O dia 24 de agosto (hoje), data do suicídio do então Presidente Getúlio Vargas ocorrido há 60 anos (1954), além das marcas e das conclusões que deixou — a gestão do país devia ser mais para empresa que para fazenda — no campo da implantação da indústria automobilística representou um atraso. Getúlio, desenvolvimentista — negociara com os EUA a construção da siderúrgica de Volta Redonda, da Fábrica Nacional de Motores, criou a Petrobrás e seu monopólio, e o então BNDE para financiar projetos — pensava em ter indústrias de automóveis no Brasil, algo superior à simplória montagem por aqui praticada.
Implantou comissão para traçar as primeiras linhas e fazer viagem precursora para expor vantagens e ouvir opiniões, e baixou duas normas para iniciar o processo: Aviso 288 da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito, precursora do Banco Central), autorizando importações apenas de veículos sem as peças similares aqui produzidas, e o Aviso 311 restringindo a importação aos totalmente desmontados. Na prática sacudiu o setor, pois exigia operação complexa, incluindo soldas, alinhamento da carroceria, pintura, montagem total. Um quase fazer o carro.
Sondagens houve: francesa Simca, inglesa Standard, alemã Borgward, mas o país, sem vivência com o assunto, não sabia formalizar os negócios. Mais perto de acerto foi a iniciativa da Kaiser Motors, dona da Willys-Overland.
Como foi
A Willys estava no Brasil, representada desde as primeiras horas da motorização através de Schill & Co, no Rio e em São Paulo — das unidades importadas, uma, Overland 1906, ainda remanesce no lacrado Museu Nacional do Automóvel, em Brasília —, e posteriormente por Alfredo Carneiro e Cia., em São Paulo. Entretanto, a Segunda Guerra Mundial, terminada há menos de década, mudara todos os desejos e referências. Todos os países queriam ter sua própria indústria.
Aqui, os negócios de representar a Willys findaram-se durante o conflito — afinal foram três anos sem receber único produto ou peças de reposição, difícil sobreviver. No após a Willys nomeara jovem executivo como seu representante. Era Euclydes Gudole Aranha, de história peculiar. Bem conhecia os EUA pois seu pai, Oswaldo Aranha, fora o embaixador brasileiro no país. Culto, fino, bem informado, agradável de trato, percorrera com a família todo o país. Com a adesão do Brasil ao esforço de guerra ao lado dos Aliados, Euclydes Aranha fez o pouco praticado, num país de forças armadas sem filhos da elite e do capital: voluntariou-se. E foi o intérprete, a ponte de ligação no comando, entre os generais estadunidenses e os brasileiros.
Encantou-se, como todos, com o bicho Jeep, animal novo na mesmice dos veículos de então, viu-o como ideal ao Brasil sem estradas, necessitando ferramenta de trabalhos gerais. Usou contatos, crédito, cadastro pessoal, e conseguiu a representação, formalizada em sociedade sob o nome Gastal.
Junto a Willys nomeara um gerente para ligar a representada a representantes. Planos grandes, os países subdesenvolvidos seriam o mercado natural à simpática ferramenta de trabalho. A fabricante sabia das dificuldades a enfrentar ante a necessidade do mercado, a baixíssima relação entre habitantes e veículos, e a baixa renda, fatores distantes da realidade onde operava. Mas era ato de sobrevivência ir para outros países e mercado, pois nos EUA as três grandes dominavam quase 90% das vendas. Internacionalizar-se era o único caminho.
A Gastal iniciou montar os Jeeps, versão civil, recebidos semi-montados em caixote. A princípio com integralidade em peças importadas. Após, pequena agregação de componentes. Logo as instalações se acanharam e alugaram grande galpão num subúrbio carioca, às margens da ferrovia, onde chegavam os caixotes após curta viagem a partir do porto do Rio de Janeiro.
Não havia capacidade de montagem ou atendimento. O mercado era maior. Para atendê-lo os representantes da Gastal se uniram, assumiram cotas e aos 26 de abril de 1952 se transformaram em Willys-Overland Motores do Brasil S/A, e mudaram a operação para São Bernardo do Campo, SP. Passavam a receber, agregar partes nacionais, montar, distribuir os veículos aos sete sócios nacionais.
