Eu peço licença a vocês, leitores, ao Bob e aos outros editores do AUTOentusiastas, para sair um pouco do universo dos automóveis. A matéria que publiquei recentemente sobre a nova fase da Jaguar causou bastante reação — o que, para mim, confirma que o tema central do texto precisa ser retomado: ele nunca foi, de fato, sobre a Jaguar. E talvez eu não tenha conseguido me expressar como eu gostaria. O que me motivou foi outro incômodo. A forma como nós, como sociedade conectada, muitas vezes nos deixamos levar por narrativas virais que nos dizem exatamente aquilo que queremos ouvir, mesmo que essas narrativas estejam completamente descoladas dos fatos.
Vivemos tempos em que a maioria das manchetes servem mais para confirmar vieses do que para informar. E, nesse contexto, o caso da Jaguar serviu como um bom exemplo. Fui provocado por uma avalanche de links, prints e comentários replicando a notícia de que a marca teria demitido sua agência de publicidade por causa do “fracasso da campanha”. O conteúdo original do Financial Times foi distorcido, simplificado, reempacotado e transformado em carnê de polêmica. E, como era de se esperar, os “especialistas genéricos digitais” entraram em cena, dando vereditos implacáveis sobre branding, estratégia e posicionamento com a segurança de quem nunca sequer participou de um planejamento de marca. Essa avalanche de especialistas em busca de “15 minutos de fama” foi o que mais me incomodou. Caso similar aconteceu há algumas semanas com o vídeo do chinês sobre o custo das bolsas que ele dizia produzir para marcas de luxo. Na verdade ele é um falsificador. Impressionante a quantidade de aulas que recebi sobre marcas de luxo.
Impressiona-me a velocidade com que se constrói consenso em torno de manchetes ruidosas. E mais ainda: a facilidade com que as pessoas aceitam essas versões como verdades absolutas, sem qualquer reflexão. Claro que isso também se aplica a mim. Eu mesmo, como todos, tenho meus vieses. Mas é justamente por me reconhecer humano e falível que tento exercitar esse freio interno. Tento sempre perguntar: “Será que estou enxergando todos os lados da história?” “Será que esse link não foi feito só para gerar clique?” “Será que essa polêmica não está nos manipulando?”
Muitos dos comentários à minha matéria trazem críticas que, apesar do tom às vezes ácido, são válidas. Outras deixam clara uma resistência quase emocional à ideia de que marcas, até mesmo as mais tradicionais, podem e devem se reinventar. E há também os que interpretaram meu texto como uma defesa da Jaguar. Não foi. Repito: a Jaguar é quase irrelevante na minha vida. Não vendo Jaguar, não tenho contrato com a Jaguar, e muito provavelmente nunca terei um modelo da marca na garagem, considerando os valores de entrada estimados em 100 mil libras. O que me interessa aqui é o fenômeno que se revelou ao redor dela.
A “papagaiada digital”, como chamei, tem pouco a ver com automóveis e muito a ver com comportamento coletivo. Quando muitos papagaios partem em revoada na mesma direção, é prudente desconfiar. Será que estão mesmo indo para um lugar melhor? Ou será que só estão fazendo barulho?
Li todos os comentários. E agradeço a cada um que dedicou tempo para escrever. Aqui no AE temos uma comunidade com um nível de comentários acima da média.
Em grande parte graças ao trabalho constante e cuidadoso do Bob, que filtra, orienta e corrige sem condescendência, mas com respeito. Isso elevou o nível do debate. E aqui acabou sendo um lugar onde se preza qualidade a quantidade.
Alguns leitores, como Fred Barros, tocaram num ponto relevante: o branding precisa dar resultado. Concordo. O branding é um meio, não um fim. Se não se traduzir em valor percebido, em diferenciação concreta, em desejo de compra, e, sim, em vendas, então ele fracassou. Mas o que tentei demonstrar é que nem sempre os resultados são imediatos. Reposicionar uma marca como a Jaguar envolve muito mais do que lançar um carro ou uma campanha. É sobre criar uma nova visão de futuro, abrir espaço para novos públicos e se distanciar de um passado que, apesar de glorioso, não sustentava mais o negócio.
