Um de meus sites trata de veículos Gurgel*, com ênfase para aqueles com mecânica Volkswagen, e em maio de 2001, por ocasião do leilão da massa falida da Gurgel, especificamente do que tinha restado da fábrica, o amigo e profundo conhecedor dos veículos Gurgel, Paulo Sérgio Malaman, decidiu ir a Rio Claro ver o que ia acontecer. Ao voltar ele me enviou uma mensagem que eu acabei colocando no site. Agora apresento esta mensagem, aqui na coluna “Falando de Fusca & Afins” do AE, e as fotos, encerrando com o relato do que aconteceu, na época, como consequência desta publicação.
Triste visita ao ocaso da Fábrica Gurgel em 2001
Por Paulo Sérgio Malaman
Cheguei a Rio Claro por volta das 13 horas e, pedindo informações, cheguei ao enorme prédio do Fórum. Estacionei o Fusca estrategicamente de modo que pudesse vê-lo do saguão e comprei um cartão de Zona Azul, que por sinal também é bem grande.
Fui muito bem atendido pelos funcionários do Fórum. Muito prestativos, me indicaram a lista do que seria leiloado, afixada a um mural. O leilão visava vender o prédio da Gurgel com a “porteira fechada”, ou seja, com tudo o que estivesse lá dentro exceto os carros, discriminados no fim da lista e que seriam vendidos um a um.
Fiquei ansioso ao ver que dentre os carros havia dois Xefs, vários G-800, um Itaipu (elétrico) e mais alguns protótipos. Mais uma vez o funcionário do Fórum, que pareceu ter simpatizado comigo, entrou em cena indicando um senhor de terno como sendo o síndico do prédio da fábrica. Apresentei-me e lhe disse que estava interessado em ver os carros que estavam trancados na linha de montagem.
Sem pestanejar, ele pediu um pedaço de papel a alguém do balcão onde se encontrava e anotou o telefone do advogado responsável pela massa falida e me deu. Liguei para ele de meu celular e consegui autorização para entrar na fábrica.
Ao chegar lá, um misto de emoção e tristeza me invadiu. Emoção por estar entrando num lugar em que sempre quis estar e tristeza devido ao estado de abandono da antiga “fábrica de sonhos” do Sr. João Augusto Conrado do Amaral Gurgel.
Andando entre prédios e galpões pude ver o que sobrou de uma propaganda do Supermíni que mostrava um monte de ovelhas sobre a frase “Fuja do rebanho”.
Pelas janelas do prédio da Administração vi pilhas de mesas, cadeiras, estantes e velhos computadores. Num galpão menor, os moldes das carrocerias de compósito de fibra de vidro permaneciam no mesmo lugar em que estavam seis anos antes.
Logo depois do “eletroposto” estava a entrada para a linha de montagem. Um enorme prédio parecia congelado no tempo. Mesmo após alguns saques, se não fosse a grossa camada de poeira em tudo, parecia que a linha parara após o expediente para retomar as atividades pela manhã.
Em meio a diversas versões do Supermíni e carrocerias ainda sem pintura, encontrei vários G-800 em versões furgão, picape de cabine simples e dupla e um Itaipu, movido por tração elétrica. Vários Carajás com duas e quatro portas também jaziam no escuro e empoeirado galpão.
Mas o que mais me chamou a atenção foram os dois Xefs. Um 1984 vermelho e um protótipo feito em 1985 com teto Targa, ambos em bom estado.
Foi uma visão dura para quem está envolvido com a história da marca e com os sonhos do João Gurgel, ainda mais sabendo de seu delicado estado de saúde.
Fiz algumas fotos e saí me sentindo meio “voando” de volta ao Fórum. O leilão já havia começado e iria demorar muito, talvez entrasse pela noite.
Em meio ao barulho do carro de som do sindicato dos metalúrgicos local e dos quase 700 funcionários esperançosos por receber dívidas trabalhistas que somadas chegam a R$ 14 milhões de reais, peguei o Fusca e voltei para São Paulo.
Soube no dia seguinte que a Gurgel não havia sido vendida. Um novo leilão deverá ocorrer em junho de 2001.
Um grande abraço e desculpe-me pela emoção. Isso realmente mexeu comigo.
