Todas as grandes fábricas de carros se perdem em decisões errôneas de vez em quando, algumas delas se tornando famosas.
A Ford Europa teve no conceito Ghia Barchetta de 1983 uma oportunidade excelente, que foi desperdiçada.
Apenas depois de seis anos a Mazda lançaria o Miata, ainda hoje um exemplo de simplicidade e leveza, ainda que as normas de segurança o tenham mudado um pouco ao longo dos anos. O Barchetta era muito semelhante conceitualmente ao Miata, talvez por demais semelhante.
A Ford, dona da Carrozeria Ghia desde 1970 — porem existente desde 1916 quando foi fundada por Giacinto Ghia — concebeu o Barchetta (barquinho, apelido comum para pequenos carros sem teto na língua italiana) com a mecânica do Fiesta XR2, que mesmo com sua carroceria maior e mais pesada, sempre foi de dirigibilidade excelente.
Mais uma vez, como aconteceu com vários carros destinados ao entusiasta do dirigir sem frescuras, a ideia veio de Robert Anton Lutz, o quase lendário e ainda hoje semiativo executivo mais conhecido por Bob Lutz (com 93 anos) que estava na Ford desde 1974, depois de ter passado pela Opel, GM Europa e BMW.
Lutz nunca foi de ficar apenas aproveitando a parte boa e confortável de seus cargos de executivo do topo da pirâmide, e sempre instigou as equipes de estilo e de engenharia a criarem produtos novos ou pelo menos diferentes, e fez sua parte na aprovação de muitos deles.
Pouco antes ele havia supervisionado o desenvolvimento do Sierra, revolucionário em estilo, que mostraria que há uma parcela de consumidores que apreciam coisas fora do comum. O Sierra mudou a imagem da Ford na Europa, onde sempre teve estilos tradicionais, e passou a ser de vanguarda, caminho começado dois anos antes com o Escort Mk 3, o primeiro de tração dianteira e que foi primeiro a chegar ao mercado brasileiro.
Podemos dizer com certeza que essa parcela de gente que quer caminhar fora da manada diminui a cada dia, com mais e mais pessoas embarcando em carros-condução, aquelas coisas com quatro rodas com uma telona no painel, que causam depressão em nossos cérebros, alguns deles sendo best-sellers por anos a fio. Olhe ao seu redor e verá alguns deles.
Essas pessoas estão em todo e qualquer canto do planeta, e foram uma das principais causas do fim de alguns modelos como o Focus, por exemplo. A elas o meu mais profundo, honesto e sincero desprezo. Merecem andar de ônibus até o fim de seus dias.
Como não vou desentortar pensamentos automobilísticos deformados, volto ao assunto. O Sierra estava ainda a seis meses do início de produção quando o Barchetta surgiu como conceito no Salão de Frankfurt de 1983, mas a ideia nasceu cerca de 16 meses antes, em março de 1982, quando Lutz e Karl Ludvigsen andavam pelo Salão de Genebra, e notaram que não havia nenhum carro pequeno, com dois lugares, de baixo preço e tendência esportiva. Ludvigsen, engenheiro e desenhista industrial, estava na Ford há dois anos, responsável por relações governamentais e também pela área de competições, e disse a Lutz que um Fiesta XR2 seria a base ideal para um carro desse tipo, e tomou as rédeas da construção de um carro-conceito.
Pequeno parêntese sobre Karl Ludvigsen. Trata-se de uma das grandes fontes da história do automóvel, tendo publicado vários livros sobre marcas e pilotos. Tem hoje 91 anos, completados há cinco dias.
Lutz, com sua visão global sabia que dois carros pequenos esportivos muito queridos e cujas vendas foram relativamente altas haviam sido descontinuados há pouco tempo, o MGB e o Triumph Spitfire. Ambos venderam muito também nos EUA, tanto pelo apelo jovem e simples quanto pelos preços baixos. Sobrava praticamente apenas o Fiat X1/9, mas esse era por demais complicado em manutenção com seu motor central-traseiro transversal.
A receita de Lutz e Ludvigsen para a Ghia foi simples: Façam um carro de dois lugares, pequeno, leve, conversível, com o maior número possível de componentes existentes nas prateleiras da Ford. Usem esse assoalho/suspensões/freios/direção (o que se pode chamar de “plataforma” ou arquitetura mecânica), do Fiesta XR2. O nome Barchetta foi ideia de Bob Lutz.
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O Barchetta tem exatamente a mesma distância entre-eixos do Fiesta, obviamente. O carro era atraente ainda que bastante limpo em estilo, com uma dianteira curta e curvada, para-choques cinza de plástico com formas envolventes, saídas de ar quente do cofre do motor nos para-lamas dianteiros, rodas de 13 polegadas de diâmetro do Fiesta XR2 (depois adotadas em forma de calotas com o mesmo desenho do Escort XR3 na versão Laser no Brasil), e com todos os atributos de baixo custo e preço do Fiesta. Usava o mesmo motor quatro-cilindros de 1,6 litro e duas válvulas por cilindro desenvolvendo 82 bhp (ou 83 cv) e o mesmo câmbio.

