Encostei a cabeça no travesseiro, fechei os olhos e senti a mão esquerda que doía um pouco. Um pequeno corte e algumas marcas vermelhas na pele eram testemunho de uma invasão em uma área de difícil acesso no compartimento do motor do meu Alfa 145. Bem que tentei usar uma luva, mas não resolveria o problema que eu estava investigando. Tinha uma fresta aberta no fechamento da caixa plástica, onde fica o elemento do filtro de ar. E precisava de sensibilidade para achar onde era, não estava funcionando com a luva vestida.
Eu deveria estar apresentando o carro de uma outra maneira para o leitor do Ae, relatando como começou o namoro com o carro, ainda nos anos 1990, sua história de projeto e a saga que seguiu até conseguir colocar as mãos, e o meu nome, nos documentos de um exemplar. Mas vou quebrar o protocolo e começar pelo agora, tema do texto de hoje, aos poucos iremos voltar no tempo e caprichosamente revisitar matéria a matéria, a deliciosa caminhada de mais um interessante automóvel regado a molho de tomate e aceto balsamico.
Um Alfa Romeo não nasce para ser prático, nasce para ser degustado, e para isso pede habilidade e drama, necessários para encarar a vida, tipicamente à moda, como fazem aqueles da turma do país de Leonardo da Vinci.
Deixando o drama de lado, é claro que a mão não doía tanto assim, só estava levemente ralada. Não era a primeira vez que alguma seqüela remanescia após uma aventura mecânica, e torço para que não seja a última. Fuçar no carro é um dos meus vícios e deve ter alguma contra-indicação. Até que surjam os sintomas, vamos tocando em frente.
Tinha jantando com a família naquele sábado à noite, e como costumamos fazer, cada um conta um pouco do seu dia. Minha história não interessava tanto assim e não foi popular à mesa. Sabiam que eu tinha mexido no carro, mas não tinham notado nenhuma diferença e, mais, não compreendiam por que fui mexer no motor se o mesmo funcionava bem. Da minha parte, eu também não entendi por que minha esposa tinha saído para ir comprar uma bolsa nova, se tinha uma porção de bolsas novas na parte alta do guarda-roupa. Então ficamos quites.
Após o jantar atualizei minha leitura no Ae, em seguida bateu o sono e fui deitar lembrando da volta que havia dado naquela tarde de sábado com o 145, depois da pequena mexida que havia realizado no carro pela manhã. Eu achei o motor mais redondo, como se enchesse melhor os cilindros, e o ronco (que para mim ainda é um dos melhores sons provenientes de um quatro-cilindros) estava mais grave, mais presente.
O Twin Spark, neste caso um 2-litros, é no meu entender um dos mais fascinantes casos de sucesso entre casais italianos, bloco e cabeçote se entendem como poucos, certamente um dos melhores do universo em quatro cilindros.
Mas o espaço no compartimento do motor do 145 não é exatamente uma suíte presidencial, e o casal se vê levemente apertado entre tantos convidados para a festa de núpcias. Vieram o compressor do ar-condicionado, a central de controle do ABS, radiador de água, trocador de calor óleo-água, coletor de admissão com sistema de variação de roteiro, acumulador de energia elétrica também conhecido por bateria, e a tal caixa que acomoda o elemento do filtro de ar. Enorme. Toda esta turma quer dividir a suíte com o casal principal dono da festa, bloco e cabeçote ficam ali no meio da confusão.
Tudo funciona como um relógio, só que o acesso a alguns dos convidados foi prejudicado. Para realizar manutenção no cofre do motor tem que ser paciente e saber degustar, com calma e paciência. Apressados ou brutamontes não terão sucesso na empreitada, neste caso Arnold Schwarzenegger não pode ser comparado com Roberto Benigni, ambos tiveram sua carreira de sucesso no cinema mas têm uma personalidade e um pegada muito diferente. No mundo da Alfa Romeo finesse é fundamental.
Muito pouco prático, mas aproveitando o espaço até o limite do espaço reservado para o conjunto motor, e quase encostado na parte interna do pára-lama esquerdo, encontra-se o filtro de ar do Alfa 145. Como 1/3 da tampa plástica fica sob a carroceria do veículo, escondida pela parte superior do pára-lama, e esta tampa é também a conexão com a mangueira de borracha que leva ao corpo da borboleta, o simples trocar de um elemento filtrante fica assim mais dramático, não muito claro, mas fica e tem que ser assim para manter o pedigree.
Alguém certa vez me aconselhou, vai ter um Alfa Romeo, é melhor conhecer uma boa oficina mecânica. Como bom entusiasta fiz desdém, os Alfa são bem projetados, pensei, e neste caso tem um parentesco Fiat importante, que leva a crer que soluções práticas comuns em veículos de massa estariam por lá. Bem, quase assim. O Twin Spark é Alfa, não Fiat. E os engenheiros da casa de Arese não queriam abrir mão do seu DNA, mesmo em um dos mais simples Alfas de todos os tempos como o 145.
