O CVT — Continuously Variable Transmission, ou transmissão continuamente variável, tem em sua história um pé na Holanda… para ser franco, os dois pés. Mas lembro que no Brasil transmissão é todo o sistema que leva movimento do motor às rodas — começando pela embreagem e chegando às semi-árvores de tração — por isso o termo adequado aqui, e nisso o Ae está certo, é câmbio continuamente variável.
Na realidade este conceito de câmbio automático vem de muito longe, com Leonardo da Vinci idealizando o seu primeiro mecanismo de variação continua de velocidade em 1490. A Daimler-Benz em 1886 protocolava uma patente de CVT com cinto de atrito e roldanas e o primeiro carro a utilizar esta patente não foi alemão e sim britânico, o Clyno em 1923.
Na verdade e com todos os méritos, o CVT que realmente inaugurou a sua aparição em série para o mundo do automóvel foi o DAF 600 Variomatic projetado pelo holandês Hub van Doorne.
Hub foi co-fundador da “Van Doorne’s Automobielfabriek N.V. Eindhoven Holland”, a originadora da DAF na Holanda.
A empresa dos irmãos Hub e Wim van Doorne já produzia caminhões na Holanda desde 1949 com uma imagem criativa e inovadora. Foi praticamente a primeira a aplicar turbocompressor em motores Diesel inclusive com um modelo de intercooler, interresfriador de ar.
Em 1955 Hub fazia os primeiros desenhos de um câmbio automático baseado em polias e correias. Várias tentativas foram feitas até chegar a um modelo realmente funcional que ele instalou em um veiculo protótipo de quatro lugares. O veículo DAF definitivo foi apresentado no salão holandês AutoRAI, onde obteve grande aceitação e 4.000 pedidos.
E começava em 1958 a produção em série do DAF 600
O DAF 600 com estrutura monobloco, tinha linhas simples com os faróis destacados em relação ao capô, cabine ampla com grande área envidraçada e aletas nos pára-lamas traseiros ao estilo ” rabo-de-peixe”. O interior bem espartano trazia bancos dianteiros individuais, volante de direção de tamanho avantajado e um instrumento múltiplo integrado ao painel.
O carro media 3.600 mm de comprimento, 1.440 mm de largura e 1.388 mm de altura. Sua distância entre eixos era bem pequena, 2.050 mm, ressaltando principalmente o balanço traseiro. O DAF 600 era bem leve, 630 kg.
O motor dianteiro de 590 cm³ arrefecido a ar de dois cilindros horizontais opostos tinha 22 cv de potência a 4.000 rpm e torque de 4,6 m·kgf a 2.500 rpm, dando ao veículo uma agilidade sofrível, com velocidade máxima de 90 km/h e levava incríveis 35 segundos para chegar lá partindo da imobilidade.
Sob o banco traseiro estava a transmissão Variomatic com dois conjuntos, um para cada roda traseira, dispensando o diferencial. O conjunto era formado por duas polias e duas correias dentadas de borracha lonada. Cada polia tinha uma forma de tambor com um sulco no centro onde se alojava a correia. Dependente da rotação e do vácuo do coletor de admissão, massas centrifugas dentro do tambor faziam as laterais de cada polia se aproximar ou se afastar, o que produzia o efeito de variação do diâmetro de contato efetivo da correia. Esta combinação de variação dos diâmetros das polias dianteiras e traseiras conseguia o efeito da mudança contínua de relação de transmissão.
Com isso, em vez de pares de engrenagens com relações definidas, o sistema fazia variar a relação de transmissão continuamente e de maneira gradual, com os extremos definidos pelo diâmetro máximo e mínimo do ponto de contato das polias.
Enquanto o motorista acelerava, a rotação do motor ficava praticamente constante durante o aumento de velocidade do veículo. Esta característica aproveitava melhor a faixa de maior torque do motor e de menor consumo específico, com tendência à economizar combustível. Em contrapartida, a eficiência de transmissão era baixa ao redor de 75%, com muitas perdas por atrito dando efeito contrário. Como referência, um câmbio manual convencional tem um rendimento mecânico ao redor de 94%. Este baixo rendimento causava geração de calor considerável com desgaste prematuro de seus componentes, principalmente as correias. A embreagem era automática do tipo centrífugo, dispensando o pedal da esquerda.
Como cada roda recebia torque por um conjunto individual, o efeito era similar ao de um diferencial autobloqueante, pois no caso de patinagem de uma das rodas a outra dava conta do recado, mantendo tração.
O cardã era em tubo de alumínio com baixa inércia e com acopladores amortecidos com juntas de borracha estruturada.
A faixa de relações era 3,98, com a mais curta 15,44:1 e a mais longa, 3,87:1, equivalente um câmbio manual de 4 ou 5 marchas da época, com as relações continuamente variáveis
A marcha à ré era engatada por uma alavanca no assoalho do veículo que acionava um jogo de engrenagens à parte que invertia a rotação de entrada da transmissão. Aliás, a marcha à ré tinha uma característica muito interessante, pois tinha também variação continua de relação. Com isso era possível andar de marcha a ré tão rápido quanto para a frente.
Vários outros veículos DAF foram produzidos e entre eles podemos destacar o Daffodil em 1966 também com o câmbio Variomatic e o motor boxer de 2 cilindros arrefecido a ar, porem com a cilindrada aumentada para 746 cm³ e potência de 30 cv.
E veio também o DAF 44 com o motor 2-cilindros boxer aumentado para 844 cm³ e potência de 40 cv.
Creio que o mais famoso DAF foi o modelo 55 que tinha como novidade o motor Renault de 4 cilindros em linha arrefecido a água, com 1.108 cm³ e 50 cv. Chegava a 140 km/h!
Qualquer semelhança deste motor Renault com o do nosso velho conhecido Corcel I não é mera coincidência… O primeiro Corcel era de 1.289 cm³ (73 x 77 mm), enquanto o motor 1.108-cm³ usado no DAF 55 era 70 x 72 mm — o mesmo motor com cilindradas diferentes.
A DAF foi comprada pela sueca Volvo em 1975 e as patentes do câmbio Variomatic ficaram em poder da empresa Van Doorne Transmissie, que mais tarde foi absorvida pela Bosch na Alemanha.
A Bosch desenvolveu correias segmentadas metálicas no lugar das de borracha lonadas e este foi o pulo do gato para a durabilidade do sistema. A Bosch teve a primazia de ser a única empresa a fabricar correias metálicas, tendo produzido mais de 10 milhões de unidades até 2007. Este conceito continua a ser utilizado amplamente na indústria de automóveis no mundo.
No Brasil, Honda Fit, Nissan Sentra (chamado Xtronic) e Audi A4 (Multitronic), têm esse tipo de câmbio em versões atualizadas, muito agradáveis de usar. O controle das polias é eletrônico e até criaram-se pontos de parada delas, simulando marchas fixas nos dois modelos japoneses. O único problema é haver, pelo menos por enquanto, limite do torque que conseguem transmitir, 35 m·kgf.
Lembro-me do velho ditado “nada se cria tudo se copia”.
Na verdade prefiro dizer que “poucos criam e a maioria copia”, homenageando aqueles poucos gênios que fizeram a diferença no mundo, como foi o Hub van Doorne.
CM