Em 2023, a Ferrari retornou ao topo do endurance mundial vencendo a 24 Horas de Le Mans e repetiu o feito na temporada seguinte, gravando seu nome novamente na história da maior corrida de longa duração do mundo mais uma vez, após 50 anos distante de La Sarthe. O 499P, carro que deu à Ferrari essas duas vitórias, já é um dos carros mais marcantes da história do automobilismo e é o resultado de um trabalho profundo de engenharia, estratégia e inovação.
Embora não tenha sido tão dominante nas duas primeiras temporadas que competiu — exceto em Le Mans —, na abertura do Mundial de Endurance 2025, no Catar, a Ferrari deu uma amostra clara da solidez de seu projeto: conquistou um impressionante 1-2-3, colocando seus três carros nas três primeiras posições. O desempenho foi ainda mais relevante porque o traçado de Lusail, no Catar, exigia não apenas potência e eficiência aerodinâmica, mas também grande estabilidade em trechos técnicos de média velocidade — uma combinação que poucos concorrentes conseguiram entregar com tanta consistência.
Com a segunda etapa do WEC (World Endurance Championship, o Campeonato Mundial de Endurance da FIA) realizando-se neste final de semana em Ímola, a expectativa é de mais uma grande exibição dos três Ferrari entre os Hypercar que disputam a corrida de 6 horas. Vamos então conhecer algumas características e segredo de um dos protótipos mais importantes da atualidade.

Um projeto feito para durar
Desde o início, o 499P foi concebido para ser mais do que um carro rápido em uma volta lançada. A Ferrari sabia que, para vencer em provas de 6, 8, 10 ou 24 horas, precisaria de um protótipo resistente a variações de temperatura, pneus, regulagem de BoP (balanço de performance) e até estilos de pilotagem distintos. Por isso, sua engenharia apostou em construir um arcabouço com uma janela operacional estável. Mas com regulamentos restritivos como o da categoria Hypercar do WEC, é impossível fazer um carro que seja dominante em todos os tipos de pista e todas as condições encontradas durante um final de semana de corrida. Se isso já é difícil num regulamento do corridas curtas, que dirá em corridas de longa duração, com mudanças relevantes de temperatura ambiente e de pista, além da diversidade de circuitos — enfrentando desde as ondulações de Sebring, às grandes retas de Le Mans e Spa-Francorchamps.
O desenvolvimento do carro durou cerca de dois anos, desde a primeira concepção, simulações, testes privados e estreia na 1.000 km de Sebring, na Flórida, em 2023 — onde garantiu uma surpreendente pole position, à frente dos dominantes e favoritos Toyota GR010. Esse trabalho foi sustentado por uma impressionante biblioteca de dados: segundo o engenheiro de desempenho do carro nº 83 da AF Corse no Mundial de Endurance, o belga Jorge Segers, a Ferrari tem catalogados mais de 3.000 KPIs (indicadores-chave de performance) do protótipo nascido em Maranello — com esse número crescendo a cada etapa e sessão de testes. Cada teste de túnel de vento, cada simulação e cada quilômetro de pista contribuíram para afinar o comportamento do protótipo em diferentes cenários.
O resultado
Como eu disse, o 499P foi nascido para competir na categoria Hypercar, a mais rápida e importante dessa nova fase do WEC. Desde 2021, o FIA WEC adotou esse novo conjunto de regras para sua categoria principal, visando substituir os antigos protótipos LMP1. Apesar de construir lendas do esporte como os Audi R8, R10 e R18, Peugeot 908 HDi, Bentley Speed8 e tantos outros, a LMP1 tornou-se muito cara. A Hypercar veio para permitir a competição de carros que oferecessem visual mais próximo aos superesportivos de rua, custos controlados e, ao mesmo tempo, liberdade suficiente para inovações tecnológicas.
O controle de custos entra também na limitação de homologação de somente um projeto aerodinâmico em cinco anos, com poucas e limitadas evoluções de performance e correções permitidas — chamadas Evo, para mudanças de ciclo, e adendos, para mudanças mais urgentes, como o caso da Peugeot que falaremos mais adiante. Isso acrescenta ainda mais complexidade à concepção dos protótipos de corrida.
