Não é curioso como os pequenos jipes Tupi, insólito como o Joagar, ciclotímico na linha do Centauro, ou envolto em bruma do tempo como o Pinar, todas corajosas e pioneiras iniciativas particulares locais para formar uma indústria automobilística no Brasil. Ao contrário, diferenciando-se destas corajosas tentativas, foi produto efetivado em algumas centenas, no amanhecer da implantação da indústria da mobilidade em nosso país.
Entretanto, é de poucos conhecido e identificado como carro nacional. Eventualmente tratado como mera referência, dele não se sabia, ou sequer se imaginou haver alguma unidade preservada e restaurada como em seus dias de glória. Mas existe, surpreendeu colecionadores quando apareceu no “Carro do Brasil”, pioneiro e corajoso encontro de veículos nacionais realizado em 2007 na Capital Federal.
Foi didática presença ao público, contrastando sua pintura cinza contra o alvo prédio do Museu Nacional da República. Conhecia? É exemplar de station wagon Volvo modelo PV445 (foto de abertura), construído pela Carbrasa – Carrocerias Brasileiras S.A., e vendido pela Volvo do Brasil Ltda entre 1957 e 1958. Atualizado, portava característica própria, personalista, embora pouco avaliada pelos compradores da época: era a primeira intervenção da mão brasileira em estilo ao tempo inicial da industrialização.
A praxe industrial de então era receber os produtos estrangeiros chegados em peças, ausentes os 104 grupos integrantes da Lista das Exclusões baixada pelo Aviso 288 da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito, autoridade monetária antecessora do Banco Central do Brasil), em 1953.
Pela legislação, criando o momento mágico e os passos irreversíveis para implantar no Brasil a atividade de fazer autoveículos, as peças vinham em conjuntos — ausentes as aqui similarmente produzidas, as dos citados 104 grupos. E eram importados em classificação CKD, completely knocked-down, completamente desmontados. Aqui, nos galpões das filiais das indústrias, ou suas representantes, com mão de obra nacional, carrocerias eram formadas, soldadas, pintadas, agregadas peças nacionais para sua complementação. Processo simplório.
O índice de nacionalização atingia máximos 35%! Regra comum, os produtos aqui montados — Ford, GM, Chrysler, Nash, Studebaker, Fiat, Land Rover, outros mais…, eram em formas e linhas exatamente iguais à versão definida na origem. Todos, exceto a Volvo Carbrasa station.
Caminho
Por que uma station? Em 1956, logo após a instalação do governo JK e criação do Geia, o grupo executivo para a implantação da indústria automobilística encarregado de traçar política e regras para atrair fabricantes de veículos, sua fixação e desenvolvimento no Brasil, o primeiro passo foi atrair indústrias para os segmentos de transporte, de trabalho, ou seja, caminhões e utilitários, inclusive todo-terreno. O Brasil precisava se ligar por estradas ruins, ou abri-las com valentia e pára-choques, e transportar gentes e cargas.
Desde o fim da II Guerra Mundial era deficiente o suprimento de peças para manter a frota rodando. Afinal, o conflito foi um traço fundo no chão do século 20. Destruiu indústrias e empresas no cenário bélico. Fora dele, nos EUA, redefiniu a indústria, forçando o fechamento de muitas marcas. No pós-guerra sobraram apenas oito. Com um mercado interno a suprir, as peças de reposição não eram exportadas, e as de origem européia em sua maioria sequer eram produzidas.
A II Guerra Mundial transformou torneiros, fundidores e outros hábeis artífices em pequenos industriais fornecendo as peças que um Berliet, Steyr, e até as marcas americanas não veriam chegar aos portos. Nesta época, dois empresários cariocas, Mário Slerca e Gil Souza Ramos pela Volvo do Brasil Ltda., razão social da representação nacional da mais conhecida marca sueca, importavam e proviam assistência a automóveis PV444, caminhões e chassis para ônibus, motores para lanchas.
