“A própria máquina quanto mais se aperfeiçoa mais se apaga e desaparece atrás de sua função. Parece que todo esforço industrial do homem, todos os cálculos, todas as noites de vigília sobre as plantas, conduzem apenas à simplicidade, como se fosse necessária a experiência de várias gerações para libertar a curva de uma coluna, de uma quilha ou de uma fuselagem de avião até lhe dar a pureza elementar da curva de um seio ou de um ombro. Parece que o trabalho dos engenheiros, dos desenhistas e dos calculistas dos escritórios de projetos é, apenas, realizar da maneira mais suave essa juntura de peças, equilibrar esta asa até que não se note mais nada, até que não haja mais uma asa ligada a uma fuselagem, e sim uma forma perfeitamente desenvolvida, libertada de sua ganga, uma espécie de conjunto espontâneo, misteriosamente ligado e da mesma qualidade de um poema. Parece que a perfeição é atingida não no instante em que não há mais nada a acrescentar à máquina e sim quando não há mais nada a suprimir. Ao termo de sua evolução a máquina se dissimula”
Terres des Hommes – Antoine de Saint-Exupéry
Essa descrição poético-técnica se encaixa perfeitamente na concepção do Falco, um avião sem igual.
James Gilbert (1935-2006), piloto e editor por 28 anos da revista britânica Pilot, disse que depois de pilotar um Falco — falcão em italiano — ele se sentia um tolo por ter passado tantos anos voando em aviões leves e não saber que eles poderiam se comportar daquela forma.
Juntamos a isso a opinião de Fernando Luiz Machado de Almeida, a primeira pessoa a assinar um teste de aeronave em revista brasileira. Sobre o Falco F8L, ele era taxativo, dizendo que além do Falco ser o mais belo avião leve jamais projetado, era também o de mais perfeito comportamento em vôo, considerando todos os tipos de manobras que podem ser feitas.
E o que isso tudo quer dizer?
Muita coisa.
Almeida, falecido em 2003, era engenheiro aeronáutico formado pelo ITA. Trabalhou na Simca, Chrysler, Ford e Volkswagen Caminhões. Sua amizade com José Luiz Vieira o levou a escrever para a Motor 3, sendo o pioneiro em testes de aeronaves no Brasil. Escrevia seus maravilhosos textos para todos, não apenas para quem era entusiasta de aviões. Ninguém antes dele fez, no Brasil, o trabalho de voar pilotando e escrever com o conhecimento de engenheiro e quase poeta.
O Falco, explicou ele, foi um dos muitos projetos do italiano Stelio Frati (1919–2010 ), engenheiro mecânico que se especializou em desenho de aviões, que trabalhando com pura paixão somada a conhecimento gerou um avião que é uma obra-prima de beleza.
Frati nasceu em Milão, e com 21 anos era campeão de aeromodelismo. Sem radiocontrole, que não existia ainda, um planador que ele fez voou duas horas e meia, medição não oficial, então não há registro desse recorde.
Sempre desenhou aviões muito rápidos para as potências desenvolvidas por seus motores, denotando a aerodinâmica apurada. O Falco voou pela primeira vez em 15 de junho de 1955, com 90 hp, e teve quatro séries, o mais potente deles os série IV, com hélice de passo variável, 160 hp, de fabricação Laverda, a mesma das motos. Os primeiros foram feitos pela Aviamilano e depois, Aeromere.
Foram 101 unidades fabricadas na Itália até 1968, quando ficou mais forte a concorrência com os aviões de construção totalmente metálica, somando-se ao fato de aviões de madeira requererem marceneiros de alta experiência para fazer quase todo o avião, o que significava altos custos.
Essa estrutura é toda em madeira, sem nenhuma invenção mirabolante. São cavernas, peças com formato de aros elaborados, ligados entre si por reforços longitudinais, cobertos em contraplacado ou compensado. Da dianteira até atrás da cabine um corpo, presa ao resto da fuselagem com parafusos. Berço de motor e reforços de metal, além de elementos de ligação de pequeno tamanho, que seriam quase impossíveis de serem feitos com a madeira, são de aço ou alumínio, dependendo do local. Superfícies de comando, ailerões e flapes, tiveram construção de madeira ou toda de alumínio, dependendo da versão. Asa também toda em madeira, uma longarina principal estrutural e uma secundária onde se fixam os comandos aerodinâmicos. O revestimento dessa estrutura é em compensado ou contraplacado. O efeito é de uma caixa com reforços, muito rígida e nada pesada.
