A história da VW pode ser resumida em dois períodos, antes e depois da Audi. Mas antes deixe-me recapitular o que é Audi, para melhor entendimento dos fatos.
A Audi foi fundada em 1909. A crise econômica mundial seguida à quebra da Bolsa de Nova York em outubro de 1929 abalou a indústria automobilística alemã, o que levou quatro fabricantes — Audi, DKW, Horch e Wanderer — a se unirem em 1932 formando a Auto Union AG. O logotipo da nova empresa era a figura de quatro anéis entrelaçados que, num relance, levava à idéia de quatro fabricantes unidos. A Auto Union passou a ser o maior fabricante alemão, à frente da então líder Opel (que desde 1927 pertencia à General Motors), da Daimler-Benz e da BMW. Mas, como se sabe, em conseqüência da invasão da Polônia pela Alemanha em 1º de setembro de 1939, dali a dois dias a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha, marcando o início da Segunda Guerra Mundial, cujo resultado todos nós conhecemos. A Auto Union não existia mais, pois ficara na zona de ocupação soviética.
Eis que em 1949 um grupo de investidores, entre eles alguns executivos da Auto Union, resolvem criar uma nova Auto Union, em Ingolstadt (antes a fábrica era em Düsseldorf) e relançam uma das marcas, a DKW, que era a mais e popular e de menor preço das quatro, que tinha motor de dois-tempos, por entenderem que seria o produto mais adequado para os difíceis anos pós-guerra. Com o carro na cabeça e desenhos salvados dos bombardeios na mão, lançaram o DKW F89, um sedã duas-portas com o motor transversal de dois cilindros, 690 cm³, do Meisterklasse de 1938. Em 1953 o mesmo carro, tipo F91 recebeu o motor longitudinal de 3 cilindros de 896 cm³ que estava pronto para ser apresentado no Salão de Berlim de 1940, cancelado devido à guerra. Foi esse modelo em versão perua. chamada Universal, que passou a ser fabricado no Brasil pela Vemag, sob licença da Auto Union, a partir de 24 de novembro de 1956.
Mas a situação financeira da nova Auto Union nunca foi sólida e ela estava em permanente dificuldade, até que o governo alemão convencesse a Daimler-Benz a comprá-la, o que ocorreu em 1958. A Auto Union continuou sua existência, vinha lançando novos modelos, dois até com o nome da empresa, o sedã Auto Union 1000 e o esportivo de dois lugares Auto Union 1000 Sp, e tinha lançado em 1963 um sedã de porte médio, o DKW F102, de motor também dois-tempos, mas de 1.175 cm³. Era um carro elegante e espaçoso, de carroceria monobloco e suspensão traseira por eixo de torção.
Em 1965, a VW adquiriu, da Daimler-Benz, a Auto Union e com ela toda a sua tecnologia. No processo, a marca DKW foi extinta e no seu lugar renasceu a marca Audi, adotando como logomarca os quatro anéis da Auto Union. A empresa Auto Union GmbH foi renomeada Audi AG e pouco depois outra fabricante, a NSU, seria absorvida pela Volkswagen, alterando-se a razão social da Audi AG para Audi-NSU AG (alguns anos depois a marca NSU desapareceria, passando a empresa a se chamar de novo Audi AG). De toda a linha DKW só foram aproveitados o F102 e o utilitário Munga, este fabricado no Brasil a partir de 1958 com o nome de jipe DKW-Vemag, depois Candango, e que sairia de produção em 1962. Tanto o F102 quanto o Munga foram atualizados com motores de quatro cilindros 4-tempos, o primeiro passando a se chamar Audi 60 (internamente DKW F103!) e o segundo, VW Iltis. Curiosamente, ambos de 1.700 cm³, mas motores diferentes. O Audi 60 tinha um motor Mercedes de comando no bloco, 75 cv, enquanto o Iltis já trazia o motor 827, o AP que conhecemos aqui — também de 75 cv.