Existem duas rotas possíveis para construir um Hypercar: a LMH (Le Mans Hypercar), que permite desenvolvimento completo de chassi, aerodinâmica e sistema híbrido, com maior liberdade de concepção e seria a categoria nativa do WEC, ou LMDh (Le Mans Daytona hybrid), mais padronizado, com chassi fornecido por um dos quatro parceiros homologados (Multimatic, Dallara, Oreca ou Ligier) e sistema híbrido comum a todos. Em sua maioria, competem no campeonato organizado pela IMSA (International Motor Sports Association.
A Ferrari optou por seguir o caminho do LMH, desenvolvendo o 499P “em casa” — motor, câmbio, aerodinâmica e sistema híbrido —, além de uma parceria de fabricação com a Dallara para o chassis. Isso permite mais controle sobre o conjunto, aproveitando componentes já existentes com soluções sob medida.
O motor, por exemplo, é um V-6 biturbo de 3 litros, o mesmo utilizado na 296 GTB e na sua variante da categoria GT3. No desenvolvimento do 499P, a Ferrari chegou a considerar o uso da caixa de câmbio existente também na GT3, buscando confiabilidade e tempo de desenvolvimento mais curto. No entanto, essa ideia foi rapidamente abandonada, principalmente por conta do regulamento, que exige um peso mínimo de 75 kg para a transmissão, e para evitar limitações no projeto da suspensão traseira.

Segundo o engenheiro-chefe Ferdinando Cannizzo contou para o portal Racecar Engineering, o principal motivo para adotar um câmbio novo foi justamente poder otimizar os pontos de ancoragem da suspensão traseira, além de melhorar o empacotamento geral e garantir compatibilidade ideal com o motor V-6. O transeixo do 499P, então, foi desenvolvido em conjunto com a britânica Xtrac, que gerou um câmbio sequencial de 7 marchas, combinado a um MGU-H com diferencial montado na dianteira que atua como KERS — solução que equilibra robustez, precisão e integração com o sistema híbrido. Ele atua como parte estrutural do chassi, ajudando a reduzir peso e aumentar a rigidez torcional.
Acoplado ao V-6 está um sistema híbrido de tração dianteira, com motor elétrico de 272 cv , que entra em ação acima de 190 km/h. O sistema é alimentado por uma bateria de alta tensão desenvolvida em parceria com a Magneti Marelli, com recarga feita exclusivamente por recuperação de energia nas frenagens (ERS).

Na prática, o 499P tem tração integral temporária, funcionando com tração traseira na maior parte do tempo, e ativando a dianteira elétrica conforme as condições permitem. Isso melhora tração, aceleração em saída de curva e eficiência geral — um diferenciador importante em provas longas.
O regulamento estabelece que os Hypercars devem pesar no mínimo 1.030 kg, com potência máxima combinada de cerca de 680 cv. Esses valores podem variar prova a prova devido ao Balance of Performance, mecanismo usado para equilibrar o desempeno entre os diferentes carros inscritos. Falaremos mais do Balance of Performance adiante.
Mesmo com essas restrições, o 499P impressiona: acelera com brutalidade, tem equilíbrio refinado e entrega estabilidade notável mesmo em curvas de alta velocidade. Muito disso se deve ao acerto aerodinâmico minucioso e à integração perfeita entre as motorizações. Mas o foco da Ferrari para o 499P foi bem claro: eficiência aerodinâmica para brilhar em circuitos de média e alta velocidade.
A eficiência aerodinâmica como arma
Visualmente, o 499P carrega uma assinatura muito própria: além da tradicional shark fin (a barbatana dorsal que ajuda na estabilidade lateral), o carro exibe apêndices longitudinais extras que percorrem a dianteira e o teto. Eles atuam como extensões do fluxo aerodinâmico, ajudando a controlar vórtices de alta energia que, de outra forma, prejudicariam a eficiência em curvas de alta velocidade.
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Esses pequenos apêndices, instalados na linha do teto e nas extremidades da cobertura traseira, atuam como guias de fluxo e direcionam o ar em situações de guinada (quando o carro desliza lateralmente), reforçando a estabilidade sem recorrer a grandes superfícies móveis. O objetivo é garantir que, mesmo em curvas de altíssima velocidade — como a Indianápolis e a Porsche em Le Mans — o 499P se mantenha “pregado” ao asfalto.
