Já no primeiro contato com o Reinhold Ortlieb, nos anos oitenta, a empatia foi imediata. Sempre solícito, ele colaborou com minhas pesquisas, como, por exemplo, com o material que citei na matéria “Acordo VW & Chrysler – base para a vinda do VW Fusca para o Brasil”. Ao lado de sua ocupação com visitas à fábrica, ele foi um pesquisador da história da Volkswagen no Brasil.
Há um tempo que eu quero fazer uma homenagem para este amigo que nasceu em 3 de junho de 1934 e nos deixou no dia 21 de maio de 2014. Na foto de abertura desta matéria ele está à esquerda da foto. Esta foto foi tirada no dia 12 de junho de 1996, quando de uma visita de despedida à linha de montagem do Fusca Itamar¹. A outra pessoa que aparece nesta foto é o Luiz Antônio Daniel e a foto foi feita por um fotógrafo oficial da fábrica. Sim, também nesta visita o Reinhold nos ciceroneou.
Para fazer esta homenagem, a minha amiga Raquel Alves² ajudou muito. Ela redigiu para a edição de junho/julho de 1998 do jornal Notícias da Oficina uma matéria sobre o Reinhold que descreve o que ele fazia e conta um pouco de sua biografia até então. Recebi este artigo como um material impresso (reproduzido por fotografia) passei para texto em computador e o reproduzo abaixo.
Reinhold: o pastor da fábrica
Por Raquel Alves
Mais de 120 mil pessoas conheceram as fábricas da Volkswagen sob o cajado de Reinhold Ortlieb. Mecânicos formam o rebanho preferido do relações-públicas que um dia sonhou ser pastor, mas encontrou seu púlpito entre prensas, tornos, em meio a chapas que ganham formas e se transformam em automóveis.
Os colegas de trabalho já sabem: se é dia de visita, Reinhold já chega na fábrica com humor diferente. Quando cantarola alegremente trechos de compositores clássicos e porque está para chegar um grupo de cerca de 40 pessoas interessadas em conhecer um pouco mais sobre a montagem de carros e mergulhar nos mistérios da maior indústria automobilística do País.
Reinhold Felippe Ortlieb é relações-públicas. Trabalha na Volkswagen há 24 anos e, ao longo dessa vida, já percorreu mais de 3.000 vezes o chão da fábrica, um trajeto que tem início na área das prensas, quando a chapa de aço começa a ganhar formas definidas de portas, laterais e capô, e vai até a montagem final, onde os automóveis recebem os últimos acertos antes de ganhar as ruas e estradas brasileiras e de outros países das três Américas, Europa e África.
É nesse percurso, de cerca de sete quilômetros, capaz de encantar ministros de Estado, estudantes, visitantes estrangeiros, mecânicos, jornalistas e até índios, que Reinhold busca inspiração para viver cada dia como se fosse o primeiro de sua carreira. Conduzidas pelo seu estilo didático, seguro e atencioso, mais de 120 mil pessoas já visitaram as fábricas da Volkswagen. Além da unidade da Anchieta, em São Bernardo do Campo (SP), a maior do grupo, ele também conhece cada palmo da linha de montagem de Taubaté e da fábrica de motores de São Carlos, onde costuma aparecer com seus numerosos amigos, entre os quais centenas de leitores de Notícias da Oficina.
Trabalho gratificante – Poucos conhecem tão bem a fábrica, especialmente a da Anchieta, a “Cidade Volkswagen”, onde nasceu o programa de visitas. Raros são os que sabem tantos detalhes da história da empresa, desde a sua instalação no País, e mais raros ainda são os que fazem o seu trabalho com tamanha maestria, dedicação e amor. “É gratificante trabalhar para a Volkswagen, uma empresa séria, com produtos confiáveis, que estimula seus funcionários a progredirem profissionalmente”, diz Reinhold.
