São três os sistemas básicos que compõem o automóvel:
– Sistema que o movimenta
– Sistema que o freia
– Sistema que o direciona
Nesta matéria vamos focar o sistema que movimenta o automóvel, do qual fazem parte o motor, a transmissão e as rodas.
O motor transforma a energia potencial do combustível em trabalho, que é transferido às rodas através da transmissão.
Para que haja a interação entre a força de tração entre o pneu e o solo com as velocidades operacionais do veículo é que entra o processo de casamento do motor com a transmissão, o velho conhecido powertrain matching ou simplesmente PTM.
O primeiro ponto é garantir a força de tração em primeira marcha para o veiculo partir e subir rampas. A regra geral é que o veículo seja capaz de partir da imobilidade em uma rampa de 30% de inclinação, na condição de ordem de marcha com motorista e passageiro. Normalmente o processo é subjetivo levando-se em conta a modulação do pedal da embreagem e também a capacidade de garantir a força de tração sem que haja escorregamento excessivo do pneu com o solo por transferência de carga.
Veículos com distância entre eixos maiores e com balanços dianteiro e traseiro menores são melhores neste aspecto devido à sua melhor distribuição de massa. Os veículos com tração traseira normalmente levam vantagem aos com tração dianteira na facilidade de partir em rampas, porém os melhores são aqueles com tração nas quatro rodas por motivo óbvio. O torque de acoplamento do motor ao redor de 1.000 rpm é outro item relevante para facilitar a modulação da embreagem.
No processo subjetivo, se estabelecermos notas de 1 a 10 para o julgamento da facilidade de partir/subir rampas, a aprovação deste atributo deve receber nota mínima igual a oito para a sua aprovação.
Tudo que falamos para a primeira marcha vale também para a marcha à ré.
O segundo ponto é garantir a velocidade máxima estabelecida para o veiculo no plano. A regra é atingi-la em última marcha na rotação de potência máxima do motor menos 5%. Isso serve para o caso do trecho ser em leve descida ou houver vento de cauda, de modo a evitar a rotação de potência máxima seja ultrapassada.
Exemplificando, suponhamos que a rotação do pico de potência do motor seja 6.000 rpm. A velocidade máxima do veículo no plano deve ocorrer a 5.700 rpm ou seja, 6.000 – 5% = 6.000 – 300 = 5.700 rpm.
Com a primeira e a última marcha definidas, as outras serão escolhidas proporcionalmente com degraus sempre decrescentes.
Outra regra é que o degrau entre a primeira e a segunda marcha deve ser tal que na máxima rotação de regime do motor em primeira, ao se engatar a segunda, a queda se mantenha sempre acima da rotação de torque máximo do motor. A mesma regra vale também para as outras trocas, de 2ª para 3ª, 3ª para 4ª e assim por diante.
Outra possibilidade é adotar o critério de alongar mais a última marcha visando a economia de combustível, estabelecendo que a velocidade máxima do veiculo ocorra na penúltima marcha. Eu, particularmente, não gosto deste critério, pois diminui a faixa operacional de elasticidade do motor e na verdade ficamos com uma marcha a menos, principalmente para o uso urbano. Um câmbio de 5 marchas se torna um “4+E”.
Sei que o nosso pessoal do Ae aprecia câmbios “n+ E”, mas nesse caso trata-se de preferência pessoal minha.
Outro critério, porém abominável, é alongar mais as marchas para diminuir o ruído interno na cabine, o que no meu ponto de vista é despir um santo para vestir outro. O pacote acústico deve sempre ser desenvolvido após a definição do melhor PTM. Aqui entre nós, já vi este filme … ainda bem que no final o bom senso prevaleceu na maioria das vezes.
O balanço desempenho e economia de combustível deve ser sempre levado em máxima consideração. De nada adianta um veículo econômico que não tenha desempenho e vice-versa, andar muito e gastar muito combustível. A escolha deste balanço energético pode também ser influenciado pela categoria do veículo. Por exemplo, em automóveis esportivos que priorizam o desempenho o consumidor aceita que ele gaste um pouco mais de combustível, ao passo que para automóveis populares a economia de combustível é fundamental, principalmente em tráfego urbano.
Trabalhar com o motor ao redor de sua rotação de torque máximo é normalmente a sua condição mais econômica, ou seja, é a região ótima do que entra de combustível com relação ao trabalho gerado.
O mundo ideal acadêmico, sem o compromisso de custos, contempla veículos com excelente desempenho e também muito econômicos. No mundo real este compromisso é muito difícil de se conseguir, pois envolve, além de muita tecnologia, os custos normalmente altos de desenvolvimento.
Melhorar a eficiência do motor, por exemplo, requer sempre um grande investimento em soluções operacionais de engenharia e de manufatura, com custos que o consumidor nem sempre está disposto a pagar. Injeção direta de combustível, turboalimentação, coletor de admissão com duto variável em comprimento, comando variável em ângulo e curso de abertura das válvulas, virabrequim e comando roletados, ajustes de folgas para um mínimo etc.
Produzir transmissões mais eficientes significa também investimentos elevados em maquinas mais precisas e controle de qualidade mais apurado. Acabamento polido dos dentes das engrenagens, distância entre centros e paralelismo dos eixos primário e secundário com tolerâncias apertadas permitindo a utilização de óleo lubrificante menos viscoso e com menor atrito, e assim por diante.
O rendimento mecânico de um câmbio manual está em torno de 92% ou seja, do 100% de torque que entra no eixo primário 8% se perde por atrito e calor. Em câmbios otimizados este rendimento pode chegar a 98%.
Chegamos novamente ao tripé implacável de produzir veículos bons, bonitos e baratos para uma determinada categoria, o que é sempre muito difícil.
O powertrain matching nada mais é do que balancear a força de tração com a força resistiva resultando no melhor desempenho com o menor consumo de combustível, levando-se em consideração as curvas de torque, potência e consumo específico do motor, e as características do veículo, seu peso, sua área frontal, seu coeficiente de arrasto aerodinâmico, tamanho das rodas/pneus e relação de marchas do câmbio e do diferencial.
A capacidade de aceleração do automóvel depende da diferença entre a força de tração e as forças resistivas e da sua inércia, representada por sua massa equivalente.
Sempre que a força de tração se iguala com as forças resistivas o veículo está em equilíbrio e/ou em velocidade constante. Quando a força de tração é maior que a resistiva o veículo acelera e quando menor, acontece a desaceleração (aceleração negativa).
Outra regra geral para que haja coerência entre as variáveis que atuam no powertrain é mostrada na figura abaixo
O consumo de combustível declarado pelo fabricante é feito em dinamômetro de chassis e padronizado segundo normas específicas, por exemplo a EPA (Environment Protection Agency), que segue uma rota virtual representando o uso urbano e em estrada. É por esta razão que o valor declarado de consumo normalmente diverge do encontrado no mundo real, com outras condições de carga e velocidades .
O Brasil segue os mesmos, sob a denominação NBR 7024, embora recentemente tenha sido aplicado um fator de correção de 22% para o consumo urbano e de 29% para o rodoviário, visando aproximar o mais possível números de laboratório daqueles obtidos no mundo real.
Fica a lição da difícil interação das variáveis que agem no veículo para que o melhor compromisso de desempenho e consumo de combustível seja atendido… com o consumidor feliz!
CM
Material ilustrativo: acervo do autor, mscsoftware.com