TERCEIRA PARTE DE UMA SÉRIE
As Ilhas da Fantasia, a Torre de Babel e o Paraíso dos Padrões Abertos
Imagine o que aconteceria se o fornecedor de eletricidade fornecesse tensão num padrão exclusivo dele, e as pessoas fossem obrigadas a comprar eletrodomésticos de um determinado fabricante porque só os produtos dele são compatíveis com o padrão de eletricidade que é fornecida.
E se cada emissora transmitisse seu sinal num padrão exclusivo que só um fabricante conseguisse transformar em imagens e sons? Dá para imaginar uma TV para cada canal na casa das pessoas?
E uma cidade que fizesse suas ruas compatíveis com apenas com os carros fabricados por apenas um fabricante? E se cidades diferentes criassem padrões diferentes para diferentes marcas de carros? Que possibilidade as pessoas teriam de viajar de uma cidade a outra com seu carro?
Felizmente, estas situações insólitas são improváveis na maior parte do mundo moderno.
Os padrões abertos estão por toda parte e são fundamentais para a criação do moderno mundo civilizado. O estabelecimento de padrões abertos é uma necessidade social e muitos são alvo de leis, de acordos internacionais e de grandes comissões de empresas concorrentes no setor.
Muito mais do que isso, padrões abertos são sinônimo de boa engenharia e de produtos intercambiáveis, que podem competir em igualdade de condições, permitindo ao consumidor adquirir os melhores e mais adequados produtos para sua necessidade pelos menores preços.
Entretanto, o mesmo não ocorre na totalidade do mundo digital.
É comum fabricantes de equipamentos e softwares criarem incompatibilidades em padrões abertos altamente normalizados (Bluetooth, NFC etc.) para manter seus consumidores presos às suas plataformas proprietárias. Existem fabricantes que utilizam essas técnicas em larga escala e criam verdadeiras “ilhas da fantasia” cheias de maravilhas, mas que tolhem o direito de escolha do usuário. Muitas pessoas não compreendem o quanto essa prática é ruim e se encantam com as “maravilhas” sem perceber a armadilha que ali se esconde.
Criar padrões proprietários de protocolos que condicionam o uso de equipamentos de um fabricante dentro de um ecossistema fechado é um processo tão perverso quanto o de uma cidade que cria padrões únicos de eletricidade, de sinal de TV e de pavimentação para condicionar todos os cidadãos ao monopólio de fabricantes exclusivos, e quem não aceitar, que se mude de cidade.
Este ato nefasto, feito para garantir o interesse de poucos, afasta a salutar concorrência e a constante inovação que beneficia a todos.
Quando um fabricante utiliza esta técnica predatória em larga escala e obtém sucesso junto aos consumidores, corre-se o risco de esta prática se disseminar pela concorrência, e isso não faz bem a ninguém. Protocolos proprietários e incompatíveis entre si surgem de todos os lados, criando verdadeiras Torres de Babel e isolando os consumidores em pequenas ilhas da fantasia em vez de libertá-los para um mundo muito mais amplo e rico.
Outro bom exemplo do quanto essa Torre de Babel digital não é apenas ruim, mas bastante perigosa, vem se mostrando no setor de tecnologia de pagamentos. Pelo mundo há inúmeros padrões de tarjas magnéticas e alguns de chips para cartões de crédito, e a eles foram adicionados o Google Wallet e o Apple Pay. Cada sistema destes envolve milhões de aparelhos leitores e protocolos de comunicação circulando por telefone e pela internet. Muitos aparelhos de diferentes fornecedores precisam ser poliglotas para falarem todas as opções diferentes de pagamentos. E o que ocorre quando um destes protocolos oferece uma brecha de segurança? O software destes aparelhos deveria ser atualizado, mas como ele está misturado a outros protocolos, a solução não é tão simples. Atualizar toda plataforma torna-se um pesadelo de logística. Enquanto isso, o sistema fica a descoberto, disponível para fraudes, e o que o fornecedor faz? Ele precisa passar a impressão a todos que o sistema é seguro para não gerar pânico e perder credibilidade. Mas quem fica a descoberto é o usuário do sistema de pagamentos.
Se houvesse uma padronização desses sistemas e protocolos a apenas uma ou duas opções de cada tipo, seria muito mais fácil reparar uma brecha de segurança e distribuí-la por todos os equipamentos de pagamentos. Os custos seriam mais baixos e a segurança seria maior.
