Assim como é reservado aos grandes fatos da história da humanidade, ao buscarmos detalhadamente pela justa e exata definição do responsável pela concepção do desenho do Alfa Romeo 145, não encontramos uma resposta única e descobrimos que sua paternidade pode ser atribuída a mais de um grande nome, neste caso dois representantes de gênios da arte do design automobilístico: nada menos que Chris Bangle e Walter D’ Silva estão associados a sua gênese.
A história envolvendo a dúvida e a dupla famosa na arte em desenhar carros seria mais ou menos assim:
Chris Bangle trabalhava no tradicional Centro de Estilo Fiat em Turim e imaginou um hatchback de quatro portas. Porém, como o produto final viria a ostentar no seu capô e na tampa do porta-malas o belíssimo brasão Alfa Romeo, o desenho proposto por Bangle seguiu posteriormente para o departamento de Design da Alfa na cidade de Arese. Lá o grande chefe era simplesmente o designer italiano Walter Maria de Silva (que apesar do nome, que poderia ser muito bem de um bom brasileiro, nasceu em Lecco na Itália, sendo sua família de ascendência portuguesa).
Walter D’Silva, um dos mais premiados designers de automóveis da nossa época, é atualmente o chefe supremo de Estilo do Grupo Volkswagen.
Christopher Edward Bangle é americano porém começou sua carreira na Europa, mais exatamente no Centro de Estilo da Opel da Alemanha. De Silva, que é cinco anos mais velho do que Bangle, iniciou a sua carreira no Centro de Estilo da Fiat em Turim, em 1975. Três anos depois começou a trabalhar no estúdio R. Bonetto, em Milão, dedicando-se sobretudo ao design de interiores, após passagens no Instituto I.De.A., também em Turim, e um breve período no Trussardi Design Milano. Após este percurso foi contratado pela Alfa Romeo como responsável pelo Centro de Estilo Alfa Romeo.
Foi assim que Bangle, um grande e às vezes polêmico nome do design automobilístico, viu sua idéia original ser avaliada pela equipe de Walter D’Silva. Em Arese, o pessoal da Alfa, contando ainda com a ajuda de Bangle, simplificou as linhas do conceito original e decidiu por uma carroceria com apenas uma porta de cada lado. Um par de pára-lamas dianteiros mais musculosos seria também adicionado nesta transformação.
O veículo que foi então concebido para receber as quatro portas, e que viria a ser conhecido como Alfa Romeo 146, foi inteiramente desenvolvido pela turma de Arese, neste caso sem nenhuma participação de Bangle.
Como ponto de partida para o desenho da carroceria do novo Alfa 145, para Bangle, que seria mais reconhecido mais tarde principalmente pela sua meteórica passagem pela BMW, onde promoveu uma revisão total das linhas dos veículos da marca, nem sempre agradando a todos, a engenharia disponibilizava uma nova plataforma desenvolvida em conjunto entre Fiat, Lancia e Alfa Romeo para substituir a de modelos como o Alfa 33 e o Lancia Delta. Bangle chegou a afirmar certa vez que a vida do futuro 145 havia começado como esboço de um novo Lancia Delta, neste caso ele havia imaginado um sedã (notchback) de 2 e ½ volumes que teria uma responsabilidade enorme, em se tratando de servir como sucessor do fantástico Delta.
Entretanto a versão final, apresentando uma carroceria afilada na frente e com a traseira truncada em corte abrupto, foi a que apresentou um melhor resultado nos testes em túnel de vento. Um enxerto na parte posterior foi providenciado para transformar o notchback em um hatchback e o resultado final foi uma melhoria sensível no coeficiente aerodinâmico (Cx) do protótipo realizado em escala real.
Como toda história italiana, mesmo que neste caso esteja sendo orquestrada por um americano, precisamos passar por um momento de drama, mais propriamente um com um certo caráter de lenda. Diz-se que, antes mesmo de que Bangle pudesse aboletar-se em um canto e apreciar o resultado de seu trabalho, apareceu um dos gurus do Centro de Estilo Fiat do momento, Mario Maioli, que viu o modelo do que seria o futuro Lancia logo após os testes no túnel de vento e perguntou ao chefe de Chris Bangle na época do que se tratava. Ermanno Cressoni era o responsável pelas atividades de Bangle no estúdio e teria confirmado que era o resultado do trabalho do jovem designer.