Acredito que até um bom mecânico irá lutar um pouco para notar que a caixa que aloja o elemento do filtro de ar do Twin Spark requer um pouco de atenção. Não é só tirar dois clipes e abrir, tem a conexão com a mangueira da admissão, tem a parte escondida sob a carroceria e tem dois pontos de apoio fundamentais para manter a vedação, e adivinha onde estão estes dois pontos? Bem escondidos perto do pára-lama. Minha desconfiança do resultado final da última intervenção, em oficina especializada, levou a investigar como estava a montagem da tal tampa e desconfiei que havia sido deixada uma fresta na última montagem.
Minha escolha poderia ter sido simplesmente ir reclamar com o mecânico, mas, para quê? Para ele desmontar e montar tudo de novo? Seria muito simples, resolvi aproveitar a motivação para investir alguns dólares em um novo elemento filtrante, daqueles que a gente pede para um colega trazer dos Estados Unidos, e que a embalagem promete um milhão de milhas sem trocar, apenas lavando de vem em nunca (lavagem a cada 80.000 km, segundo a mesma caixa).
Demorou um pouco para chegar, mas pela manhã fiz o “favor” de ir buscar meu amigo no aeroporto, e assim tive acesso imediato à encomenda. Algumas horas depois uma chave Philips começou a trabalhar.
A desmontagem prosseguiu sem sobressaltos, e apreensivo como quando se veste um antigo terno, torci para o novo filtro encaixar sem ficar folgado ou justo demais. E ficou perfeito. Queria remontar tudo logo no lugar para poder rodar com o carro e testar outras promessas descritas na embalagem do produto.
Comecei a remontagem e não foi tão simples assim, busquei na memória uma palavra que representasse um xingamento em italiano e apelei. Por que não podia ser ingênuo e prático? Tinha que ser como o creme Zabaione, você lê a receita e pensa, mamata, simples demais, tenta fazer e não fica como aquele que você provou uma vez feito por quem sabia o que estava fazendo.
Desculpem-me, parece que mais uma vez o drama quer vencer a narrativa. Foi difícil mas não tanto assim, descobri que a montagem requer o cuidado de encaixar os apoios escondidos, e que ficam muito escondidos, sem visão alguma e nem acesso com as mãos, mesmo quando se aceitam escoriações.
Alguns segundos de pressão sobre a tampa e um forte som de encaixe me tranquilizou, a tampa também monta sem este clique, mas deixa uma fresta do lado que se esconde no pára-lama, você acha que ficou bom e não tem como checar, por isso havia ficado aberta uma ligeira fresta deste a última visita à oficina.
Com a atenção a este ponto você terá uma maior longevidade do seu motor, menos impurezas irão acessar o delicado sistema de admissão do coletor do Twin Spark, além disso menos risco de entrar algo estranho dentro dos cilindros, riscando suas paredes. Poderia ser mais segura a montagem ou mais simples, já que o filtro de ar é um item de troca freqüente. Mas não é. Um Alfa Romeo não precisa ser simples, poderiam ter pensado nos riscos ou imaginado que não ficou fácil garantir que está correto, mas resolveram o desafio de como colocar tudo o que precisava dentro do espaço limitado. Pois um Alfa Romeo tem que ser assim, interessante e não simples. Inconfundível e não comum.
Caso o proprietário de veículos assim não seja cuidadoso, a manutenção corre o risco de não ficar perfeita, mas a história continua e depois de um tempo a fama de complicados ou de frágeis vai se formando. Tantos carros bacanas passam por esse mesmo drama.
Existem automóveis mais robustos, ou mais simples no quesito manutenção. Outros mais “conhecidos” pelos mecânicos por aí afora. E existem carros para quem não se preocupa com isso e encara o desafio de mantê-los em bom funcionamento, e fazem desta característica uma fonte de prazer. Carros para gostar de ter.
Apenas chegava a hora do almoço e eu já estava satisfeito com o meu dia. Havia encontrado um amigo e também uma solução para um problema no carro, do que mais se precisa para viver? Ah, sim, ainda estava ansioso para sentir o resultado da empreitada. Antes disso, porém, uma nova satisfação surgiu enquanto dava a última volta no último (quatro no total) parafuso que cerrava o novo filtro de ar “esportivo” em seu confinamento. Pensei em voz alta, não vou precisar trocar o filtro tão cedo, este aqui dura muito mais tempo. Resolvi o problema original.
Depois do almoço verifiquei novamente o aperto dos quatro parafusos, já acomodados com a vedação do novo filtro, conferi o óleo do motor e chequei o nível de água. Acho que esta parte não precisava, mas como falta d’agua é um assunto da moda, vale a pena sempre certificar. Tudo no nível certo, como previsto na checagem da semana anterior. E fui para a rua.
Impressionado positivamente pelas promessas do novo produto, achei que a aceleração mudou um pouco, com os giros do motor chegando de maneira mais fácil, e um pouco mais bacana o ronco do motor. Em baixa este foi o resultado, em alta, a partir de 4.000rpm o carro ficou bem melhor, rapidamente chegando no limite de regime, já era divertido, ficou arisco. O novo filtro oferece menos resistência ao fluxo de ar, o que faz mais diferença em giros elevados. Aprovado o resultado final pensei novamente em voz alta, “valeu a pena o trabalhão”.
Que drama, e que prazer.
Aguarde mais sobre o Alfa 145 nas próximas matérias.
FM