A promessa de melhor funcionamento em função das incompatibilidades não é desculpa, pois é possível fazer bons equipamentos aderentes a padrões abertos. Incompatibilidades são distorções propositais, não uma necessidade. Padrões abertos sempre podem ser aprimorados ou substituídos por novos padrões abertos.
Jailbreaks e outras práticas de hacking de equipamentos travados de fábrica são formas reconhecidas como legais em boa parte do mundo para contornar as limitações impostas, mas devem ser evitadas. É como tentar endireitar uma árvore que nasceu torta e nunca será uma árvore reta. Melhor optar por equipamentos projetados para respeitar os direitos dos consumidores.
Quando um rapaz tira uma foto com seu smartphone, ele tem todo direito de distribuir a foto do jeito que ele bem entender. Um fabricante que impõe uma castração ao protocolo de Bluetooth que impeça que ele mande a foto para o smartphone da namorada, está cometendo um atentado contra o livre direito de expressão do rapaz. Impedi-lo de fazer isso por pretensões comerciais monopolistas é uma forma disfarçada de pirataria corporativa em larga escala.
Atentar contra padrões abertos é, acima de tudo, atentar contra os direitos dos próprios consumidores e contra o fair use.
Novamente vemos o quanto o termo “pirataria” é um termo moral e assimétrico. Ele sempre se refere a práticas inconvenientes que o consumidor pratica contra corporações, mas ninguém usa o termo quando corporações exercem práticas lesivas ao consumidor e até as disfarçam como algo legítimo. Uma prática não justifica a outra, mas uma leva à outra.
Estas são situações de distorção assimétrica a favor do fornecedor que mais à frente desemboca na pirataria e no “hacking” (outra alegada forma de pirataria, segundo a indústria) de equipamentos pelos consumidores.
Protocolos e padrões abertos sempre serão mais fortes que padrões fechados, mesmo que os padrões fechados sejam tecnicamente superiores. Exemplos não faltam:
– O padrão de fita de vídeo BetaMax da Sony era muito superior ao padrão VHS criado pela concorrência. Enquanto o BetaMax era exclusivo da Sony, o VHS era aberto a toda indústria, beneficiando não só os fabricantes de aparelhos domésticos, mas também os fabricantes de fitas e de gravadores industriais. Logo o preço e a diversidade das fitas VHS criaram um mercado que a Sony não conseguiu acompanhar com o BetaMax.
– O CD é um padrão aberto nascido das cinzas do padrão fechado do VideoLaser da Philips. A abertura do do CD tornou-o um padrão universal que continua vivo mesmo depois de 35 anos de lançamento no mercado.
– Em compensação, a maior loja de músicas digitais, o iTunes, nunca vendeu uma música sequer para um smartphone Android, que representa mais de 85% do mercado de smartphones. O iTunes nunca terá a universalidade do CD e é algo que a indústria fonográfica terá de pensar.
– A demora da indústria fonográfica em oferecer um bom padrão de música digital e uma boa prática comercial tornou o MP3 um padrão aberto que não pode ser controlado, altamente padronizado. Há opções tecnicamente superiores ao MP3, inclusive em padrões abertos, mas destroná-lo agora é muito difícil.
Sejam quais forem os fornecedores escolhidos para equipar os futuros painéis dos automóveis, é papel da indústria automobilística garantir os direitos dos consumidores através da exigência de padrões e protocolos abertos amplamente aceitos. Incompatibilidades propositais devem ser recusadas.
Carros conectados
A onda de mobilidade chegou ao automóvel, e com ela, várias transformações. Primeiro foram os aparelhos de GPS que migraram dos pára-brisas para a integração com o painel e funções de entretenimento do veículo. Agora é a revolução da internet móvel em smartphones e tablets que empurram as novidades para o painel. Há vários riscos nesse processo, pois as transformações são muito rápidas, e o processo pode sofrer muitos tropeços.
Uma discussão forte dentro da indústria automobilística atual é a questão do sistema operacional no painel.
Hoje há três grandes fornecedores de sistemas operacionais móveis: Google (Android), Apple (iOS) e Microsoft (Windows), e eles vêm oferecendo sistemas embarcados para a indústria automobilística, compatíveis com seus sistemas operacionais. É interessante notar que o sistema embarcado da Apple, o CarPlay, é baseado no sistema operacional QNX da BlackBerry e não no iOS.
Apesar de toda a ênfase na conectividade que os automóveis prometem para o futuro através desses três fornecedores, a indústria automobilística impôs uma condição. Ela sabe que Google e Apple lucram muito com seus sistemas operacionais móveis, e ela quer ser a principal beneficiária com tudo o que for gerado no painel dos automóveis. A questão é complexa na medida em que esse não é o foco de negócio dos fabricantes de carros e é muito difícil precificar os benefícios sobre as ações dos usuários.