Essa madeira do revestimento é recoberta com tela de Dacron, um dos nomes comerciais do filme plástico PET, o mesmo das nossas famigeradas garrafas descartáveis, impregnada com dope, o nome simplificado da laca nitrocelulose, polida, pintada e novamente coberta com outra camada pintada e polida, até ficar espelhada, e sem protuberâncias. Protege a madeira e permite acabamento bastante liso, algo que é ponto-chave para uma aerodinâmica sempre elogiada.
O trem de pouso é retrátil, triciclo, com o principal do tipo trailing link, uma perna com articulação como a perna humana, joelho, e amortecedor, desenho que permite pousos bem absorvidos. Mesmo conceito de um F-18, que opera em porta-aviões, por exemplo. Tem operação elétrica e manual para segurança em caso de falha elétrica.
Para os ocupantes, dois lugares lado a lado, com espaço para um pequeno banco montado no bagageiro, atrás, para um eventual passageiro em emergências. Manche em vez de volante, muito bom para manobras acrobáticas, que são facilitadas pela ausência de tanques nas asas, menos massa afastada do eixo longitudinal do avião, menor momento polar de inércia nesse eixo.
Algumas características de vôo, segundo os vários testes que foram feitos por jornalistas-pilotos:
Quando entra em curvas levanta levemente o nariz, baixando quando sai delas, automaticamente, uma perfeição.
Os stall strakes, pequenas abas de seção triangular montadas no bordo de ataque das asas, perto da junção com a fuselagem, garantem início de perda de sustentação nessa área, sendo que os ailerões permanecem com atuação (autoridade) até o último instante antes do estol, que ocorre a 98 km/h.
Rola no eixo longitudinal a 120° por segundo, ou seja, em 3 segundos para completar a volta num tonneau ou num barrell roll (tunô barril), não requer quase nada de pedal para ficar reto, até um principiante faz.
No pouso, a reta final é feita a mansos 130 a 140 km/h, seguro e estável, mas demora a perder velocidade pela limpeza aerodinâmica, para tocar o solo a pouco menos de 100 km/h.
Depois das 101 unidades construídas na Itália, de 1955 a 1968, passou a ser feito nos Estados Unidos, agora sob a forma de kits pela Sequoia Aircraft, empresa americana de Alfred Scott , sediada em Richmond, estado da Virginia, após as empresas italianas que fabricaram o avião terem descontinuado sua produção.
A Sequoia comprou os direitos em início dos anos 1980, trabalhou dois anos para revisar todos os desenhos de Frati de forma que pudessem ser usadas por construtores amadores e fazer um manual fantástico de construção, revisado sempre que há informações importantes. São 277 desenhos, além do manual, vendidos inicialmente em 1981 por 400 dólares. São 1.500 horas de montagem para uma pessoa, trabalho árduo. Um construtor com certo conhecimento, trabalhando em horas vagas, demora de 5 a 6 anos para completar o trabalho.
Por isso, Alfred Scott decidiu fazer o avião em kits, com grandes partes já pré-fabricadas, mas mesmo assim, ainda há muito trabalho quando se compra esse conjunto, que custa hoje cerca de US$ 105.000 completo, inclusive instrumentos e motor. Para evitar o gasto pesado e permitir que se pague o avião em partes, inteligentemente a empresa vende conjuntos ou kits de peças, para que quem não pode ou não quer pagar de uma vez, vá comprando aos poucos e pagando de acordo com o ritmo da montagem. A seguir, estão alguns desenhos simplificados de alguns desses kits.
No meio tempo entre o final de produção e a venda dos direitos, Frati se dedicou a projetos de aviões metálicos, um deles sucessor direto do Falco, o SF-260, de que falaremos mais adiante.
Fernando de Almeida voou um Falco série III original em Oshkosh em 1983, justamente o avião de Alfred Scott, e detalhou muito bem o comportamento invejável deste pequeno avião. Esse avião foi fabricado em 1960, matrícula americana, prefixo N304SF. O piloto de provas da Sequoia era ex-RAF, e disse que o Falco é melhor de pilotar, em termos de equilíbrio e estabilidade, que um Spitfire, que ele conhecia bem.