Outros leitores acusaram a campanha de ser “woke”, de rejeitar os clientes tradicionais, de abandonar o legado. É uma crítica legítima, mas talvez simplificada. A Jaguar vinha perdendo relevância e mercado há anos. Sua linha de produtos estava envelhecida e repetitiva. Por décadas tentou evoluir a partir do tiozão de boina em seu carro British Racing Green com interior caramelo. O reposicionamento ousado é, na verdade, uma tentativa (na verdade uma necessidade) de sobrevivência, de reinvenção. E é exatamente o contrário de jogar seguro. O estereótipo anterior da Jaguar já não estava funcionando há muito tempo.
Veja o comentário do usuário O Seu Amiguinho, que lembrou das inovações técnicas e estilísticas da Jaguar ao longo da história — e como a marca perdeu esse espírito nos últimos tempos. O Type-00 e a nova fase tentam recuperar justamente isso: o direito de experimentar, de chocar, de criar algo inesperado. Sim, a campanha pode ser interpretada como uma ruptura. Mas nem toda ruptura é negativa. E, no caso da Jaguar, era necessária, como já disse.


Também houve comentários muito críticos ao design do Type-00. Alguns o acharam pobre, sem exuberância, vazio de significado. Respeito essa leitura. Gosto é subjetivo. Mas talvez esse estranhamento faça parte da estratégia. A nova Jaguar não quer ser óbvia. Como disse Gerry McGovern: “A Jaguar não tem desejo de ser amada por todos.” Isso não é arrogância. É clareza de posicionamento. Marcas fortes fazem escolhas. As fracas querem agradar a todos, e muitas vezes são criticadas justamente pela mesmice.
Entendo que essa frase tenha incomodado. Alguns leitores viram nela uma provocação desnecessária, ou mesmo um deboche. Mas ela reflete um movimento que vai além da Jaguar. Reflete um novo tipo de luxo (para onde a Jaguar quer ir), mais seletivo, mais expressivo, menos padronizado. E isso assusta. Porque rompe com a lógica de que luxo precisa sempre ser consensual, refinado, inquestionável. E essa nova ideia incomoda muita gente.
A crítica mais recorrente, no entanto, foi a de que, se uma campanha precisa de explicação, então ela falhou. Essa ideia me preocupa. Vivemos um tempo em que tudo precisa ser mastigado, óbvio, imediato. Mas será mesmo que toda boa campanha precisa ser compreendida por todos? Será que uma provocação estética não pode — ou não deve — gerar estranhamento inicial? Ou ser compreendida apenas pelas pessoas para as quais foi direcionada?
É claro que existe um risco. A Jaguar pode errar. Pode, sim, acabar falando sozinha. Mas prefiro uma marca que tenta algo novo, que assume riscos, do que aquelas que vivem presas a fórmulas repetidas e seguras. E, de novo, não é sobre a Jaguar.
É sobre como lidamos com a mudança, com a diferença, com a provocação. É sobre como nos posicionamos diante da avalanche de conteúdos que recebemos todos os dias.
Termino esse texto como comecei: com um convite à reflexão. Não é para concordarem comigo. É só para pensarem um pouco mais. Antes de clicar, antes de comentar, antes de compartilhar. Desconfie das verdades prontas. Questione as narrativas fáceis. E, sobretudo, cuide do que você consome e do que você propaga. A sua atenção é um ativo precioso. Não entregue de bandeja.
Mas… no dia a dia precisamos de apenas uma conversinha de bar, para nos divertirmos e debatermos. Não faz mal. Nem tudo precisa ser levado a sério.
PM
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