O caso da Apple com a indústria fonográfica também é um bom exemplo de como o mesmo acordo pode ser muito bom para um e não tão bom para o outro. É algo a ser estudado.
A presença de três sistemas é um complicador. Os carros conectados deverão conversar de forma transparente com os smarphones dos donos, sejam eles quais forem. Assim, os carros precisarão rodar mais de um sistema para não obrigar o dono a trocar de smartphone em função do carro que está comprando. É um caso de Torre de Babel digital.
Isto obriga os três fornecedores a oferecer sistemas operacionais que rodam sobre o mesmo hardware padronizado no mesmo carro, enquanto o hardware pode variar e evoluir de tempos em tempos e de carro para carro.
Google e Microsoft produzem sistemas operacionais que se adaptam a centenas de configurações diferentes de hardwares, mas essa não é uma tradição da Apple, que sempre trabalhou com limitado número de conjuntos casados de hardware/software exclusivos. É natural que haja batalhas de bastidores entre eles e com os fornecedores de hardware, cada um tentando projetar as especificações do hardware em benefício do seu software.
Veremos outros detalhes deste assunto no próximo item.
Uma idéia radicalmente diferente e tecnicamente viável seria a indústria automobilística se juntar, criar a partir de algum sistema operacional de código-fonte aberto, como Linux ou QNX, um sistema de painel padronizado controlado por ela própria e os fabricantes de smartphones e outros dispositivos que se esforçassem para oferecer compatibilidade.
Infelizmente essa idéia sequer saiu do papel. Este tipo de atribuição não é foco da indústria automobilística e se torna mais fácil fazer acordos com fornecedores que já possuem soluções.
Outro problema a ser enfrentado: a rápida obsolescência eletrônica.
Um smartphone com três anos de uso já está bem usado e seu custo permite a troca em períodos ainda mais curtos. Porém um automóvel com três anos de uso ainda tem muitos anos à frente para simplesmente ver seu sistema de painel parar de receber atualizações, um passo grande rumo à obsolescência de uma peça central difícil de ser trocada por uma atualizada.
Portanto para o consumidor, antes um carro com predisposição a um sistema de infotenimento aftermarket que um original de fábrica que não possa ser trocado e que será rapidamente abandonado.
Olhando por baixo da superfície
Hoje há duas plataformas dominantes na computação móvel: iOS da Apple e o Android do Google. Na internet, fãs das duas plataformas se digladiam pelos seus sistemas preferidos, porém ambos os lados não olham o que realmente interessa e nem precebem as reais diferenças entre sistemas.
Usuários leigos são seduzidos por aquilo que vêem, mas realmente usam aquilo que não compreendem. Eles se apegam aos mimos da interface e não levam em consideração a importância do kernel (núcleo) do sistema. Em termos automobilísticos, é como comprar um raríssimo Ferrari GTO só para dar voltas no quarteirão e nunca abrir o capô para saber se lá tem um legítimo motor Ferrari ou se é um mero motor de Fusca.
A Apple foi inovadora no mercado da mobilidade com o lançamento do iPhone, movido pelo sistema operacional iOS.
O iOS surgiu de um kernel de Free-BSD (um UNIX livre) por volta de 2002 que foi muito modificado para um protótipo de tablet (que mais tarde seria o iPad), e depois novamente modificado para fazer funcionar num smartphone. O sistema veio a público no começo de 2007 com o anúncio do iPhone.
A computação móvel de 2002 era muito diferente da atual. Processadores de arquitetura ARM, que equipavam a maioria dos dispositivos móveis, inclusive a quase totalidade dos celulares, eram processadores para baixo custo e baixo consumo de bateria às custas de baixo desempenho. Este era um fator que direcionou a criação do iOS, numa época quando ninguém tinha uma boa experiência de computação móvel avançada.
Uma importante escolha feita na arquitetura do iOS foi a questão da multi-tarefa (capacidade de rodar múltiplos programas em paralelo). O Free-BSD do qual o iOS partiu oferecia suporte a uma multi-tarefa completa, mas diante da necessidade de preservar a carga da bateria, o iOS foi modificado de forma que apenas o programa em primeiro plano (aquele que o usuário estiver usando) fosse processado. Qualquer outro programa em execução ficaria dormente. Se desligar a tela, o programa em primeiro plano também fica dormente. Apenas programas ligadas ao relógio, à multimídia e ao GPS possuíam funções especiais para algum processamento em paralelo dentro do iOS.