Com a tecnologia adquirida tanto da Auto Union quanto da Daimler-Benz, começou a grande preparação da Volkswagen para os anos futuros. O Fusca começava a mostrar sinais de cansaço, as tentativas com a receita motor boxer traseiro-arrefecimento a ar não vinham tendo sucesso, os modelos maiores nela baseada encontravam forte concorrência, especialmente da Opel, mostravam ser preciso outro caminho. A morte do líder Heinz Nordhoff em abril de 1968, adepto ferrenho da velha receita, de certo modo facilitou a mudança. Na década de 1970 surgiriam veículos VW totalmente derivados dos Audi tais como os VW Passat, Golf e Polo, entre outros, todos com motores de cilindros em linha arrefecidos a água e configuração de tração dianteira com excelentes conjuntos de suspensão e de direção.
No Brasil também se deu a grande virada tecnológica da VW com o lançamento do Passat em 1974, veículo derivado do Audi 80 em toda a sua concepção técnica e de estilo, diferindo daquele sedã três-volumes (notchback) pela traseira semi-fastback. Seguindo nessa linha, a VW brasileira começou a pensar num substituto para o Fusca para as décadas seguinte.
Teria que ser um veículo barato, resistente e moderno, um legítimo sucessor do Fusca e de seus atributos. E em maio de 1975 a VW do Brasil inicia o programa BX em parceria com sua matriz na Alemanha.
Além de um modelo hatchback, o programa BX incluía também um sedã, uma perua e uma picape, todos derivados de uma mesma plataforma. Na realidade foram considerados detalhes de várias plataformas como o VW Polo, o VW Sirocco e o próprio Passat, este último com sua motorização/transmissão longitudinal. E surgiu o nome de batismo do novo hatch, Gol, que foi uma tendência da VW em dar nomes associados a esportes aos seus veículos, Polo, Golf, Derby etc.
O Gol foi um dos melhores projetos brasileiros em termos estruturais e de durabilidade. A engenharia da VW ocupava as instalações da antiga fábrica Vemag, chamada então Fábrica 2 (a atual engenharia na Ala 17 só seria inaugurada em 1983) e fez um trabalho brilhante na análise dos painéis individualmente e no conjunto final da carroceria, dando ao Gol uma resistência que marcou a sua primeira geração como imagem de veículo inquebrável. Suas suspensões e direção semelhantes às do Passat dava ao veículo uma boa estabilidade e segurança ao dirigir.
Veja abaixo fotos de estúdio mostrando algumas propostas de estilo para o VW Gol.
O Gol foi lançado em março de 1980, saído da nova fábrica VW em Taubaté (SP). A “bola na trave” foi a escolha do motor boxer 1300 arrefecido a ar emprestado do Fusca para equipar o novo veículo. Além de seu fraco desempenho, apesar de desenvolver 4 cv mais (42 cv) que no Fusca, graças aos novos cabeçotes com melhor fluxo e turbina axial que absorvia menos potência do que a radial, tinha também alguns problemas crônicos que foram passiveis de muitas reclamações por parte dos consumidores:
· Pane elétrica do distribuidor em chuvas. Para resolver o problema rapidamente a VW liberou um envoltório plástico para o distribuidor evitando que o mesmo se molhasse. Solução simples, porém pobre em termos de engenharia aplicada.
· Dirigibilidade sofrível causado pelo aquecimento deficiente do coletor de admissão muito comprido, gerando má distribuição da mistura ar-combustível. No inverno o problema ficava ainda mais crítico.
· Tendência a sair de traseira devido a falta de convergência das rodas traseiras, logo corrigido por usinagem da base de fixação das pontas de eixo corpo do eixo de torção (de novo tipo, diferente do empregado no Passat).
E em 1981, a “toque de caixa”, a VW substituiu o fraquíssimo motor 1300 pelo 1600, também arrefecido a ar e com dois carburadores, herdado do Brasília/Super Fuscão/VW 1600, de 54 cv e com torque bem maior.