Os 64 anos de idade parecem não pesar nada sobre as longas caminhadas diárias ao contrário, até ajudam-no a manter a boa forma. O cantarolar baixinho é sintoma indisfarçável de sua excitação e alegria em poder conhecer gente nova, rever velhos amigos, ensinar e, sobretudo, apresentar, com todo orgulho, a empresa que ele aprendeu a descobrir e amar.
Mecânicos são os seus visitantes preferidos. “Taí um grupo bom para se trabalhar. É gente que conhece o automóvel, se interessa pelo assunto e faz muitas perguntas. Aprendo muito com eles”, elogia. Talvez venha dessa empatia a sua popularidade entre os amigos da graxa. Em Garanhuns (PE) ou em Xanxerê (SC); em Planaltina (GO) ou em São Mateus (ES); em Maringá (PR) ou em Fortaleza (CE), em Santa Cruz de La Sierra (Bolívia), Lima (Peru), ou Santiago (Chile), onde quer que se vá por esse Brasil afora ou em países vizinhos, ele está na parede da oficina, uma ou mais vezes, em fotos que documentam a visita de mecânicos às fábricas da Volkswagen.
Pastor dedicado – Conduzir grupos, tal qual um pastor entre suas ovelhas, parece ter sido uma brincadeira do destino. Porque a verdadeira vocação de Reinhold haveria de fazê-lo pastor na Igreja Presbiteriana. Foi a religião, aliás, que o tirou da pequena Aimorés, no Vale do Rio Doce, interior de Minas, divisa com o Espírito Santo onde trabalhava na terra dos pais, imigrantes alemães, e o levou para São Paulo. Mais precisamente para a Escola Presbiteriana, onde ingressou com 23 anos, para concluir o primeiro e segundo graus e quase formar-se em Teologia.
Os estudos foram interrompidos abruptamente, por conta de uma perseguição ideológica instaurada no seminário nos idos da ditadura militar. Não que Reinhold fosse militante de alguma organização de esquerda. Tinha, porém, uma preocupação fraterna com os menos favorecidos e com a função social das religiões. Tomou partido em defesa dos excluídos da igreja e acabou sobrando do lado de fora, junto dos socialistas, esquerdistas em geral e simpatizantes. Esse fato, que por pouco não abalou sua fé, marcaria para sempre sua devoção religiosa.
Dos tempos escolares, a melhor lembrança é a música. Nos corais de igrejas, Reinhold descobriu seu dom musical. O ouvido apurado do jovem ruivo, sardento, de inquietos olhos azuis foi logo percebido pelos professores de música. que o introduziram no estudo da regência. Viajando com a música, Reinhold esteve em várias cidades Brasil afora, as vezes cantando, noutras regendo, até conhecer, numa de suas caravanas musicais, a professora Aracy, com quem casou-se em 1971.
Desde a saída do seminário, em 1966, até sua chegada à Volkswagen, em 1974, Reinhold fez um pouco de tudo, tocando os sete instrumentos para sobreviver. Sem parentes em São Paulo e com vergonha de retornar fracassado às origens, foi impressor, vendeu imóveis, traduziu textos em alemão, deu aulas, estudou muito, sempre alternando períodos mais tranquilos e fases de extrema dificuldade financeira.
Sonho concretizado – Seu grande sonho era trabalhar na Volkswagen. Primeiro, porque era uma maneira de treinar o alemão, idioma que aprendera dentro de casa e que lapidara no curso de letras germânicas da Universidade de São Paulo. Segundo, porque a fábrica de São Bernardo do Campo vivia o seu apogeu na década de 70. Era um símbolo da industrialização do País e sinônimo de emprego bem remunerado e estável.
Reinhold fez várias tentativas para entrar na empresa e quando já havia desistido, recebeu um telegrama, convidando-o a assumir uma vaga no Departamento de Relações Públicas. Desconfiado, como convém a um bom mineiro, hesitou em se deslocar de São Caetano do Sul, onde morava, até São Bernardo do Campo, e levar outro não. Arriscou e se deu bem.