A Apple desenvolve o iOS em sincronismo com o hardware dos iPhones e iPads, e a versão binária do sistema operacional é exclusiva para cada modelo de hardware, mantendo o sistema rápido e estável mesmo com hardware inferior.
Já o Android nasceu da iniciativa de um desenvolvedor independente em 2005, tendo sido comprado pelo Google e anunciado publicamente em 2007. O Android se caracteriza pelo código-fonte aberta e uso sem custo de licenças, permitindo que qualquer desenvolvedor possa adaptá-lo para sua aplicação.
Outra característica do Android é seu kernel duplo. Ele possui um kernel Linux sob um kernel Java adaptado. Diferente do iOS, o Android foi pensado desde o começo como um sistema operacional facilmente customizável para qualquer aplicação. Embora seja reconhecido como sistema operacional de smartphones e tablets, ele pode ser encontrado em uma variedade imensa de dispositivos inteligentes, de smartTVs a câmeras digitais, geladeiras conectadas a até computadores pessoais. O número de dispositivos rodando alguma versão de Android hoje supera a soma de todos os dispositivos rodando iOS, MacOS e Windows.
Diferente do iOS, o Android possui capacidade multitarefa real, embora ela possa ser limitada na camada de interface com o usuário em algumas aplicações.
A partir desses dados, podemos fazer algumas comparações entre essas duas plataformas.
A Apple diz, com orgulho, que apenas desenvolvendo o conjunto casado entre hardware e software é que se consegue um resultado de excelência perceptível pelo usuário. Esta é uma verdade, porém é tão restrita que não pode ser assumida como algo sério para todo o mercado.
Quando falamos em termos de mercado, estamos falando de milhares de pessoas, cada uma com seus desejos. Algumas querem opções baratas, outras querem processadores poderosos, outros querem gráficos de altíssima resolução em alta velocidade, outros querem a opção de cartões de memória para ampliações, e assim por diante. A Apple fornece no máximo cinco opções de smartphones e menos ainda de tablets, o que frustra a expectativa de muitos consumidores. Há especialistas que afirmam que se o Google é o pai do Android, a Apple é a mãe por este detalhe.
O Android tem a especificação nativa de acomodar diferentes plataformas e pode facilmente ser adaptado a qualquer hardware, inclusive para modelos e configurações que não existiam quando a versão foi lançada. Esta flexibilidade é tudo o que o mercado pede, mas isso tem um custo. O código do Android é mais genérico do que o do iOS (que pode ser focado para um hardware específico) e a necessidade de drivers para cada solução de hardware torna o sistema mais pesado e instável.
Ainda assim, esta diferença explica de forma suficiente porque o iOS, que já deteve mais de 50% do mercado mundial de smartphones, hoje possui 11% deste mercado contra mais de 85% do Android. Se o modelo de excelência técnica da Apple fosse o melhor para o mercado, o Android não teria chances. O modelo fechado da Apple e a fixação na excelência pelo casamento entre hardware e software conduz a longo prazo a um modelo comercial de nicho dos dispositivos.
Ambas plataformas não são tão novas, e muitos dos conceitos de mobilidade avançaram ao longo deste tempo. Em breve, os anseios dos consumidores baterão de frente com as limitações e a idade conceitual destes sistemas. Porém estes sistemas já possuem grandes plataformas instaladas e não é fácil modernizar estes sistemas sem que toda plataforma fique obsoleta e precise ser abandonada em favor do novo sistema. Recentemente, o aplicativo WhatsApp passou a ser oferecido em versão web para todos os sistemas operacionais, exceto o iOS por causa de sua limitada capacidade multi-usuário, mostrando que esta pressão já começou.
Quando falamos de sistemas operacionais móveis no painel dos carros, estas diferenças certamente causarão atritos, pois ambos os sistemas terão de coexistir sob o mesmo hardware. Tanto isso é verdade que a própria Apple desenvolve o seu sistema embarcado CarPlay em QNX e não em iOS, dado que o sistema é focado em smartphones e tablets sobre uma plataforma proprietária de hardware.
Porém, este é um aspecto importante na hora de determinar o hardware que irá para o painel dos automóveis. Se o modelo contemplar uma flexibilização do hardware para atender diferentes públicos, irá beneficiar o Android em detrimento do sistema da Apple. Se houver uma restrição à flexibilização do hardware, a Apple sairá beneficiada, mas ao custo de não atender ao público e à maior estagnação tecnológica do hardware.
