prix, equipado com supercarregamento Roots acionado pelo virabrequim, duplo comando do válvulas no cabeçote, recursos avançados para a época. O motor era ligado a um câmbio Diatto de três marchas adaptada para o novo carro, que também recebeu uma carroceria de alumínio fabricada pela Carrozzeria Fantuzzi, que viria a ser uma parceira de longa data da Maserati.
O lendário logo do tridente de Netuno foi desenhado por Mario Maserati, o quinto irmão da família, que era artista e usou as formas do tridente esculpido nos século XVI por Giambologna na estátua da Fontana del Nettuno no centro da cidade de Bolonha.

A qualidade do projeto mostrou-se real quando os irmãos disputaram a lendária prova italiana Targa Florio, uma corrida de rua nos arredores da Sicília, com um total de 540 km no ano de 1926. O Tipo 26 entrou na categoria de carros equipados com motores até 1,5 litro.

Na classificação geral, o Tipo 26 conduzido por Alfieri Maserati, junto com seu copiloto e mecânico de bordo Guerino Bertocchi, terminou em oitavo lugar na classificação geral, mas foi o vencedor da categoria. Era o sucesso que os irmãos Maserati precisavam para fazer deslanchar o sucesso de sua empresa. Muitos pilotos viram o desempenho do carro na sua estreia nas pistas e demonstraram grande interesse em adquirir um Tipo 26. Ao total, pouco mais de quarenta unidades são vendidas.
O TIPO V4
Buscando formas de aumentar a potência de seus motores para competir em maior igualdade com a Alfa Romeo e o bem sucedido modelo P2, os Maserati buscaram alternativas e uma delas foi aumentar consideravelmente o tamanho do motor. “There is no replacement for displacement”, diriam os hot-rodders americanos trinta anos mais tarde, e eles não estavam de todo errados.
Como na virada para os anos 1930 ainda se tinha muita criatividade a ser explorada pelos projetistas, uma possível opção para o novo motor Maserati seria a junção de dois motores em um só. Combinar dois oito-cilindros em linha para formar um novo motor em “V” de 16 cilindros parecia bem razoável. O projeto do motor ficou com Piero Visentini, que junto com Edoardo Weber, dos carburadores Weber, criaram o sistema de admissão e alimentação de combustível compatível com as duas bancadas de cilindros.
A opção mais lógica seria utilizar a base do motor do Tipo 26B de 2 litros, uma evolução do carro original, criando um novo bloco inferior para receber dois blocos e cabeçotes e acomodar os 16 cilindros de forma funcional. A admissão seria feita pelo centro do motor, com um ângulo de 25° entre os dois blocos, de forma forçada graças ao uso de dois compressores Roots, cada um acionado por um dos dois virabrequins. Isso mesmo, dois.
Cada bancada de oito cilindros tinha seu próprio virabrequim, que giravam em sentidos opostos. O movimento destes era então combinado para chegar a caixa de câmbio por engrenamento simples. Era como se um dos 8-cilindros estivesse montado invertido em relação ao outro, assim os cabeçotes também ficaram com a admissão no centro do motor e o escapamento nas laterais.
O resultado disto foi um V-16 de 4-litros e quase 300 cv de potência. Pensado em ser montado em um chassi de carro de Grand Prix, o novo modelo foi chamado de Tipo V4. O carro era muito forte, mas também ficou pesado, mais de uma tonelada, bem mais pesado que um Alfa P2. O mais sensato seria chamar este motor de U-16 devido aos dois virabrequins, mas para os italianos da época, como havia uma inclinação entre os blocos e parecia um V, ficou como V-16.
A primeira marca conquistada pelo V4 em 1929 foi o recorde de volta no circuito de Monza, com incríveis 199,8 km/h de média no circuito italiano, uma marca que só foi batida em 1954. Em setembro de 1929, outro recorde foi feito pelo V4, como o carro mais rápido do mundo na categoria C (carros com motores de 3 a 5 litros), pilotado por Mario Umberto Borzacchini no evento de recorde de velocidade em 10 km organizado em Cremona, na então rodovia 10 Padania Inferiore. Pelas regras, o valor de velocidade é a média de duas passagens, uma em cada sentido de rodagem da via. O resultado foi 246,069 km/h na média das passagens.
Na temporada de 1930 das corridas de Grand Prix, o V4 dos irmãos Maserati fez valer seu investimento, com vitória no Grand Prix de Tripoli, na Líbia. Mario “Baconin’ Borzacchini venceu a prova à frente do Maserati 26B de Luigi Arcangeli e do Talbot de Clemente Biondetti.
Borzacchini tentou sem sucesso disputar a 500 Milhas de Indianápolis de 1930 com o V4, mas foi mal no treino classificatório e abandonou a prova depois de apenas sete voltas com problemas na ignição. O carro teria tudo para andar bem, mas o regulamento da época das 500 Milhas não permitia o uso de supercarregamento, então o V-16 andou numa configuração com aspiração atmosférica, bem aquém de sua capacidade.
De volta à Europa, o V4 ainda poderia competir contra os rivais italianos em pistas que o favorecesse, com grandes retas para melhor aproveitar a potência do V-16. Em março de 1932, a Maserati perdeu Alfieri, por problemas renais decorrentes de um acidente que ele sofreu numa prova em Messina, onde perdeu um de seus rins, e o outro ao longo do tempo foi se deteriorando, até ele falecer durante uma cirurgia, aos 44 anos.

