Quando criança assisti um filme sobre a guerra da Coréia que me fez maravilhado com as imagens aéreas. Chama-se “Raposas do Espaço”, um título nacional bem ruinzinho para o original americano “The Hunters” (os caçadores).
Agradecimento especial ao amigo de longa data, Fernando, por lembrar o nome do filme. Pesquisei por uma boa meia-hora na internet e não encontrei, e o Fernando matou a dúvida em uns 15 segundos, coisa de quem tem uma memória prodigiosa.
Foi nesse filme de 1958 que tomei conhecimento de forma mais perfeita possível para alguém tão longe dessa realidade, do que era um combate aéreo entre aviões propelidos a jato, sem as hélices, que na simplicidade da infância achamos ser algo antigo.
Esse filme não mostra apenas Sabres e MiG-15, mas foi minha referência por anos, e vale a pena ser visto. Um trailer está aqui nesse link.
São momentos mágicos esses da infância, onde aprendemos as novidades do mundo, que depois do tempo passado descobrimos que podem ou não ser muito diferentes da realidade.
No caso dos aviões, para mim sempre foram e serão algo encantador, mesmo não sendo usados sempre para a alegria de todos ao seu redor, como em guerras por exemplo.
Logo após a Segunda Guerra Mundial os entusiastas da aviação, políticos, militares e até o Papa, já sabiam que o próximo conflito veria combates aéreos entre aviões a jato. Os Messerschmitt Me-262 e Gloster Meteor tinham sido usados nesse conflito, mas não combatido entre si. Porém, encontrar um jato inimigo pilotando outro era inevitável em pouco tempo, já que a humanidade ainda não vive sem guerras, e os aviões com motores a pistão já eram superados para algumas atividades, o combate de perseguição sendo a principal, onde a velocidade é fator-chave.
Os dois aviões de nosso texto de hoje foram concebidos mesmo antes desse conflito terminar. O Sabre já estava nascendo em 1944, ano em que o conceito foi submetido à Força Aérea Americana pela North American Aviation, e foi sendo alterado em vários pontos após o final do conflito mundial, quando se obtiveram muitas informações provindas da Alemanha e seus projetistas e fabricantes de aviões.
O Sabre voou em 1º de outubro de 1947 pela primeira vez, e chegou a situação operacional em 1949, tendo sido produzido nos EUA, Canadá, Austrália, Itália e Japão, num total de 9.860 unidades, sendo empregado por 27 forças aéreas até a década de 1980.
O Mikoyan-Gurevich MiG-15, surgiu na mesma época do Sabre, tendo voado em 30 de dezembro de 1947, com a finalidade principal de ser uma caça de interceptação de bombardeiros. Seu motor é uma cópia modificada do Rolls-Royce Nene, do qual três unidades foram compradas pelos soviéticos, acompanhadas de desenhos de projeto, com consentimento do governo britânico, para uma licença de produção para a empresa fabricante de motores Klimov.
Uma história boa é sobre o que os russos fizeram ao visitar a fábrica da RR. Sem ter certeza que o negócio daria certo, eles se demoraram na área onde eram fabricadas as palhetas da turbina, cujo material não era dominado pela tecnologia russa. Os membros da comissão visitante calçavam sapatos som sola de borracha macia, para que cavacos do metal se prendessem facilmente, e lá eles pisaram firmemente e o máximo possível, para trazer o metal preso às solas. Deu certo, e antes mesmo dos motores chegarem à Rússia algumas semanas depois da visita, já se sabia qual era o material de sucesso empregado pelos britânicos.
Depois de anos, a Rolls-Royce tentaria receber uma grande quantia pelo negócio, mas caiu do cavalo, como era de se esperar ao se tratar com o comunismo.
No começo, os MiG não tinham sistemas de controle das superfícies aerodinâmicas, o leme, profundores, flapes, de comando hidráulicos. Era tudo por cabos, como aviões de motor a pistão. Ao longo de sua evolução os comandos hidráulicos foram adotados. O Sabre já nasceu com sistemas hidráulicos.
