Uma gota de óleo marcava o chão da garagem naquela manhã. Minha visão ficou turva. Era bem embaixo da parte dianteira do Alfa 145. É o fim… pensei.
Estamos aí vivendo um drama novamente.
Caso o leitor tenha perdido a matéria anterior sobre este carro, estamos visitando a história de um Alfa Romeo 145 Elegant de trás para a frente: os acontecimentos narrados aqui são, portanto, anteriores à saga do filtro de ar.
Normalmente, quando não chove, sem querer ser engraçado com a afirmação, me dou o trabalho de ocupar o meu sábado de manhã andando de carro, sem destino e sem objetivo especifico, além obviamente daquele de guiar. Recomendo e afirmo, é uma sensação única.
Da física obtemos a definição de trabalho. O trabalho mede a quantidade de energia que fornecemos ou retiramos de um corpo quando, devido a uma força ele efetua um deslocamento. Nada mais perto do ápice de ser Autoentusiasta. Energia, força e deslocamento, termos presentes na definição teórica e que se adequam perfeitamente ao conceito prático de ser um entusiasta de automóveis.
Mas, deslocar-se para quê? Para gastar pneu e combustível, ora bolas. Precisa de algo mais? Sim, precisa de um carro perfeito.
Com o passar do tempo descobri que o carro perfeito não é aquele vermelho reluzente que sempre figurou como decoração no pôster do meu quarto de solteiro. Aquele quadro, com moldura simples em madeira e fotos sem grande resolução, mas que representava um indefinido objetivo de vida, ficou para trás, assim como a idéia de que um automóvel precisa ser superlativo para ser desejável.
O carro perfeito então, aquele para atender à chamada ao deslocamento, incluído na definição de trabalho, sempre aquela conceito da física e não o do sindicato, pode ser menos super, mais realista. Sem contudo abrir mão de ser sensacional. O “corpo” portanto, que irá efetuar o deslocamento, pode ser aquele que está na garagem da sua casa. Restando, porém, a você gerenciar a devida força e energia, fornecendo ou retirando do seu automóvel algo que poucos irão compreender, uma sensação exclusiva, e que é muito importante e suprema para você, do seu jeito, sem normas ou compromissos.
Da próxima vez que entrar no seu carro e deslocá-lo para algum lugar, faça um exercício de física, ou talvez de metafísica. Curta ele ao extremo, por mais simples ou sofisticado que ele possa ser.
Uma curiosidade nesta questão é que para os físicos, o conceito de deslocamento não é o mesmo de distância percorrida. Enquanto a distância é a medida da linha de trajetória, no caso do automóvel a indicação de total de quilometragem percorrida indicada pelo hodômetro. O deslocamento é determinado medindo em linha reta a diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada. E como a fórmula do trabalho usa deslocamento e força como variáveis, toda a vez que voltamos com o carro para o ponto de partida (quase sempre, portanto), o trabalho resultante desta atividade, ainda que prazerosa, tem valor nulo. Trabalho resultante igual a zero.
Guiar o carro sem outra obrigação, além de fazer andar, não é uma ação mecânica, repetitiva, é uma entrega. Pode parecer uma escolha pouco ortodoxa usar o carro para um fim diferente do transporte, mas é por isso mesmo que se identifica um prazer maroto e imperfeito neste fato, vou andar de carro apenas para curtir e apreciá-lo, violando a função básica para qual ele foi desenvolvido, e pronto.
Desculpem-me os ativistas, mas o combustível a ser queimado para este fim estará servindo apenas para interesses pessoais de divertimento e possui tendências ao egoísmo; já outras pessoas podem até participar do passeio, mas só uma por vez pode assumir o volante.
E preparado para todo este ritual profano cheguei à garagem animado naquela manhã de folga. Até me deparar com a marca de óleo no chão…
A evidência de um problema, a desculpa para o drama. O que teria acontecido?