Paulo Malaman
As fotos que ele enviou, apresentadas na sequência, são um registro do que pôde ser visto naquela visita. Na foto de abertura desta matéria (1) o totem da fábrica visto da pista sentido interior da rodovia Washington Luís SP-310. O João Gurgel escolheu esse terreno acreditando que economizaria em marketing tendo a fábrica à vista de quem passasse pela estrada. Detalhe para o totem com o logotipo Gurgel antigo, pois já havia um logotipo novo. Em primeiro plano o Fusca do Paulo. Estes dois logotipos podem ser vistos abaixo:
Para se ter uma compreensão da posição de onde a foto de abertura foi tirada, reproduzo abaixo três fotogramas de um vídeo institucional da Gurgel de 1987 (3) nos quais se pode ver a posição do totem Gurgel em relação à fachada da fábrica e a posição da fábrica em relação à rodovia, de onde a foto de entrada foi tirada:
Mais fotos:
A foto seguinte mostra um protótipo de Gurgel Xef com a vigia traseira menor e mais proporcional ao desenho do carro; além do teto em outro tom. Os carros que foram comercializados usavam o para-brisa do Brasília como para-brisa propriamente dito e como vigia traseiro. Uma inteligente solução similar à do Škoda Octavia de 1959.
Na foto abaixo, tirada na área de Protótipos, estava estacionado este veículo utilitário G-15 que era um dos veículos de serviço da fábrica:
O Xef certamente era um dos carros de que o João Gurgel mais gostava, a julgar pela quantidade de modelos que estavam em estudo, como este com um teto tipo Targa, nas duas fotos abaixo.
O João Gurgel estava à frente do seu tempo e partiu para veículos elétricos que foram usados até por concessionárias de serviços como a Companhia Paranaense de Energia (Copel). Um exemplo estava lá, um protótipo elétrico na base do G-800, ainda com o motor fornecido pela Villares e as correspondentes baterias devidamente instaladas:
O painel deste veículo era bem completo e tinha todos os instrumentos analógicos para ir acompanhando todos seus componentes:
Seguem dois protótipos com base no G-800; este modelo teve várias configurações:
Abaixo um protótipo baseado no Motomachine com as portas em placa de compósito de fibra de vidro. Os que foram comercializados tinham a maior parte da superfície das portas em vidro. Detalhe: as rodas traseiras de Chevette, veículo que emprestava para este modelo também o câmbio e o eixo traseiro motriz:
Encerrando a galeria de fotos, dois veículos Citroën, em primeiro plano um 2CV versão Charleston, ano 1990, fabricado em Portugal, e à esquerda, ao fundo, um Dyane. Testemunhas dos planos de utilizar maquinário de uma fábrica Citroën desativada no então futuro projeto Delta, a ser fabricado no Ceará, o que não chegou a se concretizar.
Um inesperado “Obrigado!” que valeu muito, mas muito mesmo…
Por Alexander Gromow
Algum tempo depois da publicação da matéria da visita do Paulo Malaman a Rio Claro, já no segundo semestre de 2001, recebi um e-mail da sra. Carolina Amaral Gurgel, esposa do João Gurgel, que se disse muito sensibilizada pela publicação.
Ela disse que tinha algumas lembranças da Gurgel que gostaria de passar para mim e sugeriu que falássemos pelo telefone. Liguei imediatamente para ela.
A empatia com ela foi imediata e ela repetiu a emoção ao ver o que tinha sobrado da fábrica que conhecia tão bem…
Ela repetiu o oferecimento de algumas coisas ligadas à Gurgel que ainda tinha. Eu lhe disse que se houvesse alguém que ela considerasse mais importante, que podia dar estas coisas para esta pessoa. Ao que ela respondeu: “No meu tempo em Rio Claro eu conheci muitas pessoas, e aprendi a diferenciar os interesseiros dos interessados.” Adiante ela disse: “Se você não quiser ver meu marido no estado em que ele está em decorrência de sua doença (Mal de Alzheimer), eu posso enviar as coisas pelo correio”.
Mas é óbvio que numa situação destas e com uma pessoa deste nível não se poderia recusar o convite de maneira alguma, e marcamos um fim de semana próximo. E lá fomos nós à casa dele, no Jardim Europa, eu e minha esposa.
Chegando lá fomos recebidos pela Carolina e o primeiro choque foi ver o João Gurgel, que já não se comunicava há uns quatro meses, mas que estava fisicamente bem. Vestia um training azul. Somente os olhos denunciavam o seu mal.
Entramos na sala que estava bem pouco iluminada, pois estávamos em pleno apagão com seu pesado racionamento de energia. Fomos convidados a sentar. Havia um sofá encostado numa das paredes e, a noventa graus, duas poltronas; no vértice do ângulo entre o sofá e as poltronas havia uma mesa de canto com um abajur com uma lâmpada fraca, para não gastar muita energia.
O João Gurgel sentou-se no sofá, próximo à mesa de canto, eu sentei na poltrona ao lado desta mesa, portanto estávamos próximos. Ele tentava comer uma bala sem a desembrulhar e Carolina comentou que tinha retirado todas as flores de vasos, pois ele seria capaz de comer alguma… A tristeza se abateu sobre mim. Ele olhava para as pessoas, mas nada dizia, permanecia em silêncio.