O desempenho do veículo melhorou bastante, porém a dirigibilidade continuava problemática. Os dois carburadores perdiam sincronismo com facilidade, deixando a marcha-lenta instável e desagradável. Os gicleurs da marcha-lenta vira e mexe entupiam causando mau funcionamento do motor, que morria com freqüência, gerando grande quantidade de reclamações de campo. E sem falar daquele ruído característico de batida de válvulas que era aceito no Fusca e severamente criticado no Gol.
De bola na trave em bola na trave, finalmente um Gol de verdade, quando no final de 1986 a VW abandonou definitivamente a motorização boxer arrefecida a ar, instalando o motor de quatro cilindros em linha arrefecido a água do Passat. Foi o grande impulso marcando significativamente o crescimento das vendas do Gol e de sua imagem. No ano seguinte seria o carro mais vendido no Brasil, posição que sustentaria pelos próximos 26 anos, até 2013.
A VW aproveitou e corrigiu alguns problemas de entrada de poeira na cabine e alguns ruídos nas portas e no painel. Muito bom também o tuning do escapamento, que deu ao Gol uma característica notória de sensação de desempenho.
Na década de 1980 eu já trabalhava no Campo de Provas da Ford em Tatuí e me lembro de alguns episódios relacionados ao Gol “quadrado”. Era comum fazermos testes especiais e de durabilidade em veículos da concorrência para informação de como os veículos se comportavam com relação aos Ford.
O Gol era forte e resistiu bem aos 160.000 quilômetros de durabilidade estrutural que era o padrão Ford na época. Para não dizer que tudo foram flores, a coluna “A” do lado do motorista apresentou uma trinca relevante na região de fixação da porta.
Outro fato notório, quando em testes de impacto em buracos com o freio acionado, os braços inferiores da suspensão dianteira entortavam, porém mantendo a carroceria integra. Eram os fusíveis do sistema.
Outro fato que me chamou a atenção foi relativo às barras de direção que eram de comprimentos diferentes e formavam ângulos desiguais com os braços de direção. Este fato prejudicava um pouco a geometria da direção em curvas, com arrasto desigual entre as rodas. Também notei que a posição do motorista com relação ao volante — um pouco enviesado — e aos pedais não era centrada, causando desconforto.
Meu amigo e jornalista Bob Sharp, editor-chefe do Ae, chefiou as competições da Volkswagen na década de 1980 e me contou que os Gol da equipe de rali da fábrica não recebiam nenhum reforço estrutural, apenas tinham os pontos de solda reforçados. Quando ele consultou a engenharia sobre o que reforçar no monobloco visando os esforços anormais nos ralis, recebeu como resposta “Nada”. Nem mesmo a usual barra ligando uma torre da suspensão à outra.
E o Gol resistiu até à Autolatina! Os modelos mais simples do Gol foram equipados com o motor AE-1600, o velho CHT 1,6 da Ford, inclusive a versão de 1 litro. E se saiu muito bem, com uma economia de combustível que fez sucesso no mercado, como compensação pelo menor desempenho.
E o Gol de segunda geração, o “bolinha”, que foi desenhado pela Ford!
Na realidade, a simplicidade do Gol “quadrado”, como hoje é lembrado, ainda chama a atenção pela sua robustez, facilidade de manutenção e um bom custo-benefício, motivos de seu sucesso e da força da marca VW no Brasil.
Veja o leitor que a VW quase conseguiu matar um excelente projeto pela teimosia de querer economizar alguns trocados no coração do veículo, o seu motor. O fato é que a marca era muito forte e conseguiu se recuperar mesmo com algumas bolas na trave e outras para fora também.
Carinho especial para o Voyage, sedã derivado do Gol e que também fez a sua história.
Encerro esta matéria com uma foto da família de motores arrefecidos a água que creio representar o sucesso da marca:
CM