Terminada a Segunda Guerra Mundial, a ordem era reparar tudo que tinha sobrado, pois a produção de veículos novos, necessários para os esforços de reconstrução, estava sendo retomada muito lentamente.
Disto surgiu a grande motivação para o aparecimento de “carros híbridos”, que partiam de carros existentes com a adaptação de componentes de veículos militares Volkswagen.
Os veículos militares da Volkswagen da Segunda Guerra Mundial logo foram reconhecidos por sua qualidade e pela confiabilidade de seu powertrain e, em especial o Kübelwagen que, produzido em maior quantidade, passou a ser canibalizado por mecânicos particulares e por empresas — via de regra era reaproveitado o chassi completo. Eles passaram a ser adaptados em veículos existentes, que tinham sido abandonados por problemas mecânicos, mas que ainda tinham estruturas sólidas e aproveitáveis.
Na verdade, os Kübelwagens sobreviventes poderiam passar a ser usados depois de uma reforma rápida, mas o pessoal preferiu partir para as adaptações para evitar ter que usar um espartano veículo militar no seu dia a dia.
Na foto de abertura temos dois exemplos marcantes então pertencentes à coleção do pesquisador e exímio restaurador inglês Bob Shail, especialista em carros deste estilo com componentes Volkswagen e coachbuilts Volkswagen, ou seja, carros feitos por empresas que desenvolviam veículos com base na mecânica Volkswagen — como um raro Stoll 52 cupê — que ele restaurou à perfeição e que hoje faz parte do acervo do AutoMuseum Volkswagen de Wolfsburg:
O trabalho do Bob Shail é reconhecido internacionalmente, ele fez resgates incríveis. Abaixo a foto do resgate de um Hebmüller abandonado:
Voltando à foto de abertura da matéria: o carro da esquerda é um derivado, bastante modificado — como veremos adiante — do carro austríaco Steyr 50, e o da direita é uma adaptação de um Hanomag alemão; ambos tiveram componentes Volkswagen enxertados em carrocerias preexistentes.
Steyr 50
Apresento o simpático Steyr 50 original do qual derivaram vários exemplares com motorização Volkswagen:
Este carro, apelidado de Steyr Baby, surgiu em meados da década de 30 na Áustria, um difícil tempo de recessão; um projeto totalmente “nacional”, da carroceria ao motor. O construtor-chefe foi Karl Jenschke e, ao contrário do que muitos dizem, não teve uma influência direta de Ferdinand Porsche; se bem que Jenschke tinha sido funcionário de Porsche na passagem deste pela Steyr.
O projeto de Jenschke considerou uma carroceria monobloco, o que, na época, não era uma unanimidade. Para a motorização do modelo Steyr 50 foi escolhido um motor boxer de quatro cilindros, arrefecido a água (pelo princípio do termossifão — sem bomba d’água, como conhecemos no DKW-Vemag aqui no Brasil), com 22 cv, que foi aumentado para 25,5 cv no modelo sucessor, o Steyr 55.
O gerador do carro também funcionava como motor de partida, e tinha encaixe para manivela; do outro lado o eixo do gerador acionava a hélice do radiador. A solução combinada era uma das medidas de economia de custo e de espaço deste carro; o agregado motor era instalado bem avançado e, com isto, permitia um bom espaço interno para os passageiros. A tração era traseira. com cardã. Os freios eram acionados por cabos, o que era suficiente para a segunda metade dos anos 30.
Nas fotos abaixo vamos ver alguns dos detalhes do Steyr Baby.
Naquela época, os instrumentos ainda eram bastante espartanos — tanto assim que é notável que no conjunto do lado direito, abaixo do indicador de combustível e do indicador de temperatura, já existia um relógio!
É um exemplo de simplicidade do layout feito com carinho. O volante tem uma empunhadura agradável, a alavanca de câmbio aparece tímida abaixo do painel, a posição baixa do espelho retrovisor se deve à pequena janela traseira.
Naquele tempo, em muitos carros maiores a acomodação traseira era mais apertada do que no Steyr Baby.
