Tudo começou na Califórnia. No fim dos anos 1950, Bruce Meyers juntava sua experiência em construir barcos a vela em resina poliéster reforçada com fibra de vidro com a sua vontade de fazer um veículo mais leve e ágil para as dunas de areia de seu estado para criar um dos mais democráticos desenhos clássicos da história do automóvel: o “Dune buggy” (Bugue de Dunas).
O seu Meyers Manx foi um sucesso imediato e absoluto: era muito mais ágil e divertido nas dunas que as pesadas caminhonetes e jipes usados até então por seus compatriotas nesse tipo de diversão praiana. Além disso, era extremamente barato, por ser uma simples carroceria aberta e sem portas em cima de um chassi rolante VW usado. Sem contar que o desenho, hoje clássico, é de uma beleza e pureza tão extrema que o tornou tanto atemporal quanto imortal.
Meyers não se preocupou em patentear sua criação, o que somado a facilidade de ser copiado em compósito de plástico e fibra de vidro (praticamente uma peça fazia o carro quase todo), formou uma imediata e enorme indústria de clones. Aqui no Brasil, como não poderia deixar de ser, com nosso imenso litoral, e nossa deliciosa vocação praiana, essa indústria proliferou sobremaneira. Por todo lado, variações de todo tipo sobre o tema apareceram, com mais ou menos sucesso, e até hoje existem empresas ativas como a Bugre (em Rio Bonito, no estado do Rio de Janeiro), a Selvagem (em Parnamirim, no Rio Grande do Norte) e a BRM (em São Paulo, SP).
Os bugues são carros fantásticos ao que se propõem: diversão pura. Sem nenhuma proteção climática, sem portas, são veículos para se sentir vento na cara, sol na cuca e mosquitos nos dentes. Seu desempenho é sempre ótimo, gerado por seu peso baixo, o que faz também deles coisas bem mais ágeis e agradáveis de dirigir na estrada ou fora dela. São também simples, baratos e praticamente inquebráveis. Podem não ser veículos excepcionais, mas são brinquedos deliciosos.
E tivemos por aqui uma variedade incrível de sabores de Bugues por aqui, principalmente até o fim da década de 90, quando o interesse dos brasileiros em criar carros brasileiros parece que desapareceu quase que por completo.
Em ordem cronológica:
Gurgel Ipanema (1966)
A marca Gurgel, única nacional a tentar se tornar uma fábrica de volume, nasceu aqui, com este original desenho de bugue. Pioneiro do gênero, como seria em seguida com o de jipes, João Augusto Conrado do Amaral Gurgel apareceu para o grande público com este carro.
O Ipanema tinha linhas diferentes do Manx, mais clássicas e baixas, que não sugeria rodas traseiras maiores como o carro de Bruce Meyers. Apesar de ser muito bonito, acabou por ficar mais agradável como jipe, quando virou, com várias alterações, o primeiro Xavante (veja terceiro post desta série)
Glaspac (1968)
Os ingleses fundadores da empresa paulista, famosa pela primeira réplica de Shelby Cobra nacional (veja o segundo post desta série), antes tinha se aventurado pela primeira vez na produção automotiva trazendo o Meyers Manx mkII para o Brasil.
Os ingleses diziam que foram autorizados por Bruce Meyers. Este diz não se lembrar disso. Mas o fato é que o Glaspac era praticamente idêntico ao Bugue original americano, e realmente começou esta indústria nacional.
Kadron (1970)
Um clássico brasileiro, o Kadron foi desenhado e desenvolvido por Anísio Campos. É um desenho original e diferente dos Manx e suas cópias usuais, com faróis integrados ao capô e um “santantônio” (arco de proteção em caso de capotagem) totalmente integrado ao desenho da carroceria, e não um tubão dobrado colocado depois como no Manx. Em outra ligação com a história do automóvel nacional, foi fabricado nas instalações da Puma, em São Paulo.
Como todo bugue que se preze, foi depois muito copiado: Menon e Swell são duas outras marcas baseadas no desenho original de Anísio Campos.
Bugre M150 (1974)
A Bugre carioca é uma empresa tradicionalíssima no setor, que sobreviveu até os dias de hoje. Começou em 1970, fazendo um bugue muito parecido com o Meyers Manx, e portanto de aparência clássica e agradável. Criou várias variações no tema durante sua longa vida, e chegou até a produzir um jipe, chamado FC15 (veja o terceiro post desta série).
Mas o mais interessante foi o M150, de desenho exclusivo. Desenvolvido na fábrica esculpindo-se blocos de gesso em tamanho natural, é um desenho original e bem agradável. Uma tentativa de se fazer um carro esporte, apesar do chassi VW ser inalterado, e sem perder seu DNA de bugue.
Selvagem (1975)
O Rio Grande do Norte é terra dos bugues de areia; passeios com ou sem emoção pelas dunas do estado são conhecidos mundialmente, e ser “bugueiro” é profissão regulamentada e com sindicato.