A reedição do avião feito pela Sequoia, dentro das regras de aviação experimental, ramo criado e defendido com competência extrema pela EAA – Experimental Aircraft Association, também é primorosa. O site da empresa tem muito material sobre o Falco, e vale a muito gastar um tempo explorando-o. Pode ser feito o download de material precioso, absolutamente grátis, mas há também literatura sobre o avião e sobre Frati à venda, que descobri apenas nessa pesquisa e claro, já me fez gastar uma verba.
São um deleite para quem gosta de ao menos aprender muitos detalhes de como se constitui um avião dessa categoria. Vejam aqui o site da empresa.
O texto de Fernando de Almeida faz parte desse pacote à venda pela Sequoia, junto com os outros testes do avião, efetuados por outras revistas.
De tudo que foi dito, ficou a certeza da frase sempre lembrada por ele: “Todo avião bonito voa bem”, numa simples conclusão a respeito de aerodinâmica, significando que linhas limpas resultam em fluxo de ar comportado e respostas limpas e sem vícios na aeronave. Nesse ponto, melhor olhar em detalhes as fotos do Falco, e verificar que isso é visível facilmente. As linhas são todas concordantes, sem quebras entre asas e fuselagem, por exemplo.
Sempre é fácil seguir com os olhos e entender como Frati é um artista. Não há interrupções bruscas em nenhuma parte da aeronave. Isso se traduz em velocidade de cruzeiro muito alta para a potência, cerca de 250 km/h em cruzeiro econômico, com o motor de quatro cilindros horizontais opostos Lycoming O-320 de 150 hp. É muita coisa.
Lançado cinco anos depois, o avião mais popular dessa categoria, o Piper PA-28, ou Cherokee 140, com o mesmo motor, cruza economicamente a 200 km/h e não passa de 250 km/h de velocidade máxima. Ou seja, a máxima dele é a velocidade de viagem tranquila do Falco, que recebeu imediatamente o apelido de “Ferrari voador”, dada a nacionalidade e o desempenho.
Não fosse os números de velocidade, que são ótimos, há ainda a autonomia, algo muito importante em qualquer veículo, mas vital em aeronaves. O Falco pode chegar a cobrir 1.400 km voando com potência de cruzeiro, nos já mencionados 250 km/h. Não se fala em consumo em km/l ou litros por 100 km em aviação, mas apenas para se ter uma idéia da eficiência dessa forma do Falco, são mais de 11 km/l. São 117,3 litros (31 galões) de gasolina na fuselagem, um dos tanques logo atrás desse bagageiro, o outro, adiante do painel de instrumentos.
Para aumentar a adoração e a eficiência desse desenho quase perfeito, Luciano Nustrini alterou alguns pequenos detalhes, o mais notável o canopy (cobertura transparente da cabine) mais baixo, e com a mesma potência original, 150 hp, chegou a 370 km/h, um ganho de 68 km/h, já que o Falco original já é muito veloz, atingindo 302 km/h de velocidade máxima em vôo reto e horizontal.
O Falco mais histórico de todos foi o dele, que graças a essa carlinga, um super-acabamento de superfície e outros detalhes para reduzir o arrasto aerodinâmico, subia 10.000 pés em menos de sete minutos, a 1.500 pés/ minuto. Decolava em 190 metros e pousava em 200 metros, mesmo voando a 337 km/h em circuito de 25 km e atingindo máxima de 367 km/h, com 150 hp. Cruzava a 2.450 rpm com 315 km/h a 10.000 pés. O canopy que Nustrini idealizou para seu avião é hoje um opcional vendido pela Sequoia, que faz o Falco ficar ainda mais “invocado”, mas que limita o espaço para cabeça dos ocupantes em cerca de 5 cm.
Nustrini era o piloto de provas de Frati, foi sete vezes campeão italiano, uma mundial e uma vice, além de campeão europeu de acrobacia. Faleceu aos 70 anos de idade em 1999, juntamente com a esposa, no seu amado Falco, de prefixo I-ERNA, em uma queda no mar na Nova Zelândia, quando acompanhava uma regata de barcos. O acidente foi presenciado por pelo menos dois barcos, que tentaram em vão resgatar o casal, mas que se tornou impossível, pois a aeronave afundou quase imediatamente. Se aviões tem espírito, não poderia ser de outra forma, Falco e Nustrini juntos.