Começada a guerra da Coréia em 1950, ambas as metades do mundo, capitalistas e socialistas, enviaram suas forças para ajudar a cada uma das duas frentes de pensamento político-econômico do planeta (ao menos as duas mais propagandeadas), cada uma com suas armas voadoras a jato, e certamente, os soviéticos e norte-coreanos ficaram tão abismados quanto os americanos ao se depararem com o desempenho da arma do inimigo, dependendo da situação.
As dúvidas sobre qual era o real desempenho do avião soviético só começaram a ser sanadas pelos americanos dois meses após o final do conflito, quando em setembro de 1953 um piloto norte-coreano desertou para a Coréia do Sul com um MiG-15.
O avião foi transportado em um C-124 Globemaster para Kadena, em Okinawa, Japão, base aérea americana. Lá, pilotos de provas voaram o avião com marcas e insígnias da força aérea americana colocadas para evitar qualquer incidente, traçando seu envelope de vôo, um diagrama gráfico que mostra as relações entre velocidades, altitudes, fatores de carga na estrutura (em gravidades) e outros dados, todos plotados para serem entendidos os limites de operação segura de uma aeronave.
Dessa avaliação quantificou-se o que já se sabia na prática, mas sem detalhes numéricos. Um dos que fizeram esse trabalho foi o Coronel Charles “Chuck” Yeager, o primeiro homem a romper a barreira do som.
Há um vídeo mostrando alguns momentos dessas avaliações, que demora um pouco a carregar, nesse link.
Depois de concluído o trabalho, o avião foi considerado sem utilidade adicional, passando para a guarda do museu da USAF, localizado em Dayton, estado de Ohio, na base aérea desativada Wright-Paterson. Hoje, está exposto lá, com a pintura original norte-coreana, que foi refeita.
Algumas conclusões foram as seguintes.
As primeiras versões do Sabre, A e E, eram mais lentas acima de 30.000 pés (9.144 metros) do que o MiG-15, e, abaixo disso, a situação era inversa. Após a versão F do Sabre entrar em operação, mais 5.000 pés (1.524 m) de vantagem eram garantidos para este.
Para atingir 45.000 pés (13.716 m) , o MiG-15 levava nove minutos, contra treze do F-86. Nesse quesito, o peso manda, e a desvantagem era de cerca de duas toneladas a mais para o Sabre, com carga e combustível máximos.
O Sabre tinha peso total de decolagem de 8.234 kg com tanques extras, e o MiG-15 chegava a 6.105 kg, com essa diferença aparecendo claramente nas distâncias de decolagem, com 762 metros no avião soviético e 1.115 m no americano.
No tamanho, o Sabre é pouco maior, com 11,31 m para 10,08 m do MiG no comprimento, 11,44 m versus 11,06 m de envergadura e 4,49 m versus 3,40 m de altura.
Mas visualmente o maior volume do Sabre se dá por causa da configuração de tomada de ar com o duto de entrada passando por baixo da cabine, dando altura grande de fuselagem. No MiG-15, a cabine está dentro do duto de ar, que é dividido ao meio por esta. Além disso, as asas do Sabre estão enraizadas abaixo da fuselagem, e as do MiG-15 são a meia altura da fuselagem.
O MiG-15 levava 1.420 litros no tanque atrás da cabine, mesma posição do Sabre, que tinha tanque interno de 1.650 litros. As autonomias eram de 1.240 km no MiG e 2.454 km no Sabre equipado com tanques suplementares externos, condição mais comum de operações, com esses tanques externos sendo soltos no momento de combate para facilitar as manobras e diminuir arrasto aerodinâmico.
Os tetos de serviço eram díspares. Mesmo assim, o Sabre ia até 51.000 pés (15.554 m), e o MiG alcançava 55.000 pés (16.764 m), onde ocorria facilmente o embaçamento dos vidros, que só se dissipava ao baixar bastante a altitude, onde os Sabres rondavam. Versões posteriores do MiG-15 tiveram essa falha corrigida.
Subindo, o MiG-15 era também mais rápido, com 10.100 pés por minuto (3.078 m/min) de razão de subida, contra 7.400 (2.252 m/min) nas primeiras versões do Sabre, e depois 9.300 pés por minuto (2.834 m/min) na versão F. Mesmo a mais avançada versão do Sabre nunca teve razão de subida tão boa quanto à do MiG-15, provando de novo que a diferença de peso é fundamental.
