A minha amizade com o pessoal do Auto Union DKW Club do Brasil vem de longa data, graças a seu presidente Eduardo Pessoa de Mello. Tive o prazer de participar de vários eventos deste clube como foi a festa de seu aniversário de 22 anos, realizada no dia 8 de dezembro de 2001, no aprazível Clube de Vela de São Paulo, na represa de Guarapiranga na capital de São Paulo.
Abaixo o bolo e os docinhos personalizados com os logotipos das empresas que formaram a Auto Union, detalhes do capricho com o qual a festa foi preparada (fotos do autor):
Naquele evento os carros dos participantes foram um dos destaques, abaixo uma foto em panorama mostrando alguns deles (foto do autor):
Uma curiosidade que apareceu neste evento — um protótipo de carro de corrida monoposto com motor DKW traseiro-central feito pelo mecânico que, na época, fazia manutenção de vários carros do clube (fotos do autor):
Eu sempre participei na qualidade de “um estranho no ninho”, pois ia com o meu Fusca ’56, mas sempre fui muito bem recebido.
Dentre os participantes do aniversário de 22 anos do clube estava seu membro honorário o grande Jorge Lettry, muito inteligente e sempre brincalhão. Ele, sabendo que sou alemão e, na época, presidente do Fusca Clube do Brasil, me chamava de brincadeira de “Gauleiter” — um dos postos de comando maiores da Alemanha durante a II Guerra Mundial.
Ele e eu, como de costume, engatamos num papo sobre carros. Comentei que tinha um site sobre veículos Gurgel e ele abriu um largo sorriso e disse que havia um elo entre o João do Amaral Gurgel e um Fusca 1952 que participou da I Mil Milhas Brasileiras, realizada em Interlagos em 1956! Devo ter feito uma cara de grande espanto naquele momento.
Aí ele prometeu me enviar uma cópia de carta que ele iria enviar para a Mahle Metal Leve sobre este assunto, que, por coincidência, o havia consultado sobre aquele Fusca 1952… E assim foi, no final daquele mês de dezembro chegou a carta dele. Abaixo o carimbo dos Correios, a etiqueta de endereçamento (observe que ele era brincalhão até na emissão desta etiqueta) e a de endereço do Lettry. A carta é endereçada a Hilda Melo, assistente do então presidente da empresa, Claus Hoppen
Abaixo segue a transcrição da carta e seu conteúdo é surpreendente:
Mahle Metal Leve
Rodovia SP-340 – km 176
Mogi Mirim – SP
Atibaia, 19 de dezembro de 2001
Ref.: “VW na I Mil Milhas Brasileiras – Interlagos – SP – 25/11/56”
Prezada D. Hilda,
Em resposta à sua consulta telefônica com respeito à participação de um veículo VW 1200 (original) 1952 na I Mil Milhas Brasileiras em Interlagos, em 25/11/56, veículo esse pilotado pela dupla Christian Heins e Eugênio Martins, e devidamente preparado por minha firma de então, a Argos Equipamentos, tenho o seguinte a comentar:
- A performance geral apresentada pelo Fusquinha nº 18 nessa dura prova constituiu-se no maior feito esportivo mundial de um veículo VW até aquela data e, muito em especial, em toda a América Latina!
- Devido aos detalhes de momento, as condições externas foram mantidas quase que inalteradas em relação ao carro original, o que publicitariamente deu uma gigantesca repercussão! Observe-se que nem o automático rebaixamento das suspensões foi introduzido no caso, isso mesmo em detrimento da perda de performance em curvas, detalhe tão necessário nesse tipo de disputa em autódromos como o de Interlagos!
- A potência do motor de 1500 cc — Porsche 1500 Super — com bloco original VW de duas partes, de acordo com o regulamento estabelecido — veículo e bloco do motor da mesma marca — fornecia uma potência de 74 cv DIN, número esse idêntico a qualquer motor de série dos atuais 1000-cc de produção nacional. Nunca, entretanto, esquecendo que disputávamos a prova contra as decantadas “carreteiras” do Rio Grande do Sul, equipadas com motores de 5.000-6.000 cc!
- Ao carro em pauta não foram introduzidas modificações básicas importantíssimas em competições, tais como rodas (aro, pneu e medidas), sendo os aros utilizados 4.5Jx15 e pneus 5.60-15 de construção diagonal — Pirelli ST17 Spalla di Sicurezza. Enfim, pior que isso não seria possível!