Somaram-se vários fatores: as necessidades nacionais atendidas pelo Jeep, hábil em fazer sua própria estrada, trabalho de trator, tocar serras, engenhos, desdobrar madeiras …; a surpresa da surreal Kaiser Motors, única criada no pós-guerra; e por hábil manobra financeira comprara a rentável Willys-Overland; e a consciência de Henry Kaiser, o fundador, de o futuro estar além-mar, na América do Sul, território carente de motorização.
Em meados de 1954, Kaiser acatou provocação de amigo e resolveu vir à parte sul do continente, mandando apontar a frente de seu avião para Rio, Buenos Aires, Lima, Bogotá.
No Rio de Janeiro teve jantar na ABI, Associação Brasileira de Imprensa, onde falou de seu projeto de dividir a empresa norte-americana em duas e transplantar uma das metades para o Brasil. Num encontro com o Presidente Vargas prometeu produzir 50 mil Jeeps por ano, com imediatos 30% de peças nacionais — 50% de nacionalização — e, em delírio, transformá-lo em item de exportação. Era a primeira proposta concreta e factível que Getúlio ouvia. Combinaram fechar o negócio dia 24 de agosto.
Em Buenos Aires cedeu ao canto de sereia do Tenente-Brigadeiro Juan Domingo Perón — a Argentina desenvolvia projeto de atração de indústrias. Entesourada, ficava sócia dos empreendimentos. Após, decidiu apenas por pequenas linhas de montagem em Lima e Bogotá.
Dia 24, quando retornou, seu piloto William Max Pearce, engenheiro, combatente na Guerra da Coréia, pousou o avião no aeroporto Santos-Dumont. Nada entenderam. A cidade estava parada, a via beira- mar, em frente à modesta casa residencial chamada Palácio do Catete, estava absolutamente cheia de gente, intransitável, sem ligação entre as zonas norte e sul. O jovem Aranha não estava no aeroporto e sabendo do suicídio de Vargas entenderam, nada aconteceria em curto prazo. A oportunidade de tocar o negócio com outra perspectiva seria adiada.
Meses depois Edgar Kaiser, um dos dois herdeiros do conglomerado de empresas Kaiser, veio ao Brasil e dinamizou o negócio, virou sócio com quase 50%, mudou a razão social para Willys-Overland do Brasil, mandou ampliar as modestas instalações de São Bernardo do Campo, SP.
A produção no Brasil indicaria quase 5.500 Jeeps naquele 1954, cumprindo a promessa de instigar a produção de peças nacionais a 30% do conteúdo do produto. Cairia para 1.620 no ano seguinte, com a atualização do modelo, exigindo grandes mudanças.
Depois é história conhecida: enquadrou-se na legislação baixada dois anos após, no governo JK, criativa, inventiva, maior leque de produtos no mercado nacional, adquiriu empresas do ramo, capazes de fazer transmissões, foi a primeira a vazar um motor a gasolina no Brasil, em 1958 — Argentina o fez em 1956 — liderou o mercado até 1964.
Apesar de lucrativa e do capital ser nacionalizado, a Kaiser detinha quase a metade da Willys, representada por equipamentos, direitos, cessão de tecnologia. E esta metade das ações, mais as da Régie Nationale des Usines Renault, em 1967 Ford adquiriu para adonar-se do poder de condução da Willys, com mais produtos, instalações e revendedores. Como dito na época, coisa esquisita: o ovo comprou a galinha.
Fez grande negócio. Só a fundição recebida da Willys, bem mais moderna que a sua, pagaria a conta, e ainda recebeu grandes áreas de terreno e a segunda maior rede de concessionários — todos sócios da Willys.
Simca e Borgward voltaram no governo JK e se inscreveram no retomado programa de industrialização, conduzido por seu formulador, o então comandante Lúcio Meira. Simca ficou, foi referência de criatividade. Borgward teve projeto aprovado, mas desistiu. Standard mudou a direção e fez melhor negócio: montou fábrica de autopeças.
RN