Maioli teria retornado para analisar melhor a proposta de Bangle e retornado com uma exclamação: “Mama mia, ma sembra una Alfa Romeo!” (“Minha mãe – expressão aqui amenizada pelo autor – mas parece um Alfa Romeo”). Pego de surpresa pela constatação daquele que era a referência em estilo da Fiat, Cressoni prontamente teria se safado com a resposta: “Mas é claro, é exatamente isso, um Alfa Romeo!” Assim, a identidade do modelo foi alterada subitamente antes mesmo de ter seu registro de nascimento oficializado. Mais ou menos como se alguém tivesse acidentalmente derramado leite na xícara de café Expresso e assim tivesse inventado o Capuccino! (será que não foi?)
Paciência; às vezes é mesmo de um modo atravessado que surgem as melhores coisas da vida.
Outra história interessante é sobre a linha ascendente que contorna a parte inferior do vão da janela nas portas dianteiras do Alfa Romeo 145. Este recurso de estilo promove uma quebra na linha de cintura do modelo e remete ao dinamismo, mesmo com o veículo parado. Esta seria uma idéia nascida muito antes nos corredores do Centro de Estilo Fiat, mas que por causar um ligeiro aumento nos custos de produção quando comparado com o uso de uma simples linha reta, aguardava o modelo certo e com o valor agregado suficiente para que pudesse ser implementada.
Para fechar as afoitas e fantásticas histórias fantásticas envolvendo o 145, Bangle conta também que a grade frontal originalmente preparada para o capô do seu protótipo, e depois substituída por D’Silva, lhe foi entregue como presente de despedida quando de sua saída da Fiat.
Walter D’Silva deixou o pessoal do grupo Fiat depois de 12 anos de serviços prestados, para se juntar ao conglomerado Volkswagen, inicialmente como chefe de estilo da Seat, no final de 1998; Chris Bangle já havia saído, para a BMW. Curiosamente, ou não, a Fiat chamou Andrea Zapatinas, que também estava na BMW, para assumir o Centro de Estilo da Alfa Romeo em Arese no lugar de D’Silva, como a imprensa internacional costuma se referir àquele que foi um dos pais do nosso Alfa 145, modelo este que seguiria em produção, após um pequeno face-lift em 1999, até o ano 2001.
Por sua vez, Zapatinas havia trabalhado com Chris Bangle na Fiat, tendo contribuído também para o desenho do Fiat Coupé de 1993 e para o roadster Fiat Barchetta de 1995. Bangle e Zapatinas seguiram para a BMW ao mesmo tempo, logo após o trabalho do 145 e o inicio da sua produção em 1994.
Andrea Zapatinas é Grego, porém estudou nos Estados Unidos, na mesma escola por onde passou Bangle, o Art Center College of Design na Califórnia. Ele participou também da gênese do Alfa Romeo 145, pois integrava a equipe de Bangle para o projeto que resultou no modelo em escala real, aquele que depois seria refinado e finalizado em Arese.
Se fosse uma pizza, os ingredientes do desenho do querido Alfa 145 deveriam, portando, fazer referência à multi-culturalidade da experiência de seus criadores: Itália, Portugal, Alemanha, Estados Unidos e Grécia. Referências para aquelas pessoas que se debruçaram para extrair um automóvel que, ainda que simples, como um hatchback médio deve ser, pudesse ter um sabor especial.
Alguém arrisca uma receita? Eu apenas oficializo o nome: Pizza 145.
O Alfa Romeo 145 mede exatos 4.061 mm de comprimento, tem uma largura de 1.712 mm e uma altura (viva as alturas do carros de outrora!!) de 1.425 mm. Com um entre-eixos de 2.540 mm, possui rodas posicionadas bem nos extremos da carroceria, e pesa (no caso do Elegant 2.0, vendido no Brasil) cerca de 1.250 kg.
Em termos de concorrência para o seu desempenho e estilo, lembramos que naquele tempo o mercado era muito competitivo (me faz lembrar como também eram aqueles anos de Fõrmula 1) e a lista de oponentes era repleta de boas opções:
Audi A3
Renault 19
Renault Mégane
Citroën ZX
Citroën Xsara
Opel/Chevrolet Astra
Peugeot 306
Ford Escort
Ford Focus
Volkswagen Golf
A reabertura do mercado brasileiro nos permitiu participar, ainda que não em sua plenitude, destes áureos tempos quando reinavam os hatchbacks e notchbacks (e não os SUVs), ficávamos mesmerizados com a simplicidade e perfeição dos traços do Golf, intrigados com a ousadia do ZX e não podíamos deixar passar um A3 vermelho sem virar a cabeça para o acompanhar. Eu particularmente acho todos os concorrentes do 145 listados acima muito interessantes, maiores que os pequenos hatchs de entrada e não tão grandes e complicados de desenhar como os sedãs. Estes modelo intermediários me atraem bastante.