Hoje um dos cinco filhos de Luciano, Giovanni, também tem seu Falco, fabricado pela Sequoia, e mantém a empresa Falcomposite, que fabrica um Falco modernizado em materiais compósitos, o Furio, onde as dificuldades do trabalho com madeira foram suprimidas. Esse avião tem tanques também nas asas, para aumentar a autonomia, já que a empresa está na Nova Zelândia, e para quase qualquer lugar que se viaje o mar está no caminho. Melhor ter segurança extra.
Voltando ao Falco original, apesar de feito quase todo com estrutura de madeira, as cargas de manobras possíveis são altíssimas, 6 g positivos e 3 g negativos em uso normal, com as cargas em peso acrobático sendo 50% maiores, num tempo em que projetos eram feitos sem programas de computador para fazer análises e simulações de estruturas!
Essa diferença de mais de 50% de cargas em condição normal é o que permite uma agilidade e peso tão baixo nos comandos que leva a comparação com aviões militares muito mais modernos a ser feita. E isso é conseguido mesmo com pequena asa, com área de apenas 10 m² o que, para o peso máximo de 820 kg, dá uma carga alar de 82 kg/m², que não é pequena para essa categoria de aeronave, e só por esse número não permitiria supor uma agilidade tão grande.
O mais notável do projeto do Falco é a combinação de dimensões reduzidas, massa contida, desempenho obtido e equilíbrio geral, além de estrutura fortíssima. Um avião compacto de verdade, 6,5 metros de comprimento por 8 m de envergadura e 2,27 m de altura, leve, 550 kg vazio, mas com agilidade e estabilidade impressionantes.
As madeiras da estrutura e revestimento são o spruce Stika, árvore conífera perene que existe em toda a costa oeste da América do Norte, e o contraplacado, muito similar ao compensado de lâminas que conhecemos. Em inglês o nome dessa madeira em camadas é Finnish birch plywood, mas outras já foram usadas. No Brasil, por exemplo, um exemplar foi feito utilizando o freijó, 10 % mais resistente que o spruce, e por isso, mais resistente a acelerações da gravidade mais severas, apesar de também um pouco mais pesado. O compensado é curvado em vapor quente e colado na estrutura, e para isso é normalmente usado Araldite.
Esse avião brasileiro foi também testado por Fernando de Almeida, e é particularmente maravilhoso, com uma pintura de meu gosto. Se eu tivesse um, teria que copiar esse, pedindo licença ao proprietário, lógico.
Quando se pensa sobre tipos de madeiras e de adesivos que podem ser usados, e as habilidades necessárias para se trabalhar com esses materiais, fica mais fácil entender que aviões de madeira não são a coisa mais fácil do mundo para se construir, e entendemos facilmente o quanto pode ser mais fácil a vida de quem quer um avião desses e pode ter a opção de comprar os kits prontos.
E para terminar, o SF-260. Basicamente Frati transformou o Falco em um avião metálico, trabalhando para a Aviamilano, que com vendas e fusões, acabou sendo produzido pela SIAI-Marchetti, que usando o conhecimento e processos de uma empresa grande, desenvolveu uma versão militar de treinamento e ataque ao solo, e hoje é ainda fabricado, mas pela Alenia-Aermacchi.
A potência é de 260 hp, daí a designação, e um desempenho superior ao do Falco, com velocidade máxima de 440 km/h e velocidade de cruzeiro de 330 km/h, além de um peso máximo de decolagem maior, 1.200 kg. Tem tanques adicionais nas pontas das asas.
Alguns vídeos que mostram a capacidade de manobra do SF260, estão no site do Air Combat USA.
Como outras máquinas que nasceram de projetos muito bons, o Falco permanece mais do que vivo e forte, depois de quase sessenta anos de seu primeiro vôo, e nos faz entender que a simplicidade e a aerodinâmica eficientes são sempre a melhor solução para obter resultados ótimos quando se trata de aeronaves.
JJ