Depois de muitos anos Lutz disse em uma entrevista que havia estimado que se podia vender 8 ou 9 mil por ano na Europa, e que limitou ao máximo as mudanças em relação ao Fiesta, para fazer o custo de desenvolvimento o menor possível e obter aprovação da mesa diretora.
Tristemente, o diretor de design Donald Kopka declarou que era apenas uma ideia destinada a mostrar que um carro pequeno esportivo de baixo preço pode ser feito. Mesmo assim, Lutz fez valer sua autoridade e ordenou a exibição pública do Barchetta, mesmo com outros diretores da Ford sendo contrários, e a recepção foi excelente.
Apenas para exemplificar, os alemães, como sempre famintos por dirigir carros empolgantes, formaram o “Barchetta Club”, que rapidamente chegou aos 10 mil associados.
O carro foi sendo exibido em diversas mostras na Europa em 1983, e claro que se estimou que poderia ser fabricado visando aprovação pelas normas dos EUA, onde deveria custar pouco acima de 8 mil dólares, quando um Mustang quatro-cilindros conversível podia ser comprado por 7.600 dólares.
Nos Estados Unidos, a revista Car and Driver escreveu: “O Barchetta é, potencialmente, a melhor combinação de carro esportivo e carro econômico desde a criação do MG TC”. O carro foi capa da edição de dezembro de 1984, numa foto que deixa evidente o tamanho contido.

Entra então a Ford Ásia-Pacífico para a história. O chefe da região, Alexander Trotman (1933-2005) colocou a ideia de fazer o carro na Austrália, sob a marca Mazda (da qual a Ford tinha participação), mas por ser um tração dianteira, a marca japonesa não se interessou, além do que já estava trabalhando no projeto do que seria o MX-5 Miata.
Ao mesmo tempo, a Ghia não conseguiu provar que poderia ir além no projeto do conceito, e a Ford consultou a Italdesign de Giugiaro, para fazer o trabalho até o final, mas os custos de cerca de 40% acima do esperado colocaram fim a essa possibilidade. Definir como será materializado um carro conceito tem muitas diferenças em planejar todos os detalhes para que esse conceito evolua a ponto de poder ser fabricado em série, com todos os requisitos que as fábricas exigem, para evitar operações e manuseios de peças e sistemas complicados. Esta parte da história está no livro “Secret Fords”, em dois volumes, do autor Steve Saxty, livro que tem muitos comentários positivos, e que um dia terei.
Ao final, a precaução corporativa venceu. O tamanho por demais diminuto e ausência de banco traseiro da ideia original levou o carro a adotar muito do Mazda 323, e seria fabricado na Austrália devido ao baixo volume, exportado para os EUA, mas não mais para a Europa. Era um pouco maior e bem mais pesado, tinha tração dianteira e se chamava Ford Capri na Austrália, e Mercury Capri para os EUA. Nome antigo para carro totalmente diferente, como fez há poucos anos com a picape Maverick, nome usado pela terceira vez. Ficou no mercado da Austrália e região de 1989 a 94 e de 91 a 94 no mercado americano..

Ironicamente, uma das versões do carro australiano se chamava Capri Barchetta. As coisas que acontecem nesse mundo corporativo podem ser inacreditáveis.
Obviamente a Mazda provou que o conceito inicial funcionaria mercadologicamente, com o Miata sendo sucesso do dia que nasceu ate hoje, passados 36 anos.
JJ