O mais estranho desta história talvez seja escrever aqui em São Paulo, com 35 °C na cabeça, sobre uma situação que aconteceu a 55 °C atrás. Dias atrás, estava no Michigan, norte dos EUA e fronteira com o Canadá, com temperatura de freezer, com os termômetros marcando –20 °C. Sei lá a razão, mas toda vez que chego lá é o dia mais frio do inverno deles. Anos atrás, cheguei a pegar –40 °C em Ohio, recorde negativo de temperatura nas últimas décadas, como contei no meu livro “Sorvete de Graxa”.
Desta vez também fui para o Salão de Detroit, só que cheguei lá cinco dias antes, para umas pequenas férias na casa de meu primo que mora em Ann Arbor, também Michigan, a cerca de 100 quilômetros de Detroit.
Saí de São Paulo com mais de 30 °C e a gente já vai se adaptando. Nas mais de 10 horas de vôo, o ar-condicionado do avião promove uma pequena aclimatação, mantendo os 20 °C. Embarquei de camiseta e, dentro do avião, já sai uma camisa e uma blusa da bagagem de mão, que é quase esvaziada no desembarque em Detroit. Mais uma blusa, blusão forrado, luvas, aquele gorro de lã que te deixa com cara de “mano véio”…
Uma coisa é pensar em – 20 °C, outra é sentir esta temperatura tão negativa. Quando se faz a mala, a memória térmica de um brasileiro em pleno verão só chega aos 0 °C e já acha frio pacas.
Lá estou eu, do lado de fora do Aeroporto de Detroit, ainda na área coberta, e vendo a neve cair no amanhecer. E o trouxa que vos escreve já está tremendo. Levei pouca roupa, coisa light para o frio polar. Entrar no ônibus aquecido da locadora foi um pedaço do paraíso.
Demorei a pedir um carro emprestado de alguma fabricante e o jeito foi alugar alguma “coisa andante”. O golpe de sempre: você reserva um “carro econômico” (que só existe na Flórida, porque está cheia de brasileiro pão-duro como eu) e, como ele não existe no estoque da locadora no gelado Michigan, ganha-se um upgrade para um “compacto”.
Hora da verdade: a tia que me atende me olha nos olhos e pergunta:
— Com toda esta neve, você não prefere um carro mais pesado, 4×4, para rodar mais tranqüilo nessa neve toda?
Não é só marketing. Na neve, são dois mundos diferentes: um carro leve com tração dianteira é sempre um dançarino desajeitado perto de um utilitário, esporte ou não, pesadão e com tração nas quatro rodas. O peso maior ajuda aos pneus acharem o asfalto e a tração 4×4 te garantem dirigibilidade e tração muito superiores. Basta rodar alguns quilômetros na neve para concordar com os americanos que moram em locais com inverno rigoroso: um picapão ou suve se torna fator de segurança, principalmente quando o motorista não tem lá muita vocação para piloto de rali.
Fico mesmo com o “compacto”, depois de tranqüilizar a tia atendente, garantindo que tenho experiência com a neve, mesmo tendo nascido em terras bem mais tropicais. Escolho um Nissan Versa, um sedãzinho que me pareceu mais simpático no pátio da locadora, já com a carroceria que vai ser nova no Brasil, se tornando New Versa. Motorzinho 1,6 com duplo comando, ambos variáveis, produzindo 109 cv a 6.000 rpm. Claro que o câmbio é automático, de quatro marchas. E só 1.098 kg de peso para amassar neve.
Um carrinho que começa nos US$ 12 mil nos EUA. O modelo da locadora me parece o básico, sem ser alguma “série especial” mais pelada que o habitual, o que geralmente acontece com as frotas de locadoras americanas.
No banco do Versa, um panfleto dizendo It’s Freezing (está congelando) já prepara o freguês psicologicamente para a temporada de neve e gelo que se está prestes a enfrentar. O texto explica que o carro foi lavado, higienizado etc, mas por fora não dá para ficar essa bola toda. Confirmação visual: tem uns 15 cm de neve sobre o Nissanzinho.
Ou seja, rodar na neve não é assim tão simples. Nada de chegar e colocar as nádegas flácidas no banco e sair. Hora de trabalhar, como vai acontecer todas as manhãs.
Como já conheço o roteiro, o primeiro passo é ligar o carro, deixar o aquecimento no máximo, direcionado para o pára-brisa, além de também acionar o desembaçador traseiro. Isto facilita tirar o gelo que já se formou nos vidros. embaixo da neve.
No assoalho traseiro está a vassourinha mágica: um pincelão-vassoura de um lado e uma pequena pá plástica do outro. Primeira dúvida: tira ou não tira as luvas de lã? Resolvi começar o serviço de luvas, varrendo bem os vidros e capô dianteiro. Se fica muita neve no capô, em movimento vai tudo para o pára-brisa. Teto e tampa traseira merecem um serviço meio porco, já que a neve vai sair depois dos 60 km/h.
Claro, embaixo da neve do pára-brisa existe gelo grudado no vidro. E a luva já molhou, a água começa a congelar e os dedos já ficam meio duros. Jogo a luva no painel, bem na saída de ar quente. Que ainda não está tão quente assim, pois o motor mal começou a aquecer.