- Deve ser dada uma nota muito especial ao sistema de refrigeração do óleo lubrificante do motor, que por sinal sempre se constituíra na maior dificuldade dos motores refrigerados a ar em competições. Foi adotado, no caso, o sistema de cárter seco, incorporando um radiador dianteiro. Para tal, foi elaborado um capô especial em fiberglass com bocal apropriado, de autoria do Eng. João do Amaral Gurgel, tendo sido essa a primeira peça produzida por ele na área automotriz!
- Durante boa parte da prova o VW nº 18 ocupou a primeira posição. Infelizmente perto do final perdeu-se a ponta pela simples quebra de um cabo de acelerador; porém ainda se chegou em segundo lugar no final!
Acreditando haver completado um breve resumo do acontecimento em pauta, despeço-me enviando um forte abraço.
Sem mais, atenciosamente
Seu admirador
(a) Jorge Lettry
Fato Curioso:
Alguns dias antes da prova, um bom amigo e eu achávamo-nos no apartamento da família Fittipaldi no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, para um daqueles “papos intermináveis” com o velho Barão, ainda com cabelos pretos, quando repentinamente aparece por lá, para o mesmo fim, o mais destacado piloto nacional até aqueles idos dias: Chico Landi!
Naqueles tempos as palavras do famosíssimo “Chico Miséria” em matéria de mecânica esportiva faziam realmente tremer as paredes.
Referindo-se a nós e ao pequeno veículo em baila, com aquela voz surda e bem característica sua, ele declara acintosamente: “No meio da corrida já vou começar a cortar a barba, pois já estará comprida pra burro“!
Pois bem, no meio da prova, quando já ocupávamos a liderança, o famoso personagem aparece em nosso boxe para dar uma daquelas típicas “abelhadas” na casa dos outros.
Diante dessa extrema curiosidade, perguntamos então a ele: “Como é seu Chico, já começou a cortar a barba”? Meio aos murmúrios e palavrões, lá se foi ele que era o grande piloto brasileiro, o maior de todos os tempos, como uma fera ferida em seu pleno orgulho!
Simplesmente mais um fato cômico de nosso conturbado automobilismo. Só isso!
Abaixo, algumas fotos relativas ao texto:
Uma coincidência e uma homenagem
Foi no dia 16 de maio que eu comecei a trabalhar nesta matéria, e este foi, por uma grande coincidência, o dia no qual o Lettry faleceu em 2008, e, com isto, tomei a decisão de, com esta matéria, fazer uma homenagem para ele e, tendo o Bob Sharp como fonte de consulta, foi escrita uma breve biografia que segue abaixo:
Jorge Lettry, italiano com jeito de alemão, mas de coração brasileiro
Jorge Lettry nasceu em Ivrea, no norte da Itália, no dia 1º de abril de 1930. A família — o pai Adolfo, a mãe Onorina, Jorge, o irmão Aldo e a irmã Nelly — primeiro foi para a Argentina por volta de 1925 e depois veio para o Brasil, onde o casal constituiu um pequeno hotel em Santos. Jorge nasceu quando Onorina tinha ido à Itália.
Com a morte de Adolfo em 1949, a mãe com os dois filhos — Aldo havia se mudado para Goiás — veio para São Paulo, onde a paixão de Lettry por automóveis se intensificou. Seu primeiro trabalho foi na Sears,Roebuck, vendedor na seção de ferramentas, mas não demorou em arranjar trabalho na concessionária VW Sabrico como recepcionista da oficina. Lettry, assim, testemunhou a chegada do Volkswagen ao Brasil. Esse trabalho lhe abriu as portas para fazer todos os cursos técnicos na Volkswagen. que ainda era sediada em São Paulo. Além disso, como Ferdinand Porsche, Lettry era autodidata, não chegou a se formar engenheiro.
Em 1954 associou-se a João Skuplik numa pequena oficina mecânica na rua Butantã, em Pinheiros, especializada em VW e num carro que vinha chegando ao Brasil, o Porsche 356. A oficina, chamada Argos Equipamentos, logo ficou conhecida pela qualidade do serviço. Mas em 1958 um amigo, Ângelo Gonçalves, engenheiro da Vemag, pediu-lhe que desse um pulo à fábrica na Vila Carioca para dar opinião sobre um utilitário que estava chegando, com planos de produzi-lo. Era o utilitário todo-terreno DKW.