A variabilidade dos softwares e a fragmentação da plataforma
Quando compramos um novo computador é bastante comum que ele venha com o sistema operacional pré-instalado. Mas geralmente não é só ele. É muito comum que ele venha com softwares do próprio fabricante e com vários softwares para “experimentar”, como jogos e aplicativos dos mais inúteis aos usuários. O boot da máquina fica lento, e boa parte da memória fica ocupada com inutilidades. Se o usuário tenta remover esses softwares inúteis, descobre que nem sempre é tarefa fácil, e quando consegue, deixa muito lixo para trás, boa parte ainda ligada ao sistema operacional.
Os bloatwares, nome que se dá a esses softwares indesejáveis, além do peso que trazem ao sistema, costumam trazer instabilidades e brechas de segurança que o comprometem.
O bloatware não vem pré-instalado num equipamento por acaso.
O produtor do bloatware paga para o fabricante da máquina um pequeno valor a título de patrocínio. Muitos fabricantes de PC pagam o custo da licença de uso do Windows com o que recebem pela instalação de bloatwares. Para o fabricante da máquina, a presença do bloatware também dá um aspecto de máquina que não vem tão “pelada” para o consumidor.
Desktops e notebooks têm opção. Basta reformatar a máquina, baixar os drivers do site do fabricante e reinstalar o sistema operacional desde o princípio. É impressionante o quanto a máquina se torna rápida em relação à configuração original de fábrica.
Já dispositivos como smartphones e tablets costumam ter o sistema operacional instalado em uma memória fixa (firmware) e não é um processo tão simples substituir por uma configuração limpa. Há muitos detalhes que atrapalham essa migração, de customizações do fabricante compatíveis com a nova versão do sistema operacional à disponibilidade de especificações de chip para programação de drivers por terceiros, deixando ao usuário muitas vezes com a única opção em manter o sistema como está.
O sistema móvel que mais sofre com o bloatware é o Android. Não só o sistema é aberto para customizações, como elas são desejadas pelos fabricantes. Se todos os fabricantes mantivessem o Android puro não haveria diferenciação entre equipamentos de fabricantes concorrentes, levando o consumidor a buscar preço mais baixo, algo que eles não desejam. Mas a customização por fabricante e por modelo leva à enorme fragmentação da plataforma, tornando muito difícil a atualização do sistema.
Em oposição ao modelo do Android, a Apple mantém um leque muito restrito de hardwares e não aceita bloatwares de terceiros e nem das operadoras de telefonia. O sistema operacional é padrão para todos os equipamentos, o que permite a ela fazer atualizações regulares (geralmente anuais) mesmo de equipamentos antigos.
Embora este método seja desejável, é preciso perceber que esta é uma particularidade da linha Apple, possível em função da pequena variabilidade do hardware. Num mercado mais amplo e dinâmico como o do Android há uma constante entrada de novos hardwares, exigindo constante fluxo de drivers específicos e flexibilidade do sistema operacional para lidar com diferentes resoluções gráficas. Então, embora o sistema operacional básico padrão seja desenvolvido pelo Google, é tarefa dos fabricantes de chips e de celulares o desenvolvimento de drivers (pequenos softwares que fazem a interface do hardware específico com o sistema operacional) para seus aparelhos, o que nos trás de volta para o problema da fragmentação.
Destaque para a estratégia intermediária da Motorola. Em vez de customização extrema como faz a concorrência, ela optou por manter o Android praticamente padrão. Ela já oferece a atualização da última versão do Android aos smartphones com firmwares “stock” (sem customizações das operadoras) inclusive para modelos lançados há mais de 1 ano, o que significa algo em torno de 6 meses antes da concorrência. Samsung e outros fabricantes que usam Android vêm estudando esta estratégia e podem vir a oferecê-la no futuro.
Este é um aspecto importante a ser observado pela indústria automobilística nas suas escolhas sobre o carro conectado.
– Se ela optar por um hardware altamente padronizado, as atualizações se tornam mais fáceis e rápidas de serem distribuídas, porém haverá pouca inovação nos equipamentos;
– Se ela optar por maior liberdade na escolha das especificações de hardware, haverá mais inovação, mas as atualizações serão mais difíceis;
– Se ela optar por instalar bloatwares, que opções ela oferecerá aos consumidores para removê-los? Ou não haverá essa opção e os consumidores terão de tolerar o que for instalado?