Raspo o gelo do pára-brisa, pois ele forma calombos que chegam a travar os limpadores, ou até mesmo arrancar a palheta de sua haste. Entro no carro, que continua bem gelado e ponteiro de temperatura do motor nem mexeu, mesmo depois de uns 10 minutos funcionando.
Pego no volante. Não dá. O frio tão intenso queima as mãos da mesma forma que o volante de um carro deixado no sol em temperaturas acima de 30 °C. Com as pontas dos dedos nos raios do volante, saio em marcha-lenta. Surge o som de pneus cortando a neve, que é único: chóóóóóóóó´.
Lembra, ainda que vagamente, outro extremo: pneus cortando areia fina e muito quente, bem fofa, na beira mar.
Aquele som de pneus cortando neve ultrapassa os ouvidos e vai para sua alma brasileira: você está fora do seu país, vivendo mais uma vez uma situação quase impossível de não acontecer por aqui. Difícil não se sentir um privilegiado, um caipira tropical vivendo um rigoroso inverno cheio de paisagens brancas. Um saco para quem mora lá e tem de limpar o carro, a calçada, gastar uma nota para manter a casa aquecida… Mas um paraíso para um forasteiro de uma terra onde sol até exagera sua presença. Pelo menos para ficar alguns poucos dias.
Minha filosofia barata é interrompida pela cabine de saída da locadora: hora de mostrar o contrato de locação. Os vidros não abrem. A água nas canaletas congelou, travando os vidros. Tenho de abrir a porta para mostrar papéis. Hora de programar o meu GPS. Ele demorou mais de 5 minutos para achar satélites a mais 8.000 km de casa. E mesmo assim, começou a funcionar meio bobo, com falhas na navegação. A vida realmente voltou dentro do Versa uns 15 minutos depois, quando o motor finalmente atingiu os 80 °C, sua temperatura de funcionamento, e a cabine se aqueceu. O GPS finalmente achou a rota depois que seu circuito descongelou.
No painel do Nissanzinho, uma luz de alerta mostrava problemas com a pressão dos pneus. No meio da rodovia I-94, dou umas desviadas rápidas para sentir os pneus. Nenhuma “barrigada” de pneu dobrando no aro denuncia algo muito anormal. Vale uma ressalva: como a maioria dos carros atuais, o Versa tem direção com assistência elétrica, que é eficiente, leve etc. Mas, ela isola muito o volante das rodas, anestesia a sensação de saber exatamente onde os pneus estão pisando. Tiro um pouco o pé do acelerador, meio preocupado. Mas, são só uns 40 km e não estou com a menor vontade de parar num posto e sair do “quentinho”. Além disso, o carro está com pneus para neve, que tem um desenho meio estranho, com sulcos maiores e pontas metálicas para melhorar a tração na neve. Aliás, todo mundo deve ter dois jogos de rodas e pneus: um para verão e outro para o inverno. Se houver acidente e os pneus forem “normais” o seguro não paga.
Alguns quilômetros depois, a luz se apaga. Explicação: com a queda de temperatura, cai também a pressão dos pneus. Depois dos pneus aquecerem rodando, a pressão sobe um pouco e está tudo bem.
A rodovia está bem limpa, com pouca neve no meio dos “trilhos”, as marcas deixadas pelos veículos passando e tudo está tranqüilo, mesmo para um motorista mal dormido e se readaptando a um inverno polar. Estradas e avenidas principais são sempre limpas por caminhões limpa-neve, que também espalham sal para derreter neve e gelo. E exatamente devido a este sal nas rodovias se vê tantos carros podres no Michigan. Veículos relativamente novos que já perderam grandes pedaços da carroceria, principalmente perto das rodas, onde o sal se acumula.
Apesar da estrada limpa, o perigo mora ao lado. O acostamento está cheio de neve e, se tiver que sair da pista, a manobra é complicada. Melhor praticamente parar na pista e sair bem devagar. Se você apenas diminuir a velocidade e entrar no acostamento seu destino é ir para lá no meio do pasto, se tiver sorte e não pegar um barranco. Da mesma forma, ruas e caminhos secundários estão cheios de neve (com gelo amassado embaixo) e se deve rodar devagar, tendo como diversão extra algumas derrapagens e dançadinhas.
Não é sem razão que finlandês e a turma que mora perto do Pólo Norte é sempre campeão de rali. Você nasce derrapando e começa a treinar com o primeiro triciclo que ganhou no aniversário de três aninhos.
Um brasileiro, que só treina este tipo de pilotagem na lama, tem uma “escolaridade” bem mais baixa na neve. E pelo jeito, não é culpa do PT.