Primeira ação: confirmar que o óleo que calamitosamente manchava o chão da garagem era mesmo proveniente do motor do Alfa, uma espécie de prova de paternidade se fazia necessária. Uma lanterna e um espelho de inspeção são chamados aos trabalhos. Encontro o caminho feito pela gota rebelde e fujona, e identifico a peça que a deixou escapar: a vedação entre a bomba de óleo e o trocador de calor água-óleo. Em vez da serenidade, necessária aos investigadores e detetives diante de uma prova contundente, aufiro uma sensação de dúvida, o que haveria causado o problema, há quanto tempo estamos perdendo o precioso líquido lubrificante… tomo a decisão de trocar o iminente passeio pelo imperativo ataque ao problema.
Carros para gostar de manter
Descobrir o prazer de cuidar de um automóvel foi uma das minhas primeiras experiências tangíveis com estas máquinas. A migração de criança e passageiro (nem sempre no banco de trás) para um contato mais intimo com o automóvel foi ocorrendo aos poucos, à medida gradativa na qual meu pai permitia a ampliação na minha participação no austero (pelo menos para ele) cerimonial de lavar o carro.
A primeira tarefa que ganhei, por volta dos 10 anos de idade, foi a de lavar as rodas do carro. Qualquer iniciativa que eu pudesse inventar para tentar discutir a tarefa era mitigada pelo comentário do meu velho, que dizia que minha altura era a habilidade que ele precisava, as rodas estavam mais próximas da minha cabeça do que da dele. E foi assim sempre, aproveitando a metáfora, mesmo tendo crescido, rodas e pneus conservaram-se muito presentes em meus pensamentos.
Chegando aos 12 anos, além já de ter ampliado a minha participação e abrangência no ritual de limpeza, que incluía agora todas as partes abaixo da linha da cintura do carro, comecei a ter a chance de ajudar na movimentação do carro dentro da garagem, passando a ter a imensa e maravilhosa responsabilidade de virar o volante (antes da popularização dos sistemas de direção com assistência hidráulica), com o meu pai servindo de força motora, nas pequenas manobras de afastamento ou aproximação da parede.
Em casa, na garagem, ainda fazíamos pequenas outras operações interessantes, como troca de lonas de freio, desengripamento do “burrinho”, abastecimento de fluidos diversos, verificação e complemento do nível da água da bateria, ajuste do cabo do freio de mão, troca de filtros e coisas básicas assim. Meu pai mantinha uma pequena armazenagem de alguns produtos bacanas, e a vida com o automóvel parecia ser mais interativa naquele tempo. Desmontar a “panela” do filtro de ar, para acessar o carburador, soprar um giclê… Não conseguirei passar para meus filhos este ritual da mesma maneira que eu pude experimentar um dia.
Naquela época uma correia do alternador podia ser encontrada em alguns porta-luvas, coisa difícil de aceitar nos dias atuais. Tenho saudade do procedimento de teste de lâmpadas, quando meu pai dentro do carro acionava os comandos para que eu pudesse confirmar com um “acendeu”. De vez enquanto e de modo astuto ele simulava uma falha no acendimento (gritando freios e não pisando no pedal, por exemplo) e solene ele dizia que era apenas para confirmar que se eu estava prestando atenção.
Fazíamos também o rodízio dos pneus, incluindo o estepe, direitinho como vinha descrito no manual do proprietário, eu adorava, e ainda curto muito este procedimento. Por sinal, tenho uma fissura não compreendida completamente por rodas e pneus, acho que são itens muito representativos em um automóvel. Apesar do conjunto representar apenas 10 dos mais de 5.000 itens que compõe um veículo, para mim pneus e rodas são metade do sucesso, do desempenho, do comportamento e do valor estético de uma maquina deste tipo. Não precisa criticar nem tentar entender, caro leitor. Só sei que é assim.
Isso me traz ao Alfa Romeo, com atenção me dedico a entender a sua manutenção básica e reconheço que posso executar muito menos atualmente do que arriscava nos carros de outrora. Encarar a desmontagem das conexões da bomba e do pequeno trocador de calor, cúmplices e culpados pela gota de óleo no chão, parecia arriscado demais para quem tem pouco mais do que uma cachola cheia de boa vontade e uma caixinha com algumas ferramentas.