Em negócio paralelo, porém imbricado com a atividade, vestiam de ônibus os resistentes chassis, através outra empresa sob seu controle, a Carbrasa. Era boa e rentável atividade, provocando planos e ações expansionistas, como trazer para o Brasil um braço operacional da matriz Volvo. Recebiam sinalização positiva.
O jeito
Quando o governo JK — 1956-1961 —, traçou o caminho e sinalizou o começo com incentivo à produção de utilitários, tiveram a idéia de criar variante brasileira a um produto então recém-lançado na Suécia, o Volvo Duett. Nome auto-explicativo, era veículo tipo dois-em-um, para trabalho e mobilidade familiar, bem ao gosto e às necessidades de uma Europa ainda curando as cicatrizes da II Guerra Mundial.
Agiram rápido: encomendaram à Volvo unidades especiais em seu leque de produtos: chassis, estrutura mecânica e latas para a parte da frente, até a coluna B (central), para trás das portas dianteiras. Um automóvel sem a parte pós-portas. Queriam fazer uma station wagon aqui. E começariam da parte faltante. Não se tratava de cortar e emendar um sedã duas-portas, esticando o teto, criando espaço para cargas, mas de aproveitar opção oferecida pela matriz sueca, versão do automóvel PV444, monobloco, com chassi separado. O caminho era necessário.
As novas regras, para instigar a indústria de autopeças e de veículos, vedavam importações. Após o Aviso 288 então permitidas sem as peças similarmente produzidas aqui, montagem com mão de obra e componentes locais. Logo em seguida, vigindo a partir do início de 1954, o Aviso 311 estatuía, além da ausência de componentes, a importação apenas seria autorizada para veículos totalmente desmontados. Na prática, só quem tivesse estrutura industrial seria capaz de fazer a montagem — mais do que isso: alinhamento, solda, composição da carroceria, e pintar o produto final.
Para enquadrar-se na regra do Geia, era mandatório aumentar o percentual de nacionalização. Daí, interpretando o caminho legal sugerido pela legislação, a saída seria complementar o carro aqui. Mas, como fazer?
Nenhum dos tentativos distribuidores/neoindustriais cumpria tal processo. Para factibilizar seriam necessárias três ações:
– individualizar a base para o novo veículo
Isto a Volvo possuía, com o Duett, chassi de automóvel, reforçado, suspensão traseira modificada para resistir a trabalho, empregando feixes de molas semi-elípticas sobre eixo rígido. A motorização mantinha-se dianteira, com quatro cilindros em linha. Alimentado por carburador simples, fazia 40 cv a 4.000 rpm. Menor motor da marca, 1.414 cm³ e perfil operacional privilegiando torque para prestar o serviço da metade utilitária da Duett. Câmbio de três marchas, alavanca no piso, rodas traseiras motrizes.
– Segunda e terceira ações eram entrosadas: O que fazer e como?
Os empresários possuíam outro negócio bem rentável, a Carbras+Mar, fabricante de lanchas. E lá, um projetista de brilho, Joachim Kürster, alemão deslumbrado com os trópicos, após temporada em Salvador, mudou-se para o Rio de Janeiro, Capital Federal, onde havia praia e campo de trabalho. Criava avulsivamente tudo o que lhe pedissem. Barco, ônibus — e camionetas Volvo.
Kürster materializou a vontade da diretoria, sugerindo o projeto de tropicalização estética da futura station e, especialmente, o como fazer, a partir de entendimentos com o fac totum da empresa, um turinês chamado Giuseppe Siccardi. Nada de caríssimas prensas de estamparia, ou instalações físicas de porte, com piso apto a suportar a transmissão das muitas toneladas dos impactos das para moldar as partes de chapa — teto, laterais, tampa traseira, pára-choques… como se faz nas grandes indústrias.
Mas, no plano carioca, a moldagem das peças complementares era feita por método bem conhecido por Siccardi desde sua cidade, base para os pequenos e famosos carrozzieri, os criadores de carrocerias especiais, produzidas em séries menores: pequenas ferramentas, prensas e dobradeiras de acionamento manual e, até, cepos de madeira para servir de apoio contra as batidas de martelo moldando pequenas peças em chapas de aço, posteriormente emendadas por solda. Entre desenhar, dar factibilidade técnica, fazer, há um universo revolto.