Paisagens cobertas de neve são meio hipnotizantes para um brazuca recém-chegado ao freezer e num trecho da estrada lá estava o tio olhando campos nevados e “comendo mosca” ao volante, ainda que moscas e mosquitos desapareçam nesta temperatura. “Deu fezes” lá na frente — um cara se perdeu e foi parar no pasto — e todo mundo meteu a botina no freio. Reagi meio tarde, próximo do carro da frente, e entrou o ABS evitando o travamento de rodas. Não gosto de usar o ABS, mas não havia distância segura do carro à frente para refazer a frenagem e controlar o travamento “no pé”. Parei com o ABS, sem bater e serviu para alertar o óbvio: mesmo com pista “limpa” é muito comum alguém perder o rumo e sair rodando. Ou seja, respeitar regras básicas de segurança é ainda mais fundamental na neve: observar bem a pista e com antecedência, manter boa distância do carro da frente, estar sempre preparado para reagir rapidamente, e por aí vai.
E não se esquecer que neve é moleza, o pós-graduação mesmo se trata de gelo na pista. A neve derrete, vira água por pouco tempo e congela. E aí o bicho pega. Placas na estrada alertam que as pontes congelam antes da estrada. A razão é simples: estradas esfriam (ou perdem calor) apenas na sua superfície superior. Já as pontes esfriam muito rapidamente, pois seu contato com o ar gelado é muito maior: por cima, por baixo, pelas laterais…
E no gelo, a aderência é zero, nenhuma. Já vi uma picape parar numa ponte congelada, ir escorregando até encostar no guard-rail e aí o motorista desceu. Desceu até sentar no chão numa cena de pastelão, simplesmente por não conseguir parar em pé no gelo.
Mas, eu estava atrás do cara, que simplesmente liberou a pista congelada escorregando para a lateral da ponte. Era minha vez. Fiquei quieto, deixei a pista liberar bem lá frente, depois da ponte, e aí acelerei. Pense em aquaplanagem. O carro vai ficar sem contato com a pista por uma boa distância e você não poderá fazer nada. Aí o jeito é acelerar, mirando onde você quer sair, e quando se está sobre o gelo não se faz nada. Mantém pouca aceleração, não freia, não vira o volante e espera. Só vai reagir depois do trecho congelado, quando as rodas encontrarem a pista novamente.
E aí vale o que diz sobre observar a pista lá na frente. Com o tempo, a gente começa a reconhecer um trecho congelado, pelo brilho estranho no asfalto ou cimento. Aí aponta o carro para onde quer sair, prende a respiração e deixa deslizar. Nas curvas é mais complicado, mas não deixa de ser divertido. Principalmente quando tudo dá certo.
Rodei mais de 500 km com o Versa e foi tudo bem. A maior bobeada minha ocorreu com outro carro, um Ford Flex, uma wagon grandalhona que parece um MINI Countryman bombado, com 5,13 m de comprimento e 2.086 kg de peso. Emprestada pelo meu primo, desci de Ann Arbor para Toledo, no estado vizinho de Ohio, em companhia do Pancho, um mexicano que mora nos EUA, mas tem a justa fama de ser incompreensível: parece que ele não aprendeu inglês e esqueceu o espanhol.
Com a Ford Flex pesadona e 4×4, descemos bem os 100 quilômetros num dia muito louco. Pela estrada alternavam trechos de sol muito claro e ardido com tempestades de neve cheias de vento. O vento, além de fazer a neve dançar em todas as direções pela estrada, ainda levanta o que está no acostamento. Parece que você está num liquidificador cheio de farofa. Mesmo assim, fomos bem, conversando bastante com o Pancho. Não sei bem o assunto, pois eu entendia cerca de 5% do que ele falava.
Na volta, a cerca de 20 quilômetros de Ann Arbor, na pista contrária um caminhão deu um “L” embaixo de uma ponte. Comentei que “ainda bem que foi do outro lado. Quando era importante, Pancho se fazia entender:
— Ferrou. Quando bate de um lado, bate do outro também.
E a profecia se cumpriu. Uns cinco quilômetros à frente nossa pista também parou. Pancho pergunta, “como estamos de combustível?”.
— Mal — respondo — um pouco menos de ¼ (e com um V-6 3,5 não muito econômico e o carro cheio de carga).
Bobeei feio. Não se anda com menos de meio tanque com um clima destes. O recomendável é sempre manter acima de ¾. Se a gasolina acaba, o motor pára e você fica sem aquecimento no carro, numa estrada gelada e cheia de vento. Segundo a meteorologia, a sensação térmica, com os –20 °C e o vento, chegava aos –35 °C.
— Pancho, vamos cair fora daqui. Não tem umas estradinhas laterais que vão paralelas à rodovia?
— Sim, mas a saída é a uns 500 metros lá na frente.
Santo 4×4. Puxei a peruona para o acostamento e fui amassando neve até cair fora da estrada principal. Chegamos em Ann Arbor em 20 minutos, derrapando em estradinhas laterais bem cheias de neve, graças ao Pancho que indicava o caminho e me olhava com cara de “brasileño de mierda”.
Fomos direto para o posto abastecer.
Nota do redator já descongelado: Fiz belas fotos de várias situações, mas o cartão de memória de uma das minhas máquinas simplesmente “deu pau” no meio do frio, apagando todas as fotos. Depois de deixar a máquina aquecer, o cartão voltou à vida, mas as fotos sumiram. Sobraram só algumas poucas que fiz com a outra máquina. Lamento mais que vocês.
JS
Fotos: autor