Mas tudo depende de como você encara o desafio. Para algumas pessoas não faz sentido dedicar-se a cuidar do carro, encaram a situação apenas como usuários. O automóvel, assim como equipamento de alto grau de confiabilidade, deve funcionar bem e pronto. Eventuais problemas são encarados por estas pessoas como “falhas” e não necessidade de manutenção. Nestas situações elas se direcionam para um prestador de serviço especialista, não sem antes esbravejar e ofender a casa automobilística que fabricou o produto.
Fico surpreso de ver alguns anúncios de veículos usados em que a frase “revisado, com manutenção em dia e troca de óleo” é destacada como atributo do bem à venda. Manter o carro em bom funcionamento e com a manutenção em dia deveria ser uma obrigação e não um diferenciador competitivo.
Com estes pensamentos na mente, deitei sob o Alfa e comecei a analisar a possibilidade de resolver o problema. Mais uma vez o drama era maior do que a realidade e um bom reaperto colocou a situação em modo regular novamente. Aproveitei a posição pouco ortodoxa em que me encontrava e fucei um pouco outras regiões da parte baixa de motor e caixa de câmbio e felizmente nada parecia merecer atenção especial.
Abri um frasco de óleo para motor, com o prazer de quem abre uma garrafa de liquido precioso e completei o pouco que faltava para o nível máximo. Baixei o capô e como se fosse um mecânico de competição confirmei para mim mesmo que estava tudo certo para partir. Era hora de retomar o plano do trabalho, aquele com resultante igual a zero.
Tratei de aproveitar o passeio para também usar o motor em vários regimes, e assim verificar mais tarde a eficácia do que parecia ter sido um eficiente reparo, nenhuma gota de óleo voltou a se apresentar deste então. Que bom.
Quando ando assim com o Alfa me sinto maior, mais realizado. Como antecipei, não precisa ser um ultra-esportivo ou um super-moderno. O 145 Elegant, com seus 19 anos de idade e sua condição de ligeiramente especial, atende à minha ambição de curtir um carro com entusiasmo, com prazer elevado e, neste caso, ter o veículo em boas condições de uso, sem defeitos que incomodam ou que ponham risco à segurança, só aumenta a vontade de curtir.
Um dos motivos pelos quais escolhi o Alfa foi o som que sai do motor e do sistema de escapamento. Adoro passar em ruas tranqüilas e poder esticar o giro do motor para ouvir a sinfonia preparada com atenção e cuidado pelos engenheiros da marca. O modo com que o carro entra nas curvas, a troca de marchas da caixa de câmbio precisa e ainda justinha, mesmo com a idade, são detalhes que transformam o passeio em uma obra.
Como um competente artista incorpora uma personagem e busca extrair o máximo do papel que lhe foi incumbido, gosto de guiar o carro pensando que se prepara um espetáculo. De maneira harmoniosa espero que tudo dê certo, tento acertar a melhor dosagem do freio, busco usar da melhor forma a curva de torque disponível no motor, me esforço para escolher a marcha ideal em cada situação de condução, trabalho para aprimorar minha capacidade em fazer curvas e acelerações perfeitas, de modo rápido mas elegante.
Experimente andar de carro sem um objetivo definido, além daquele principal, primordial e onipresente, só pelo prazer em andar de carro. Em vez de querer chegar a algum lugar, querer chegar aos limites de condução do carro, trocar o ato de transportar pessoas pelo ato de transportar seus sonhos sobre rodas. Cuidar e ser atencioso com a manutenção dele, não para poder revendê-lo melhor, mas para pela contentamento e dignidade em ser um dono melhor.
De vez em quando, em vez de abastecer o tanque com combustível suficiente para ir a algum lugar, realizar alguma tarefa inteligente ou produtiva, abasteça o tanque com o combustível necessário para alimentar o fascínio de ser entusiasta.
Que drama, e que prazer!
Continua…
FM