A diferença de peso era muito grande a favor do avião do birô de projetos Mikoyan-Gurevich, em parte devido a uma estrutura bem mais leve que não era estado da arte, e tinha limitações de resistência. Precisava ganhar em velocidade e altitude, pois em manobras mais apertadas a vantagem do F-86 era notória, com acidentes ocorrendo com os MiG-15 apenas devido a curvas muito fechadas que provocavam a quebra de elementos estruturais, um deles o leme de direção, uma parte que é nitidamente desproporcional no desenho do avião.
Mesmo com raio de curva menor no avião soviético, os bons pilotos de Sabre forçavam os MiG-15 até que esses fossem danificados. Isso não é estorinha, foi a realidade de muitos encontros entre esses dois aviões sobre o teatro de guerra.
Há também o importante fato de que os americanos dispunham de macacões anti-G, que seguram a circulação nos membros do corpo do piloto em altas acelerações, enquanto que os norte-coreanos e soviéticos não os tinham. Dessa forma, as manobras mais fortes podiam resultar em desmaio do piloto do MiG-15 e perda de controle, e ao recuperar a consciência — se recuperasse — poderia ser muito tarde para colocar o avião sob seus comandos. Essa é a explicação que muitos julgam ser a mais verdadeira para as perdas de controle no MiG-15, e não falhas na estrutura.
Mesmo quando não ocorriam problemas de estrutura, o desenho de asa do MiG-15 podia levar a uma perda de sustentação (estol) rápida em curvas, provocando parafusos que demorando a serem revertidos, podiam se tornar parafusos chatos, sendo de difícil recuperação, podendo resultar na perda do avião. Isso era mais grave ainda no desenvolvimento, quando a melhor solução encontrada foi a adição de duas aletas verticais sobre as asas, chamadas de wing fence, ou cerca de asa. Esse componente direciona o ar para que ele atue com mais eficiência sobre a asa para melhorar o trabalho dos ailerons e flapes, nas bordas de trás, o bordo de fuga.
A certeza geral é que o MiG-15 é um avião mais difícil e de mais sensível pilotagem, por ter área de ailerons pequena em relação à área de asas e o peso total. A recuperação de estol difícil ou impossível pode ocorrer principalmente devido à posição alta dos profundores, que os faz ficar mergulhados na turbulência das asas, o que não gera um fluxo de ar direcionado e com velocidade suficiente para que o piloto possa recuperar o controle. É uma situação em que falta autoridade de profundor. Esse estol é conhecido em inglês como deep stall, ilustrado de forma simplificada na imagem abaixo.
Mesmo com vantagem de velocidade, a situação em regime transônico, perto da velocidade do som, Mach 1, era problema para o MiG-15. Ele se tornava instável acima de Mach 0,86 e incontrolável em 0,94 ou 0,95. Assim, mesmo tendo desvantagem de empuxo, o Sabre podia escapar do oponente após uma subida em potência máxima e um mergulho de alta velocidade, onde esse escorregava sólido, e o avião soviético se desestabilizava, fazendo o piloto do regime comunista ter que desistir da perseguição, ou se insistisse muito, danificar seu avião, algo muito pouco saudável.
As velocidades máximas eram de 1.060 km/h para o MiG-15 e 1.100 km/h no Sabre, muito similares.
A versão F do F-86 tinha alterações nas asas, que ficaram conhecidas como 6-3, um kit de reforma (retrofit) que era aplicado em campo pelas equipes de manutenção, fazendo o raio de curva diminuir, e caso entrasse em parafuso, a recuperação era feita apenas aliviando a força de pé e mão sobre os controles e deixando o avião se estabilizar sozinho, para depois fazê-lo subir. Mesma característica de bons aviões de treinamento, e quase à prova de erros. Esse kit tinha basicamente a função de aumentar a corda da asa, a dimensão longitudinal desta.
Essa era a principal característica do Sabre, uma qualidade de vôo excepcionalmente boa e simples, sem vícios, sendo facilmente bem pilotado para pessoas com experiência suficiente. Era a virtude principal desse belo avião, que compensava seu menor empuxo de motor e maior peso.