E desde 1975, a maioria dos carros usados nesta atividade é o Selvagem, produzido por Marcos José de Oliveira Neves desde 1974 na cidade de Parnamirim, na grande Natal. O Selvagem é mais caro que o normal, mas os bugueiros profissionais acreditam que sua qualidade compensa o maior preço, algo que mostra que para dunas, pouca coisa deve ser melhor.
Emis (1980)
O Emis poderia ser apenas mais um bugue, não fosse um acessório bem legal, oferecido como opcional: o teto rígido, com portas tipo asa de gaivota!
Mesmo se esquecendo do fato de que a falta de ventilação interna forçada provavelmente faria o interior virar uma estufa embaçadora de vidros em dias de chuva, ainda assim um teto rígido e portas melhoram muito a usabilidade do bugue no dia a dia. Quase dá para imaginar um bugue de rua, baixo, leve e com um motor fortinho, no uso diário. Quase…
A Emis, marca criada pelas inicias do seu criador, Eduardo Miranda Santos, chegou a fazer um carrinho urbano também, chamado Emis Art.
Fyber Dunas (1981)
Criado pelo cearense Rogério Farias, que depois seria famoso pela criação do jipe Troller (ver o post número 3 desta série), o Dunas merece um lugar aqui por um simples fato: era um bugue anfíbio!
A idéia era que o carro pudesse atravessar os rios e lagoas que existiam em meios as dunas de areia do estado. O carro contava com uma hélice na traseira para propulsão, e o esterçamento na água ficava a cargo das rodas dianteiras, como no seco. Propulsão e controle de direção eram idênticos aos do jipe anfíbio VW Schwimmwagen. Menos de 10 unidades foram fabricadas, tornando-o raríssimo.
Terral (1982)
Fabricado pela Fibrario, a mesma empresa dos irmãos Richter (Otto, Guilherme e Ado) que criou a réplica Dimo GT (veja o segundo post desta série), o Terral é um tipo diferente de bugue. O chassi foi bolado por Paulo Renha, um carioca que ficou famoso por introduzir um dos primeiros triciclos com mecânica VW no Brasil, além de criar o curioso picape Formigão. A carroceria, também original e exclusiva (e usando faróis quadrados do Chevette 1982), foi desenhada por Eddie Moyna.
O Terral era na verdade, uma cruza de bugue com carro esporte, um carrinho que é muito mais do que parece. Com apenas dois lugares, era pequeno, medindo 3.130 mm de comprimento e 1.970 mm de entreeixos, e baixíssimo. Também era muito leve, pesando apenas 480 kg com tanque e cárter cheios. Seu chassi não é de Fusca, e sim uma espinha dorsal com duplo “Y” (como no Lotus Elan), onde se monta a suspensão dianteira de Fusca, e a suspensão traseira independente própria, com longos braços tensores inferiores e molas helicoidais. É só olhar o carro por trás que se vê como esta diferença é crucial: ao contrário da maioria dos bugue com suspensão traseira de Fusca, onde as rodas ficam visivelmente inclinadas para fora do carro (câmber positivo), no Terral elas estão inclinadas para dentro, maravilhosa visualmente em câmber negativo.
O resultado é um barato e simples carro esporte, divertidíssimo para andar forte em estradas sinuosas. Pesando apenas 480 kg, qualquer motor faz disso um carro rápido, mesmo o VW 1600 original arrefecido a ar. Também o peso baixo faz com que os freios a disco de Brasília na frente (e tambores atrás) sejam mais que suficientes. E a estabilidade era divertidíssima: limites altos, e sobreesterço controlado quando estes limites são ultrapassados.
Até hoje um carrinho desses mexe com os desejos entusiastas. Com um VW ligeiramente preparado para algo em torno de 100 cv já daria trabalho a muito carro de estirpe por aí em uma estrada truncada. Pena que não foi o sucesso que merecia, talvez porque ninguém percebeu que era um bugue diferente debaixo de sua carroceria de plástico…
BRM M8 (1983)
O BRM é o mais popular e conhecido bugue paulista, desde 1973. O M8 é o mais longevo, desde 1983 em produção sem muitas alterações. Sim, este bugue com chassi próprio em chapa de aço revestida de resina com fibra de vidro continua em produção. E como não poderia deixar de ser num bugue paulistano, o carro na maioria das vezes é vendido com um reboque frontal para ser rebocado para a praia.
Cheda Selva (1986)
O bugue Cheda da Mariauto (de Mairiporã, SP), na versão Selva, é extremamente interessante e original. Uma cruza de jipe e bugue, usava inclusive um sistema de freio de estacionamento seletivo nas rodas traseiras parecido com o da Gurgel. Equipado com rodas e vão livre maiores, camburão de combustível extra e iluminação farta, era pronto para se aventurar longe fora do asfalto.
Interessante era também o estepe em cima do capô: estepe nunca fora até hoje grande preocupação dos projetistas de bugues; na maioria nem existe provisão para eles…
MAO