Na ilustração de catálogo reproduzida abaixo se pode ver a posição dos ocupantes do carro, bem como o porta-malas que ficava atrás do banco traseiro, cujo encosto basculava para dar acesso para a bagagem. Pequenos detalhes mostram o cuidado no projeto, como o descanso inclinado para os pés dos passageiros de trás.
O teto solar já era um extra naquele tempo — e funciona tão bem até hoje que pode ser aberto com uma só mão.
A foto abaixo, do Steyr Baby visto de trás, explica o percurso do teto solar de aço através de seus trilhos e mostra a razão do pequeno vidro traseiro.
Talvez a tampa de bordas arredondadas abaixo da placa tenha chamado a sua atenção e a foto abaixo mostra que é a tampa do compartimento do estepe.
Olhando o Steyr Baby de frente se observam as grandes portas tipo suicida abertas. Aliás, estas portas eram tão grandes que em muitos casos o passageiro de trás conseguia entrar com o passageiro da frente sentado em seu lugar. A grade do radiador tinha uma dimensão proporcionalmente exagerada.
O motor boxer de quatro cilindros, opostos dois a dois, arrefecido a água, onde temos: 1) gerador/motor de arranque combinados; 2) radiador que opera pelo princípio do termossifão; 3) à esquerda o encaixe da manivela de partida manual (padrão nos carros daquele tempo) — e ao fundo a capa da correia de acionamento do gerador/motor de arranque (na função motor de arranque o motor era acionado por esta correia); 4) polia do motor e à direita a vareta de controle do nível do óleo; 5) um dos cabeçotes com as duas velas (como o arrefecimento não é a ar estes cabeçotes não são aletados); 6) tanque de combustível.
Em 1940, uma dura realidade tirou o Steyr Baby de sua rota de sucesso: a produção teve que ser interrompida em favor da produção de material de guerra. No total foram produzidos 15.000 exemplares, curiosamente em números exatos. No fim da II Guerra Mundial muitos já tinham sido abandonados por problemas mecânicos e dificuldade de manutenção durante os conflitos.
Kohlruss VW
A Kohlruss era uma empresa austríaca de construção de carrocerias (coachbuilder), que ainda ficou ativa após o desastre da Guerra. Como grande parte do antigo Reich, depois da guerra a Áustria foi massacrada, quebrada e ficou falida. Ninguém estava construindo carros novos, mas ainda havia uma demanda reprimida por carros, que ficou mais aguda quando as pessoas começaram a reconstruir suas vidas.
Os carros mais abundantes eram, de longe, os Kübelwagens — o veículo do tipo jipe 4×2 de uso militar da VW. Esses Kübelwagens eram conhecidos por terem motores, transmissões e suspensões bons e robustos. Eram bons carros de uso geral; mas ninguém realmente queria uma carroceria tão espartana e militar em seu dia a dia.
No fim da Segunda Guerra Mundial havia carros com carrocerias do estilo do Fusca, mas que foram produzidos em uma quantidade bem menor do que a quantidade de Kübelwagens. Assim, Kohlruss teve a grande ideia de começar um negócio convertendo carrocerias de Steyr 50 e 55 para que pudessem ser adaptadas ao chassi de Kübelwagen ou de KdF. Aqueles “Baby ” Steyrs, que descrevemos acima, eram carros razoavelmente populares em seu tempo, e eram uma espécie de “Volkswagen” austríaco.
De qualquer forma, o Steyr tinha um motor boxer dianteiro, arrefecido a água, que não parecia aguentar muito bem, então havia um bom número de Steyrs por lá que não estavam em ordem de marcha, com os conjuntos motores ruins, mas com carrocerias aproveitáveis. A Kohlruss somou estes fatores e acabou por montar um pequeno carro para o povo revitalizado.
As fotos abaixo mostram um Kohlruss VW sobrevivente em processo de restauração; estas fotos permitem avaliar as modificações que foram feitas na carroceria do Steyr Baby original.