A uma certa altura Carolina foi até à cozinha para preparar um cafezinho. Num dado momento o João Gurgel olhou para mim e eu senti um forte impulso de dizer algumas palavras para ele, mesmo sabendo que ele não tinha mais como reagir ao que eu dissesse.
Eu então disse a ele que o admirava muito, que o Brasil o admirava, que tinha sido uma grande injustiça o que tinha sido feito com ele, e que ele era um exemplo para muitos brasileiros… Durante todo o tempo em que eu falava ele estava olhando nos meus olhos e, depois de quatro meses de ter parado de se comunicar, ele disse, em voz alta: “Obrigado!”
Carolina, que estava voltando da cozinha. presenciou a cena e quase deixou a bandeja com as xícaras de café cair; em prantos ela voltou para a cozinha. Aí o João Gurgel bateu com a mão direita sobre a almofada a seu lado indicando que queria que eu me sentasse a seu lado, o que fiz. Carolina já tinha se recomposto e serviu o café.
Eu não sei o que ocorreu naquele momento, mas algo em minhas palavras, talvez na intenção com a qual eu as disse, conseguiu transmitir o que eu disse a ele e isto abriu um lapso em seu mutismo, permitindo que ele agradecesse. Foi uma grande emoção para mim. Depois disto ele voltou para a seu mutismo.
Ficamos mais um tempo e depois nos despedimos. Jamais esquecerei a imagem do casal na soleira da porta de sua casa. Ele parecia externamente estar normal, mas talvez já estivesse se preparando para desligar definitivamente.
Mas não seria para logo: João Gurgel morreu no dia 30 de janeiro de 2009.
Quem é Paulo Sérgio Malaman
O Paulo é um apaixonado por carros antigos nacionais, fez carreira como gestor de pós-venda em concessionárias de veículos. Foi proprietário de um Tocantins 1990 e é fascinado pela história da Gurgel. Foi um dos primeiros a entrar na fábrica quando a massa falida estava prestes a ir a leilão em 2001. Esteve novamente na fábrica em 2004, quando pôde visitar mais alguns galpões ao participar do documentário “Sonhos Enferrujam” do então estudante de jornalismo Caio Cavechini.
Abaixo um vídeo com uma seleção de imagens decupadas do documentário “Sonhos Enferrujam” que em sua versão integral tem uma hora de duração; já o vídeo abaixo tem sete minutos e se concentra na visita ao que sobrou da Fábrica da Gurgel três anos depois da primeira visita do Paulo:
AG
Créditos e Notas
Créditos das fotos:
(1) – Fotos recebidas do Paulo Sérgio Malaman, que também enviou, recentemente, informações para as respectivas legendas.
(2) – Fotogramas que eu decupei do documentário “Sonhos Enferrujam”.
(3) – Fotogramas que eu decupei de um vídeo institucional da Gurgel de 1987
Nota 1:
Antes de publicar a descrição sobre a minha visita à casa da família Gurgel eu entrei em contato com a sra. Carolina Amaral Gurgel, esposa do João Gurgel, que liberou a sua publicação através da frase: “Acho que a história é sua e você tem todo o direito de contá-la”.
O Paulo Sérgio Malaman colaborou comigo quando eu estava colocando material no meu site sobre os veículos Gurgel com mecânica Volkswagen, no início de 2001. É um bom amigo que tem um grande conhecimento sobre veículos Gurgel e veículos nacionais de outras marcas. Agradeço novamente a ele pela participação também nesta matéria, agora publicada no AUTOentusiastas.
(*) O meu site “GURGEL – Vamos manter este sonho vivo“, colocado na rede em julho de 2001, iniciou uma pesquisa sobre veículos fabricados com componentes e motor arrefecido a ar da Volkswagen, pesquisa esta que iniciou com os veículos Gurgel. Este trabalho está aberto para receber contribuições de conteúdo.
NOTA 2: Nossos leitores são convidados a dar o seu parecer, fazer suas perguntas, sugerir material e, eventualmente, correções, etc. que poderão ser incluídos em eventual revisão deste trabalho.
Em alguns casos material pesquisado na internet, portanto em regra de domínio público, é utilizado neste trabalho com fins históricos/didáticos em conformidade com o espírito de preservação histórica que norteia este trabalho. No entanto, caso alguém se apresente como proprietário do material, independentemente de ter sido citado nos créditos ou não, e, mesmo tendo colocado à disposição num meio público, queira que créditos específicos sejam dados ou até mesmo que tal material seja retirado, solicitamos entrar em contato pelo e-mail alexander.gromow@autoentusiastas.com.br para que sejam tomadas as providências cabíveis. Não há nenhum intuito de infringir direitos ou auferir quaisquer lucros com este trabalho que não seja a função de registro histórico e sua divulgação aos interessados.
A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.