Alfieri não conseguiu ver um de seus dois bólidos V4 sendo convertido de um carro de Grand Prix para um carro de passeio. Dos dois chassis fabricados, um deles foi vendido no final de 1932 para Ludovico Tomeucci, um dos revendedores da Maserati na Itália, já com uma carroceria de dois lugares. Em 1933, ele repassou o V4 para doutor Riccardo Galeazzi-Lisi, que viria a ser o médico pessoal do Papa Pio XII poucos anos depois.
Depois de participar de algumas provas, tanto nas mãos de Galeazzi como de outros pilotos, o carro foi danificado num acidente na Coppa Acerbo. A carroceria foi refeita pela Zagato, aproveitando parte da sessão central, integrando elegantes para-lamas, portas com desenhos laterais e um fechamento traseiro para cobrir o estepe de forma bem harmoniosa com o restante do carro. Lembra alguns modelos da Alfa Romeo que também receberam carroceria da Zagato.

Este possivelmente era o carro de rua mais veloz de seu tempo, com tamanha potência em uma carroceria compacta, era certamente mais veloz que os Duesenbergs SSJ americanos, com seus 400 cv, mas ainda enormes se comparados com o Maserati, chegavam a 235 km/h.
Pelos registros históricos do carro, o doutor Lisi manteve o carro com pouco uso até os anos 40, quando o vendeu para o piloto holandês Erick Verkade, que teve o carro entregue a ele por ninguém menos que Tazio Nuvolari, a estrela italiana das pistas de corrida dos anos 1930.
Durante a Segunda Guerra Mnidal, os relatos contam que o V4 foi desmontado por Erick para evitar que fosse capturado pelos alemães, assim como fizeram com os Alfa Romeo de competição, espalhando partes do carro pela sua propriedade. Há quem diga que ele guardou o motor no seu próprio quarto, que era a obra-prima mais valiosa do Maserati.
O carro foi remontado depois do fim da Guerra, passando de mãos por algumas oportunidades ao longo dos anos, até ser restaurado no seu estado atual, recuperando a condição original da pintura feita na Zagato com dois tons de verde, escolhidos por Galeazzi.
Além do V4 Zagato, o segundo chassi fabricado pelos irmãos Maserati seguiu sua vida de carro de Grand Prix, inclusive sendo modificado para a versão V5, com a cilindrada aumentada para 5 litros, ou seja, dois motores de 2,5 litros cada.

Nesta configuração, a potência passou para quase 400 cv, tornando-se um verdadeiro monstro a ser domando. Um problema que já existia no V4, o grande desgaste de pneus traseiros devido ao alto torque, teria sido agravado no V5, porém com uma nova configuração de pneus mais largos e mais resistentes, foi possível sanar quase que totalmente o problema.
Ao longo do tempo, apenas o V4 Zagato sobreviveu e é o único exemplar no mundo. Uma recriação do modelo de Grand Prix foi feita, na cor vinho, com um motor V-16 recriado com base no bloco base dos virabrequins original do V5 que estava junto com o V4 Zagato durante sua restauração. O restante dos componentes vieram de outros motores do Tipo 26B, exatamente como os Maserati fizeram na época.
Definitivamente, o V4 Zagato, que foi uma evolução da visão dos irmãos Maserati ao criar um carro esporte de dois lugares com o enorme V-16 de 4 litros, foi um marco no rico passado da empresa e também no automobilismo italiano, como sendo um dos primeiros supercarros da história.
MB