De fotos da internet dá para ver que foi feita uma série de variações destas, o que faz sentido quando se considera que essas conversões, realizadas em quantidade reduzida, foram feitas por uma pequena oficina de carrocerias — que não tinha a obrigação de manter um padrão único. Em todas elas a adaptação da carroceria Steyr no chassi do Volkswagen foi feita de uma maneira bem centrada, e o ajuste parece incrivelmente bom – e, ao que tudo indica, foi apenas um golpe de sorte que o Steyr e o Volkswagen tivessem distâncias entre eixos e outras medidas tão próximas.
Um Kohlruss VW com mais capricho no visual de Fusca?
Voltando ao carro da esquerda da imagem de abertura desta matéria podemos ver que ele difere bastante do exemplo de Kohlruss VW acima. Este carro único também foi restaurado pelo Bob Shail e, ao que tudo indica, ele é uma evolução, no que se refere ao visual Volkswagen, de um Kohlruss VW.
A carroceria deste carro tem características interessantes. A chapa anterior do bico do carro e a contrachapa interior (que formam a caixa do estepe) parecem ser originais de um Fusca, mas não o são, foram cuidadosamente feitas à mão. O capô dianteiro teve que ser encurtado em aproximadamente 5 cm e alargado para caber no espaço disponível. Ele também foi reforçado e a sua fixação na posição aberta é feita com duas dobradiças externas reforçadas. Para mantê-lo aberto foi instalado um suporte central que permite sua sólida fixação até com ventos mais fortes. Os para-lamas dianteiros são standard do Fusca, mas tiveram que sofrer uma adaptação nas suas extremidades traseiras devido ao fato do chassi do Steyr ser quase 10 cm mais largo.
Um tanque de gasolina de seção retangular foi instalado no lado direito do carro atrás do painel, como no Porsche 356. A frente do tanque existe uma caixa de madeira removível para acomodar as ferramentas, o macaco e demais quinquilharias. Basta retirá-la para acessar a caixa de direção e os componentes do freio.
Atrás do motor se encontra a parede corta-fogo original do Kübelwagen doador, ainda com a tampa removível para acessar o motor de arranque mais facilmente. As grandes tomadas de ar que foram instaladas nas laterais, em forma de orelhas, garantem um bom arrefecimento do motor mesmo em dias de calor intenso; e qualquer acúmulo de ar quente é logo exaurido pelas venezianas instaladas na tampa do motor, que garantem um bom fluxo de ar.
Na foto abaixo se pode ver as aberturas para a ventilação do motor, através das venezianas na tampa do motor e na tela que foi instalada onde antes era a tampa de acesso ao estepe.
Os para-lamas traseiros tiveram que ser alargados e a sua superfície de fixação teve que ser completamente reconformada para permitir a sua adaptação à carroceria do Steyr doador; eles são únicos e impossíveis de substituir.
Seguem mais algumas fotos deste misterioso carro:
Hanomag VW
Para concluir temos o carro que aparece na direita da foto de entrada; é outro que o Bob Shail encontrou e restaurou. Como vimos na mais recente pintura do Styer Baby VW dele ele acabou fazendo uma brincadeira, dizendo que o carro era da polícia da cidade do KdF… Pois bem, ele gosta de brincar mesmo, tanto que ele andou dizendo que o carro abaixo era um protótipo dos tempos da II Guerra Mundial, só que não! E tem muita gente que acreditou nisto, basta pesquisar na internet.
Este carro é mais um resultado da situação reinante no pós-guerra. Especula-se que ele foi construído em um país da Europa oriental, possivelmente a República Checa a partir da carroceria de um Hanomag 1300, semelhante ao da foto abaixo, e de um chassi de um VW Tipo 82:
A Hanomag foi uma empresa poderosa que chegou a construir grandes locomotivas a vapor e outros veículos tanto de transporte quanto de passageiros.