Siccardi era o homem capaz de fazer esta viagem entre as pranchetas de desenho, os cálculos de estruturas metálicas, as máquinas operatrizes, a disponibilidade dos componentes específicos para o projeto, e ancorar no porto do produto final, e habilidade latina para harmonizar o desenho com a factibilidade.
Desde 1948, quando convidado a deixar a Itália para dar a diretriz técnica na Carbrasa, Siccardi — Turim, 19/04/1915–Rio, 19/12/1997 — técnico industrial, materializou o projeto dos empresários, aplicando-se a criar facilidades industriais para viabilizar os caminhões — fazendo parte das cabines — e as carrocerias de ônibus aqui encarroçadas sobre chassi Volvo.
O fazer
Processo apto a ser viabilizado, acordo entre empresas com os mesmos controladores, a Volvo do Brasil encomendou e a associada Carbrasa construiu. À época, apesar da pequenez do mercado consumidor, e da contada série, o público o identificava como Volvo Carbrasa, sintoma evidente da consciência da intervenção nacional.
Para uma noção, as importações haviam sido recém-fechadas, a produção local de 1957 indicava 9.500 Jeep Willys, o líder de mercado, pouco mais de 1.000 camionetas DKW Universal, de montagem iniciada pela Vemag após remover o de fazer Studebakers, cerca de milhar de Romi-Isetta e VW sedã 1200.
A sonhada e necessária indústria se implantava, entretanto a Oposição ao governo JK abriu uma brecha para combater o projeto de industrialização, estabelecendo volume em dólares, a ser comprados pelo valor de face — no mercado paralelo, então dito câmbio negro, valia quatro vezes mais. O rombo no projeto pretendia matar a industrialização no berço, permitindo trazer carros estrangeiros até 1.200 kg e baixo preço.
Foi a época de suecos Saab, dos checoslovacos Škoda, italianos Fiat e Alfa Romeo, dos alemães Borgward Isabella, Mercedes versões de base, americanos simplórios, importados em volume antes do encerramento da cota. Ainda assim, entre os poucos nacionais e os importados em pequena quantidade, o Volvo Carbrasa era atraente.
Pioneiro
Ficou surpreendentemente elegante, superando a versão original fornecedora da base, reconhecem até os livros suecos sobre a história da marca, contando o êxito da plataforma, a mesma desde 1946, a história de exportações, exibindo o Volvo da Carbrasa. Para o entusiasmado, personalista Siccardi, o Volvo 445 Carbrasa era mais que um veículo personalizado — no caso, sua unidade, uma das primeiras, era pintada em vermelho escuro, cor do Torino, seu time italiano de futebol. Materializava sua pregação, substanciava suas ações.
Em seu trabalho, à falta de uma cultura, ferramentas, fornecedores, criava soluções, peças, as máquinas para fazê-las, viabilizava caminhos para produtos num país sem infraestrutura ou conhecimento na específica matéria. E, lembra seu filho Roberto, engenheiro mecânico, insistia incessantemente, com visão prática, que uma indústria não podia depender de insumos e peças importadas — basicamente EUA, Inglaterra e, no caso, Suécia — de onde se trazia tudo, até itens simplórios como parafusos, arruelas, porcas, pregos, rebites… Siccardi viu o produto nascer ao final de 1955 e durar, em projetadas 320 unidades, até 1958.
Pouca Duração
Não saiu de produção por ter sido desprezado pelos compradores, mas por decisão da Volvo, na contramão das indústrias automobilísticas mundiais vindo para o Brasil. A definição legal de proteger o mercado interno e as marcas aqui aportadas para participar da criação da indústria automobilística nacional, definiu: quem aderisse ao projeto seria bem-vindo e protegido para aproveitar mercado inquantificado, mas projetadamente grande. Quem não viesse, seria barrado na porta do baile, pois a importações seriam fechadas.