Outro ponto interessante do MiG-15 era seu armamento de 3 canhões, um de 37 mm e dois de 23 mm. Eles foram feitos para ataque a bombardeiros, e eram um pouco superdimensionados em potência para um avião inimigo de tamanho similar. Apenas 200 projéteis para esses 3 canhões era uma verdadeira mixaria, além de terem uma taxa de tiro pequena, melhor para ataque a aviões lentos de manobras como os bombardeiros, não contra aviões pequenos e ágeis, e que ficaria por muito mais tempo engajado em combate. Diga-se de passagem, esses combates que vemos em filmes são versões estendidas da realidade. No mundo real, qualquer tempo de troca de tiros além de 30 segundos é extremamente raro. Podem sim ocorrer perseguições por tempos bem maiores que isso, mas como a munição nunca é farta, as trocas de tiros são sempre curtas, e sabendo disso, os pilotos sempre tentam atirar e escapar o mais rápido possível.
Todas as 3 armas e sua munição eram facilmente removidas do avião por um sistema daqueles tão simples quanto geniais. Uma prateleira-elevador com cabos de aço, carretilha e polias, movida manualmente.
O Sabre, com suas seis metralhadoras 0,50 pol e 1.600 cartuchos, era mais rápido na reação, mas muitas vezes não se conseguia uma boa seqüência de tiros em local certo, já que essa arma era bem menos potente que os canhões do MiG-15, que conseguiam escapar mesmo bastante perfurados, sem serem abatidos.
Os projetistas e engenheiros da Mikoyan-Gurevich tomaram a manutenção fácil como ponto de honra, e além da prateleira de armas, a parte traseira da fuselagem era removida por completo junto com a empenagem, para fácil acesso ao motor.
Mesmo assim, dez vezes mais MiGs-15 foram eliminados por F-86s. São 798 contra 78 vitórias confirmadas, com mais 118 prováveis MiGs, e 13 Sabres. Essas chamadas de prováveis são vitórias não confirmadas, então melhor contar o número das certas. Dez vezes a menos para o avião soviético, que tinha pilotos mais jovens e muito menos treinados que os americanos, muitos deles veteranos da Segunda Guerra Mundial, como por exemplo Chuck Yeager e Bud Anderson.
Outro piloto de Sabre que ficou bastante famoso após o conflito é Gene Kranz, que se tornaria o mais lendário diretor de vôo da Nasa, tendo trabalhado desde o início do programa espacial Mercury, até vários anos adentro do Space Shuttle. Kranz era o Flight Diretor da missão Apollo XIII, tendo sido ele a proferir a famosa frase “Failure is not an option” — A falha não é opção — quando reuniu os engenheiros em busca de uma solução para a filtragem do oxigênio na cápsula.
Não há como falar de combates entre aeronaves sem levantar o assunto qualidade dos pilotos. Para o lado americano, a situação era mais tranqüila, pois a experiência acumulada era bem maior. Havia muita gente que já combatera na Segunda Guerra Mundial. Os soviéticos também tinham pilotos veteranos, mas em bem menor quantidade e os norte-coreanos eram muito menos experientes.
Além disso, os soviéticos tiveram a missão dificultada por serem eles a treinar os norte-coreanos, e a carga de trabalho era muito aumentada. Combater e ainda ter que ensinar era muita coisa a ser feita, exigindo demais do corpo e da mente. Isso os fez mais sujeitos a incidentes, como por exemplo descarregar suas armas e tanques suplementares para diminuir o peso e escapar dos F-86, e nem mesmo entrar em combate a não ser que a vantagem fosse muito grande em altitude, principalmente.
Ao final do conflito entre as duas aeronaves, conclui-se o que muita gente com experiência nessa área sempre diz: é melhor um avião razoável com pilotos ótimos do que pilotos razoáveis em aviões superiores.
Hoje em dia há vários desses aviões ainda em condições de vôo, nas mãos de particulares e museus com aeronaves que voam. Há várias imagens e muitos vídeos sobre ambos disponíveis, além de um sem número de livros abordando tanto os combates quanto as análises técnicas desses dois importantes aviões.
Um belo vídeo de ambos voando juntos pode ser visto clicando nesse link.
JJ