A adaptação no carro do Bob Shail foi muito bem feita, o compartimento dianteiro, que alojava o motor, foi totalmente reformado e passou a alojar o tanque de combustível:
O chassi do Volkswagen doador foi cuidadosamente adaptado na carroceria do Hanomag doador. E a plaqueta de identificação original do Tipo 82 de 1943 permaneceu no carro enxertado (seta vermelha):
O painel Hanomag original, que tinha um porta-luvas do lado direito e um velocímetro em frente do volante, foi modificado para uma versão com dois porta luvas (que receberam o logotipo do KdF) e um conjunto de instrumentos Volkswagen instalados no centro do painel; outro item que pode ter corroborado a fantasiosa versão de protótipo:
Outro detalhe desta adaptação foi como o problema da adução de ar de arrefecimento foi resolvido neste caso: foram abertas janelas nas duas laterais, protegidas por uma grade e enfeitadas com logotipos “KdF Hanomag” — que nunca existiu de fato, num acabamento profissional, como mostra a fotografia abaixo; e que deve ter sido mais uma razão para confundir a versão do tal protótipo:
A “cereja do bolo” em termos de falcatrua! Para arrematar os detalhes que confundem a todos, quem fez a reforma deste Hanomag VW colocou o logotipo fundido original do KdF doador na dianteira do carro resultante (seta vermelha e foto de detalhe). Pronto! A pantomima estava completa!
O Hanomag VW do Sr. Soucek
Para mostrar que tais modificações ocorreram frequentemente depois da Segunda Guerra Mundial, também em países da Europa Oriental aí vai a história do carro do Sr. Soucek da cidade de Pilsen, hoje na República Checa.
Este exemplo, a meu ver, desmonta, por completo, a fantasiosa versão de “protótipo” do Hanomag VW do Bob Shail.
O carro da foto acima foi construído em 1946 pelo Sr. Soucek. Ele montou a carroceria de um Hanomag 1300 no chassi de um KdF. A carroceria estava limpa — sem conteúdo algum, então ele foi agregando o que ia encontrando e gradualmente o carro foi sendo completado. A (inútil – já que o motor passou para a traseira) grade dianteira veio de um dos primeiros Wartburgs, o para-choque de um Škoda 1201, o tanque de Mercedes-Benz 170V, os bancos dianteiros de um Praga Alfa e os bancos traseiros de um Škoda Popular. O Sr. Soucek dirigiu o carro até 1966 e depois o vendeu para o Sr. Cink de Udlice, perto de Chomutov. Este vendeu o carro depois de alguns anos e aí se perdeu o rastro do carro. Parece que ele não existe mais.
__________________________________________________________________________________________
Com esta matéria acho que fica esclarecido o “mistério” dos veículos que parecem ser parentes do Fusca, mas só o são de longe graças a doação de componentes de veículos militares Volkswagen para a composição de carros do pós-guerra.
Circulam muitas lendas urbanas a respeito destas fotos que volta e meia alguém posta na internet e as celeumas se reestabelecem com força total. E… frequentemente eu recebo perguntas: – Isto aí é de verdade? É um raro Volkswagen? Tem para comprar?
Mas ao menos com relação a este dois eu acho que já tenho como indicar a resposta completa, apontando para esta matéria.
AG
Para a elaboração desta matéria foi necessária uma grande pesquisa na internet, indico como sites visitados: The Samba, Jalopnik, Warrelics, Allesauto, Armedconflicts, Wikipedia, blog Vorkriegs-Klassiker-Rundschau, etc. que foram fonte das fotos da matéria. Revista: Volksworld. E acervo do autor.
NOTA: Nossos leitores são convidados a dar o seu parecer, fazer suas perguntas, sugerir material e, eventualmente, correções, etc. que poderão ser incluídos em eventual revisão deste trabalho.
Em alguns casos material pesquisado na Internet, portanto via de regra de domínio público, é utilizado neste trabalho com fins históricos/didáticos em conformidade com o espírito de preservação histórica que norteia este trabalho. No entanto, caso alguém se apresente como proprietário do material, independentemente de ter sido citado nos créditos ou não, e, mesmo tendo colocado à disposição num meio público, queira que créditos específicos sejam dados ou até mesmo que tal material seja retirado, solicitamos entrar em contato pelo e-mail alexander.gromow@autoentusiastas.com.br para que sejam tomadas as providências cabíveis. Não há nenhum intuito de infringir direitos ou auferir quaisquer lucros com este trabalho que não seja a função de registro histórico e sua divulgação aos interessados.
A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.