A primeira visita aconteceu meio por acaso. Com menos de um mês de empresa, Reinhold precisou substituir o chefe, em viagem, e cumprir sozinho a agenda de visitas. Fez o percurso inúmeras vezes, anotou dados, conversou com funcionários da produção, até estar seguro para desempenhar o novo papel. O primeiro grupo passou. Depois vieram muitos e muitos outros, trazendo gente de toda espécie, artistas, atletas, jogadores, estudantes, empresários estrangeiros e até uma tribo de índios de Santana do Araguaia (PA) que quase parou a linha de montagem.
Em 1991, desligado do quadro de funcionários da empresa, foi convidado a assumir o programa de visitas, coordenado pela Promoção de Vendas e dirigido exclusivamente aos concessionários Volkswagen. Nesses sete anos, Reinhold recebeu incontáveis grupos de mecânicos, vindos de toda parte do País e até de países vizinhos. Alguns, como o caso de um grupo de São Luiz do Maranhão, que esteve em São Bernardo do Campo em maio deste ano, passam dias na estrada, só para conhecer a fábrica da Volkswagen.
Dedicação plena – Reinhold compensa esse esforço da melhor maneira possível. Recebe os visitantes com carinho e atenção, cuida pessoalmente de detalhes, como a água gelada que é servida durante o programa, providencia o almoço, e se empenha para que nenhuma dúvida deixe de ser respondida. Assim, vai colecionando novos amigos a cada dia. Os integrantes dos grupos, por sua vez, trazem presentes, enviam cartas de agradecimento, postais das cidades de origem, e sempre pinta um convite para um final de semana em Mato Grosso ou nas praias do Sul, que Reinhold quase nunca tem a oportunidade de aceitar, tantos são os compromissos com seus visitantes.
Nos raros dias em que não há visitas, ele descansa carregando pedras: organiza a agenda, faz a parte burocrática do trabalho, lustra, um a um, os óculos de proteção usados pelos visitantes nas áreas onde há riscos de fagulhas, e ainda encontra tempo para atender voluntariamente estudantes que fazem trabalhos sobre a “Cidade Volkswagen”. Muitas das respostas só ele sabe dar.
Todos, do executivo de uma grande empresa ao estudante secundarista, são recebidos por Reinhold com o mesmo sorriso, atenção, carinho. E se alguém pergunta de onde vem tanta disposição e tanta boa vontade, ele responde encabulado: “Nasci gostando de ajudar. A minha saúde e a minha disposição dependem disso”. Parar? O “Alemão” não tem planos nesse sentido. “Enquanto eu tiver pique, entusiasmo e vibração para receber meus visitantes, estarei por aqui”, enfatiza.
(1) – No dia 12 de junho de 1996 o grupo abaixo fez uma triste visita à Fábrica Anchieta da Volkswagen do Brasil. Fomos nos despedir do Fusca “Itamar”, cuja produção estava para ser descontinuada. O Reinhold Ortlieb foi nosso cicerone com a fidalguia de sempre.
(2) – A Raquel Alves, que trabalhou no Setor de Marketing da Volkswagen do Brasil, tratou por vários anos do boletim interno do Fusca Clube do Brasil – A Bananinha – que a Volkswagen do Brasil imprimia. Como eu redigia este boletim, eu tinha um contato frequente com ela e o contato foi sempre muito gratificante. Tenho um agradecimento muito grande a tudo que ela fez pelo Fusca Clube do Brasil.
Raquel Alves é jornalista, professora universitária e mestra em Comunicação Social. Por mais de 20 anos esteve ligada ao Marketing da Volkswagen atuando com publicações, como as revistas V e Rede em Notícias, e colaborando com o jornal Notícias da Oficina.
AG
Meu agradecimento à Raquel Alves pela parceria nesta homenagem ao saudoso Reinhold Ortlieb.
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