– Se houver bloatware, as atualizações serão mais difíceis. Haverá investimento em atualizações do sistema do painel? Ou ela optará por manter o sistema o mais padrão possível?
– Como gerenciar a variabilidade de hardware para três sistemas diferentes (Android/iOS/Windows)?
A internet das coisas e a transparência de funcionalidade entre dispositivos
O sistema de conectividade nos automóveis não é mais visto hoje apenas como conectividade com o smartphone. O conceito atual é muito mais amplo e conhecido vulgarmente como “internet das coisas”.
O vídeo a seguir, feito pela Dow Corning para demonstrar o futuro do Gorilla Glass (vidro que reveste a maioria das telas dos smartphones) é o mais lúdico exemplo que tenho para mostrar o que se espera que seja a internet das coisas.
Na internet das coisas tudo conversa com tudo, e o automóvel é, junto com o smartphone, um dos equipamentos principais.
O motorista sai do local de trabalho e já é avisado que tem pouco leite na geladeira e que alguns ingredientes na dispensa estão próximos do prazo de validade. O sistema automaticamente pode encontrar um supermercado mais em conta no caminho de volta e programa o GPS do carro com a rota. Quando estiver chegando em casa, o portão automático pode abrir e a lâmpada da garagem acender automaticamente. E assim por diante.
A informação que a pessoa tinha no espelho do banheiro pode acompanhá-la no painel do carro, no tampo da mesa do escritório e assim por diante. Os dados passam a ser importantes, não o hardware e o software que roda em cada lugar.
Bonito de dizer, mas difícil de realizar. Tudo por causa de um palavrão: interoperabilidade.
Interoperabilidade não é só um palavrão pelo tamanho da palavra, mas também pela idéia “comunista” de igualdade de todos os dispositivos diante de um mesmo protocolo. Fabricantes adoram criar incompatibilidades em sistemas padronizados para escravizar o usuário dentro da sua plataforma, e a interoperabilidade é exatamente o oposto disso. Dentro da interoperabilidade transparente, as plataformas de hardware e software deixam de ser importantes e qualquer produto de qualquer fornecedor é tão bom quanto o dos demais. Este é um aspecto que não agrada os fabricantes de hardware e software.
Num mundo onde a promessa é que todos os dispositivos com parte elétrica conversem livremente, nenhum fornecedor conseguirá fabricar sistemas para todo tipo de equipamento, para todos os modelos e para todos os fabricantes. Para que este mundo se torne realmente interoperável é necessários que todos se atenham a padrões e protocolos abertos fortemente normalizados, de forma que todos os equipamentos “conversem na mesma língua”.
A web é assim, com interoperabilidade total. Não importa se você lê o AUTOentusiastas no seu desktop com Linux, no seu notebook com Windows, com seu tablet iPad ou com no seu smatrphone Android, você sempre usufruirá o conteúdo do site da mesma forma. O site e a plataforma da web não lhe prendem a uma solução específica de hardware e software, pois você sempre consegue obter o conteúdo. Você escolhe que tipo de equipamento, que sistema operacional e em que navegador quer ler nossos artigos aqui. A liberdade de escolha é sempre sua.
Se a web, que reúne uma quantidade infindável de padrões abertos, consegue ser interoperável, por que outras soluções não seriam?
Quando se pensa nessa questão e se vê uma empresa como a Apple pegando um padrão aberto e altamente padronizado como o NFC e fechando para atender apenas o seu sistema proprietário de pagamentos no seu mais novo smartphone, se vê que a distância até a interoperabilidade do vídeo é um sonho muito distante, apesar do problema não ser técnico para ser posto em prática. Ela não é a única a fazer isso, e a soma de todas as incompatibilidades propositais como essa nos colocam muito longe dessa promessa meramente por interesses de cada companhia.
No lugar de todas estas empresas se juntarem e criarem um ambiente de internet das coisas interoperável, o que se vê é cada um oferecendo sua própria solução porque ela é voltada para benefício próprio. O resultado será uma nova versão virtual da Torre de Babel, onde ninguém se entende completamente com o outro. Imagine ir comprar uma lâmpada para a garagem e ter de comprar não apenas a tensão e a potência dela, mas a compatibilidade com o sistema do carro, do smartphone, da smartTV… Isso beneficia o usuário? Nem um pouco, e é um passo para o fracasso da iniciativa.
Sabendo que cada comprador em potencial de seus carros poderá ter um smartphone diferente, é bom a indústria automobilística saber exatamente quais são as reais intenções de cada fornecedor e como isso se relaciona com os smartphones que os compradores em potencial possuirão no futuro para não ouvir reclamações de incompatibilidades depois.