Lettry pegou o jipe para dar “uma voltinha” e só voltou três horas depois, Ângelo e demais funcionários de engenharia experimental ficando bastante preocupados. De volta à fábrica, Lettry disse: “Dr. Ângelo, este é o melhor carro esporte que já dirigi.”, aludindo às suas qualidades dinâmicas decorrentes da eficiente suspensão independente nas quatro rodas e tração integral.
Dias depois, o convite para ingressar na Vemag. Aos 28 anos, Lettry era o chefe do departamento de testes, até então inexistente.
Abaixo algumas fotos do Lettry, já chefe do departamento de testes da Vemag, pilotando um Jipe DKW em condições severas atravessando um curso d’água:
Dali para o envolvimento oficial da Vemag nas corridas foi um pulo. Com seu jeito e disciplina germânicos, os DKW-Vemag brancos (a cor da Alemanha no automobilismo antes de passar a prata, ainda antes da guerra), passaram a fazer parte do cenário das competições no Brasil, com seu desempenho — e ruído — exuberantes. Tratou de contratar Mário César de Camargo Filho, o “Marinho”, e Bird Clemente, como pilotos principais, além de outros como Anísio Campo, Roberto Dal Pont, Chico Lameirão e Eduardo Scuracchio.
Em 1960 a atividade da Vemag nas competições era tão intensa que precisou ser criado um departamento dedicado — chefiado por Jorge Lettry, claro. Na pequena estrutura montada, ele viu num jovem negro, de 20 anos, o potencial para ser o mecânico-chefe. Miguel Crispim Ladeira tem seu nome indelevelmente ligado à Equipe Vemag.
Em 1964 um italiano fazendeiro em Matão desenvolvia uma carroceria cupê para o DKW-Vemag. Lettry apaixonou-se pela ideia com vistas à competição — os DKW-Vemag sedã vinham sendo derrotados pelo leve e aerodinâmico Willys Interlagos berlineta — e deu todo o apoio da Vemag, meio “por baixo do pano”, ao fazendeiro Rino Malzoni, nascendo o GT Malzoni (foto acima). Logo veio a ideia de industrializar a carroceria e uma firma foi formada para esse propósito, a Lumimari Ltda, o estranho nome formado pelas duas primeiras letras dos nomes dos sócios: Luiz Roberto Alves da Costa, Milton Masteguin, Mário César de Camargo Filho (“Marinho”) e Rino Malzoni.
Para a produção das carrocerias em compósito de fibra de vidro e montagem dos carros — o chassi rolante completo era adquirido da Vemag — foi alugado um grande galpão na avenida Presidente Wilson, onde a produção começou em 1965. Mas na época já pairavam nuvens escuras sobre a Vemag, havia negociações de compra da Vemag pela Volkswagen, acompanhando o que acontecera naquele ano, a Volkswagen absorvendo a Auto Union, a fabricante do DKW na Alemanha. O negócio foi fechado em agosto de 1966 e por conta da iminente transação, a Vemag havia encerrado toda a atividade de competições em 30 de junho dois meses antes. Nesse momento Jorge Lettry deixou a empresa para se associar à Lumimari, na qual passou a ser o diretor técnico.
Como Lettry achasse impróprio o nome Lumimari — parecia nome de loja de lustres, dizia — sugeriu a mudança da razão social para Puma Veículos e Motores Ltda. A agora Puma continuou a trabalhar — a Vemag mesmo com novo dono prosseguia na produção do DKW-Vemag — e aprontou o sucessor do GT Malzoni, o Puma GT, apresentado no Salão do Automóvel de 1966, encantando a todos pela beleza de suas linhas assinadas por Anísio Campos. O carro teve boa aceitação, mas seu destino estava selado: o fim da produção do DKW-Vemag, a “matéria-prima” do Puma GT, estava definida para novembro de 1967.
O substituto do Puma GT sairia da cabeça de Lettry, um cupê também de dois lugares sobre chassi rodante completo de Volkswagen, desenhado por Rino Malzoni¹. Em abril de 1968 surgia o Puma GT 1500, o número representando a cilindrada do motor boxer arrefecido a ar. Este era dotado de dois carburadores Brosol 32 e de um escapamento mais elaborado, elevando a potência de 44 cv para aproximadamente 60 cv.