É importante lembrar que, pelas regras da categoria Hypercar, as equipes podem utilizar apenas uma peça aerodinâmica móvel no carro. A Ferrari optou por concentrar essa liberdade na asa traseira principal — deixando as demais superfícies completamente passivas. Isso exigiu um projeto extremamente refinado, em que cada curva do carro, cada entrada de ar, cada defletor, precisava funcionar de maneira harmoniosa e eficiente. Mesmo o motor V-6, trouxe grandes vantagens aerodinâmicas, pelo seu ângulo de 120º entre as bancadas e com as turbinas ali posicionadas — o chamado ‘hot V’ —, que permite aproveitar mais a largura do carro e ter liberdade para explorar o assoalho como elemento aerodinâmico.
A Ferrari aplicou essa solução com maestria: não como tentativa desesperada de gerar downforce extra, mas como um refinamento de equilíbrio aerodinâmico. E a importância dessa escolha fica ainda mais evidente quando comparamos com a abordagem do Peugeot 9X8. A fabricante francesa, em sua primeira versão do carro, apostou fortemente no efeito solo, sem asa traseira tradicional, usando apenas apêndices e o assoalho para gerar sustentação negativa. No entanto, o conceito acabou se mostrando incapaz de gerar desempenho consistente, levando a Peugeot a reformular seu carro para uma solução mais convencional.
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O sucesso do 499P, portanto, não vem apenas de escolhas ousadas, mas da capacidade de integrá-las de forma coesa e eficaz. Isso fica claro pelos resultados no Catar, como citei no começo do texto, o bicampeonato de Le Mans, e o bom desempenho em Austin e Spa-Francorchamps. O compromisso apareceu com resultados mais tímidos em Interlagos, Bahrain e Fuji.
O peso do BoP: mais um desafio
Em meio ao sucesso do 499P, é importante lembrar que o Mundial de Endurance utiliza o Balance of Performance (BoP) para tentar equilibrar o desempenho entre os diferentes protótipos. O BoP trabalha em alguns pilares, como peso, potência do KERS antes e depois de 250 km/h, velocidade mínima de ativação do KERS, e um semelhante de capacidade de tanque, com a energia máxima por stint — algoritmo de cálculo de torque máximo despejado entre paradas no box para reabastecimento e pneus. Essa necessidade de se manter competitivo dentro de margens variáveis de desempenho reforça ainda mais o valor do trabalho técnico da Scuderia. Ao construir um protótipo com janela de operação estável — tanto mecânica quanto aerodinâmica —, a equipe conseguiu absorver as penalizações do BoP sem perder consistência de ritmo ao longo das corridas. Veja neste documento um exemplo mais recente de como os parâmetros são aplicados.
A capacidade de adaptação ao BoP, sem comprometer a eficiência do conjunto, é mais uma prova de que o sucesso do 499P não se baseia apenas em velocidade bruta, mas na qualidade de todo o projeto e no entendimento profundo dos seus limites.

A engenharia por trás dos resultados
O 499P é um exemplo claro de como soluções bem integradas podem gerar um carro competitivo em todos os aspectos: potência, eficiência aerodinâmica, tração e confiabilidade. Ao desenvolver seu próprio chassi, motor e sistema híbrido, a Ferrari teve liberdade para construir um protótipo equilibrado e adaptável — essencial para enfrentar os desafios variados do calendário do WEC.
Sem recorrer a excessos ou fórmulas milagrosas, o projeto foi moldado por escolhas técnicas sólidas, guiadas por dados e pela experiência acumulada em décadas de corridas de longa duração. O resultado é um carro que não impressiona apenas pelos resultados em Le Mans ou no Catar, mas pelo nível de refinamento em cada detalhe. Para quem gosta de engenharia aplicada ao limite, o 499P é, no mínimo, um estudo digno de atenção.
Além disso, ver grandes fabricantes de automóveis engajadas com a competição em Le Mans é algo que sempre divertirá os entusiastas e engrandecerá a indústria automobilística.
IG