O maior benefício dos usuários com carros conectados passa pela interoperabilidade. É onde estará a melhor experiência do consumidor/usuário/motorista. É por ela que a indústria automobilística deverá lutar junto aos fornecedores de sistema. Mas já vou avisando: esta não será uma tarefa fácil.
Hackers e vírus
Hackers, na acepção da palavra, sempre existiram. A palavra inicialmente se referia a pessoas que geravam interesse especial por determinado assunto, dominando-o muito além das outras pessoas e sendo capazes de feitos notáveis. Leonardo da Vinci era um hacker por definição. Arquimedes também. Entretanto, o termo modernamente ficou ligado aos grandes entusiastas por computadores.
Hackers reais possuem uma paixão e um desejo insaciável por conhecimento. É algo que faz parte natural do hacker tanto quanto o ato de respirar. Bons hackers alcançam um domínio sobre determinado assunto muito além das demais pessoas. Há bons profissionais na área de informática, com muito conhecimento obtido pelo seu esforço pessoal, porém há um limite para o que ele consegue atingir. Este limite não se aplica ao hacker. Por isso costuma-se dizer que só um hacker é capaz de pegar outro hacker.
A internet e suas principais aplicações são todas fruto da imaginação e dedicação de hackers desconhecidos do grande público.
Os tempos românticos dos hackers se foi há muitos anos e há muito dinheiro a ser ganho na internet com informações roubadas e geração de caos para atiçar a ganância de crackers. E contra eles, há os hackers éticos. A especialização dos dois lados se elevou a tal nível que deixou o campo da brincadeira e virou profissão altamente qualificada, mas o espírito hacker continua sendo um fator essencial na formação desse profissional. Hoje fala-se em certos círculos que a internet se tornou um campo de batalha onde se desenrola uma enorme guerra cibernética.
Há anos Hollywood mostra filmes onde hackers causam o pânico geral, gerando o caos no sistema de sinais de trânsito da cidade. Em sistemas bem protegidos e administrados, isso é quase uma fantasia. Entretanto, com a internet das coisas, isso pode se tornar uma realidade.
O carro conectado terá que conversar amigavelmente com uma profusão enorme de dispositivos e isso pode ser uma porta aberta para os hackers.
Hoje os automóveis possuem redes intraveiculares (geralmente uma rede CAN, acessível pela porta OBD-II), mas são redes não conectadas abertamente e, portanto, impossíveis de serem acessadas de fora do carro. Porém, quando o veículo se conectar com a internet, sempre haverá uma forma de conectar a rede intraveicular com a internet, e, através dela, interferir com o funcionamento de um carro, mesmo do outro lado do mundo.
Um cracker pode usar o GPS de um carro para saber onde ele está em tempo real, e no momento preciso, pode incapacitar o funcionamento do motor ou travar o câmbio em ponto morto. Vinte carros atacados desta forma em pontos estratégicos de uma cidade como São Paulo, e o trânsito trava, levando a cidade ao caos absoluto.
Existe ainda a promessa, primeiro dos carros com tecnologia “by-wire”, onde o link mecânico entre volante e pedal do freio é substituído pela automação, e depois a dos carros conectados. Como esses carros com conectividade aberta para a internet se comportarão ao ataque de hackers e vírus? Haverá ameaça de segurança física às pessoas?
Os carros conectados terão de ser altamente seguros contra invasões, algo complexo de se fazer. As dificuldades começam pelo fato de os carros conectados não serem gerenciados por especialistas, e são praticamente abandonados à própria sorte nas mãos de usuários leigos. O problema se agrava com a dificuldade de manter os sistemas atualizados, conforme já vimos. Mas o terceiro fator, talvez o mais importante, esteja na experiência de escrever programas seguros só vir após anos de prática contra mentes mal intencionadas. A história da Microsoft é um bom exemplo dessa última dificuldade.
Quando ela lançou o Windows 95, o foco do sistema operacional era a facilidade de uso. Tudo era feito de forma automática, de forma que o usuário precisava de poucos conhecimentos para operar o computador. Veio o Windows 98, onde ela incrementou ainda mais essa idéia e ainda trouxe nativa a idéia de internet. Foi quando internet se popularizou. As facilidades de uso do Windows abriram um incontável número de brechas na segurança do sistema operacional. Quase todos os dias apareciam novos tipos de ataque e novos vírus, e a Microsoft virou até motivo de piada.