Em 1972 desentendimentos entre os sócios levaram Lettry a deixar a Puma. Logo conseguiu um contrato com a indústria de carburadores Brosol, com a qual tinha bom relacionamento pelo diretor-presidente Martin Bromberg, para dirigir uma oficina de preparação de motores, a Draco, no bairro de Moema. O negócio durou cerca de três anos, mas o bastante para Lettry se enamorar e se casar com sua secretária, união que gerou duas filhas
Nesse período ele foi convidado para ser o chefe da equipe Copersucar-Fittipaldi, mas recusou devido ao compromisso com a Brosol e também pelo fato de as filhas serem muito pequenas.
Nessa fase da vida, Lettry, já com 45 anos, resolveu começar tudo de novo, inclusive criar as filhas num ambiente mais calmo do que São Paulo, mas em outra atividade, longe dos carros e das pistas: uma indústria de chocolate em Monte Verde, MG, cidade onde o casal passou a viver e a trabalhar na chocolataria Cervinia Alimentos, firma que foi um sucesso durante cerca de 20 anos, inclusive com uma filial em Atibaia, onde uma casa para moradia havia sido comprada.
Veio a separação e Lettry passou a viver em Atibaia, enquanto ex-esposa e a filha menor ficaram em Monte Verde, e a maior, com ele. Foi onde Lettry viveu até falecer no dia 16 de maio de 2008, aos 78 anos. Uma leucemia o tirou de nós.
Os que conviveram com ele o admiravam tanto pelo seu amor ao Brasil quanto por seu vasto conhecimento técnico. Os que correram sob suas ordens entendiam o rigor disciplinar germânico e testemunharam o que Lettry dirigia, e pilotava: em Interlagos era mais rápido do que seus pilotos. Os que andaram com ele de passageiro ficavam surpresos com sua suavidade ao dirigir, a delicadeza com que operava os comandos do automóvel.
Ao longo de sua vida só fez amigos; inimigo, nenhum. O vazio deixado, mesmo 14 anos depois, ainda é grande.
Pois é assim que termina esta matéria, deslindando o caso do Fusca 1952, que em 1956 quase ganhou as I Mil Milhas Brasileiras tendo um equipamento produzido pelo Gurgel.
Certamente aquele pequeno Fusca, com seus pneus finos, disputando galhardamente com potentes carreteras, deu um início glorioso à participação de Fuscas em competições e meu amigo Jorge Lettry foi o artífice da mecânica daquele carro.
Em tempo: na imagem de abertura desta matéria temos à esquerda o Letrry com seus indefectíveis óculos Ray Ban e à direita o nº 18 em plena ação na pista de interlagos.
AG
(1) Sobre a autoria do design do Puma GT 1500, após a publicação desta matéria recebi uma mensagem do amigo e jornalista Rogério Ferraresi dizendo haver recebido informação do Toni Bianco, tempos atrás, de que Rino baseou o desenho do Puma GT 1500 numa miniatura que ele, Bianco, havia feito para um uso futuro (ele costumava fixar seus designs na forma de miniaturas, para um testemunho tridimensional de suas ideias, segundo Ferraresi) em que Rino teria pedido a tal miniatura emprestada, sem devolvê-la. Em busca de um esclarecimento adicional um representante do AE conversou com Toni Bianco, que confirmou o fato. Rino já não está mais entre nós, portanto não é possível saber o que ele teria a dizer.
Agradeço ao apoio do Bob Sharp e do Eduardo Pessoa de Mello.
NOTA: Nossos leitores são convidados a dar o seu parecer, fazer suas perguntas, sugerir material e, eventualmente, correções, etc. que poderão ser incluídos em eventual revisão deste trabalho.
Em alguns casos material pesquisado na Internet, portanto via de regra de domínio público, é utilizado neste trabalho com fins históricos/didáticos em conformidade com o espírito de preservação histórica que norteia este trabalho. No entanto, caso alguém se apresente como proprietário do material, independentemente de ter sido citado nos créditos ou não, e, mesmo tendo colocado à disposição num meio público, queira que créditos específicos sejam dados ou até mesmo que tal material seja retirado, solicitamos entrar em contato pelo e-mail alexander.gromow@autoentusiastas.com.br para que sejam tomadas as providências cabíveis. Não há nenhum intuito de infringir direitos ou auferir quaisquer lucros com este trabalho que não seja a função de registro histórico e sua divulgação aos interessados.
Nota de alteração: em 27/05/2020, às 11h20 foi acrescentada a nota (1) sobre a informação passada pelo jornalista Rogério Ferraresi.
A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.