Surpreendentemente, a marca sueca esqueceu das tratativas para vir ao Brasil, decidiu e desistiu. A decisão não era uma freada brusca, seca, mas uma marcha à ré. No cenário de tudo ou nada, a Volvo tomou a segunda opção, abrindo mão de participar do nascente mercado e desapareceu do mapa de vendas. Voltou vinte anos após, em condições inferiores, restringindo-se à industrialização de caminhões e chassis para ônibus no Paraná.
Sensibilidade
Com a sigla internacional de PV445, a operação consistia na Volvo do Brasil Ltda. encomendar à associada Carbrasa, na Av. Brasil, no bairro chamado Parada de Lucas, Rio de Janeiro, a feitura das alterações, gerando como produto final a station. A nota fiscal (em reprodução do documento exibido pelo sítio www.simca.com.br) mostra as duas situações — e um tempo saudoso, quando havia apenas um imposto, o de Consumo, altos, porém se comparados com os atuais eram reduzidos 15%.
Hoje, graças ao descontrole das contas do país a cada dia, com a devida colaboração de nossos dedicados parlamentares federais, os impostos se multiplicam em variedade e na média se aproximam à metade do valor dos veículos…
As poucas centenas não se limitaram a ser apenas a primeira intervenção brasileira de estilo em nascente fabricante. Muito mais, foram marco pioneiro de sensibilidade com as demandas do mercado, ao fazer laterais, teto e traseira seguindo conceito de estilo estadunidense, mais ao gosto dos compradores brasileiros da época, superior às linhas secas, sem charme visual, e apenas hígidas de assemelhada versão na matriz.
Surgiu, marcou-se e desapareceu, como o negócio da representada, por falta de fornecimento. A Carbrasa continuou construindo ônibus sobre outros chassis até deixar o negócio. Slerca faleceu em acidente, Kürster e Siccardi por idade. Gil Souza Ramos, longevo, nos deixou no final de 2013 registrando 99 voltas em torno do sol.
Ao final do negócio Volvo mudou-se do Rio de Janeiro para São Paulo, implantou a então maior rede de concessionárias Ford; foi generoso em conceder a seu filho Eduardo e sócios permissão para um sub-negócio sob o guarda-chuva da concessionária Souza Ramos, de modificar Corcel, Del Rey, fazer station wagon Maverick, transformar picapes de cabine simples em cabines duplas, usando as iniciais familiares.
A SR foi a maior e mais inovadora do setor e, com a reabertura dos portos no governo Collor, migrou, evoluiu para a implantação da marca Mitsubishi. Da operação carioca do pioneiro Gil Souza Ramos, até pouco anos antes de falecer, ainda andava em sua lancha Carbras+Mar Xaréu de 21 pés, de casco trincado, então engarajada no Iate Clube do Rio de Janeiro — hoje preservada na alinhada coleção de seus produtos que a família coleciona pontualmente.
Registro histórico baseado em fotos, testemunhos dos herdeiros, pois toda a documentação oficial — de toda a história e de todas as marcas —, os registros oficiais, desapareceram com a atrapalhada reforma administrativa do governo Collor. Volvo e Carbrasa não eram associadas da Anfavea, associação dos fabricantes de veículos, e seus dados de produção não constam dos arquivos da entidade.
Quase passaram desconhecidas estas informações, especialmente a quantidade produzida, não fora a Coluna Carro Etc, de Jason Vogel no carioca jornal O Globo. Escrevendo sobre o citado “Carro do Brasil”, encontro nacional de automóveis de fabricação brasileira, instigou contato dos irmãos Siccardi, engenheiros mecânicos, filhos do pioneiro Giuseppe, fornecendo informações.
A unidade exposta no “Carro do Brasil”, aqui preservada em foto, reeditou, 50 anos após, sua capacidade de surpreender. Por si é, com certeza, a melhor dentre as poucas remanescentes. Para o evento, atrevido em expor atos de coragem da indústria automobilística, um aval e de suas principais atrações. Para quem gosta de história e raridades, muito mais.
RN