A situação só começou a mudar a partir do lançamento do Windows XP, que era um Windows reconstruído desde as funções mais básicas para ser seguro, mas a maturidade no desenvolvimento de sistemas seguros veio anos depois com o Windows Vista e o Windows 7. Foram 10 longos anos de aprendizado para a Microsoft fazer um sistema operacional seguro, e ainda assim o Windows não pode se dar ao luxo de ficar sem um antivírus se o usuário não for altamente qualificado.
A evolução técnica de desenvolvimento seguro da Microsoft só foi possível graças a uma mudança de postura da empresa. Antes, a Microsoft defendia que seus sistemas eram absolutamente seguros quando visivelmente não eram, atitude que tentava preservar a imagem da companhia e do produto. Com o lançamento do XP, a Microsoft passa a quase obrigar a instalação de um antivírus, e ao invés desta atitude ser interpretada como fragilidade, passou a ser entendida como uma preocupação da empresa com a segurança dos próprios usuários.
Em relação ao Windows, Android e iOS ainda tem alguns anos de maturação pela frente antes de serem realmente seguros, e os desenvolvedores da indústria automobilística ainda estão na infância perto da experiência de codificação segura desses sistemas operacionais.
Também há muita relutância em assumir que os sistemas embarcados são sensíveis a diferentes tipos de ataques e não há um esforço dos produtores para que softwares de proteção sejam instalados. O problema de virus no Android é grave, o Google se mostra neutro ao problema, mas ao menos o problema é bastante conhecido, há muita indicação para que os usuários instalem um antivírus.
Já o caso da Apple é mais complicado. Especialistas reconhecem que o iOS (assim como o MacOS) estão vários anos atrás da experiência da Microsoft, e a Apple cultiva a imagem de que seus produtos são “legais” (“cool”), e ficar alertando para o usuário se proteger porque o sistema é frágil, vai contra essa imagem. A Apple cultiva a imagem de empresa preocupada com a segurança dizendo que inspeciona rigorosamente todos os aplicativos que ela disponibiliza em sua loja de aplicativos (algo que o Google não faz), e a imensa maioria dos seus usuários acreditam piamente que estão absolutamente seguros por conta disso. Este erro pode ser fatal. Empresas de antivírus já demonstraram que vários aplicativos liberados pela Apple possuem funções inapropriadas que podem acessar dados impróprios dos usuários, gerar rastreamentos etc., e que só despertam meses após o aplicativo ser instalado. É uma forma fácil de contornar a vigilância da Apple, e o usuário se sentir seguro em usá-lo. Além disso, só para dar dois outros exemplos de como um iPhone ou um iPad podem ser atacados sem a instalação de aplicativo malicioso, o iOS é frágil a ataques vindos de sites maliciosos e a ataques vindos pelo cabo USB, incluindo a instalação de vírus. Pesquisas mostram que entre usuários que usam Windows e produtos Apple, mais de 90% deles possuem antivírus no Windows contra menos de 15% em produtos da Apple. Isto ocorre porque usuários Apple acreditam que a plataforma os protege.
Esse cenário é tudo o que os crackers desejam para disseminar golpes e o caos.
Aí voltamos à questão da atualização.
Se um automóvel possui um sistema abandonado pelo fabricante, qualquer vulnerabilidade que ele possa conter sempre oferecerá oportunidades aos crackers. Num veículo com 10 anos de uso isso talvez seja até desculpável (embora um veículo travado gerando caos no trânsito não faça diferença entre ser um novo e um com 10 anos de uso), mas não num veículo de três anos.
Temos o exemplo do Android, onde smartphones relativamente novos não são elegíveis de atualização por causa da grande diversidade de hardwares, custo e disponibilização de mão de obra para as customizações específicas de cada modelo, e mesmo no caso do iOS onde dispositivos antigos recebem atualização, o “antigo” quer dizer três anos, muito para um smartphone mas muito pouco para um automóvel.
Em função desses exemplos, passamos a imaginar se o mesmo não ocorrerá com os carros conectados, e abrindo brechas de segurança no trânsito.
Há uma escala de responsabilidade aqui. Um smartphone com vírus pode deixar seu dono sem capacidade de se comunicar, algo facilmente remediável, mas um automóvel com vírus pode comprometer a segurança das pessoas e a funcionalidade do trânsito.
Até quando a indústria automobilística estaria disposta a bancar as atualizações desses sistemas?
Até onde ela está preparada para estes desafios?
Na próxima parte, respeito e filosofia.
AAD