A carroceria sem a necessidade de ostentar o porta-malas saliente deixa um grau de liberdade maior para os estilistas e a possibilidade de ousar com as lanternas traseiras e a tampa do porta-malas faz de cada um dos modelos citados um exercício de design e um prêmio de beleza.
Neste contexto gosto de salientar ainda mais as linhas do 145. Só para ficar nos quesitos lanternas e porta-malas, já dá para desenvolver uma tese. A tampa traseira do modelo Alfa não começa na tradicional linha do fim do teto. Começa antes, muito antes. A abertura maior dá a possibilidade de facilitar o carregamento do porta-malas, mas também enriquece o design, como se o final do teto fosse um mini-aerofólio integrado.
Já as lanternas são afiladas e demonstram o cuidado em acertar o desenho com o restante da carroceria, mantendo o ângulo em “V” da janela traseira na parte superior e alinhando sua parte inferior com a linha reta do pára-choque. O sistema de lentes que esconde o branco da luz de ré e o amarelo das luzes direcionais são outra sacada e prova de atenção aos detalhes presentes nas lanternas traseiras do nosso (e de outros) Alfa.
Até mesmo o acabamento do cano de descarga, cuidadosamente acolhido pelo recorte do pára-choque traseiro e com ponteira cromada, merece a sua menção. É mesmo para gostar de ver.
Os volumes encorpados dos pára-choques são amenizados pela pintura em preto das faixas centrais. Interessante o tom preto não ser plástico exposto, é tinta, e isso obviamente encarece o processo de produção, pois é necessário “mascarar” esta região e depois finalizá-la na cor certa, sempre respeitando o tempo de cura da pintura em ambos os trabalhos. Tanto que no face-lift final — versão que não veio para o Brasil — foram adotados pára-choques integralmente pintados na cor da carroceria em clara tentativa de reduzir os custos.
Como na fachada de um prédio de escritórios de luxo, a composição de vidros laterais escondendo a estrutura metálica do corpo da carroceria do Alfa Romeo 145 é uma obra-prima para os olhos. Novamente com o compromisso de elevação de custos, vidros curvos fazem o acabamento da coluna traseira (“C”), mantendo a continuidade da cobertura envidraçada na parte posterior do modelo.
Propositadamente para quebrar o desenho e ressaltar ainda mais a parte posterior envidraçada, a coluna central (“B”) é espessa e não coberta com adesivos escuros. Além disso, esta parte da carroceria é apoiada em um “ombro” da lateral o que ajuda a definir a linha de cintura e também encarece o processo produtivo, pois requer uma pele em chapa para cobrir todo o perfil da porta. Nos processo mais simples a cobertura em adesivo escuro da coluna “B” substitui esta pele externa em chapa contínua.
O ângulo ligeiramente aberto da coluna “B”, associado ao estreitamento da área envidraçada e ao “degrau” na linha da cintura da porta dianteira, conferem à lateral do 145 uma sensação de dinamismo, parecendo estar pronta para o ataque. A frente baixa e afilada completa a imagem de querer furar o vento e agredir o asfalto em busca de desempenho e velocidade.
Os frisos que circundam todo o veículo, são uma insídia estilística à parte. De um simples sulco que conecta as duas lanternas traseiras pela sua parte inferior, alinhando-as, tornando-as paralelas à linha formada entre o pára-choque e a tampa traseira, e contribuindo também para interromper o excesso de chapa lisa daquela região, passamos pelo forte vinco na lateral que parte agora da parte superior do pisca dianteiro, suportando a maçaneta da porta e encerrando sua trajetória convidando a lanterna traseira para participar do espetáculo, chegamos ao rebaixo na parte inferior da lateral que conecta as duas caixas de roda e provoca a continuidade entre as linhas dos pára-choques. Não podemos esquecer do desenho do capô, que de forma contígua ao coração Alfa Romeo da pequena grade falsa, promove uma intimidante representação em “V”, fazendo aguçar a curiosidade sobre o que teremos ali embaixo, puxando todo o conjunto para o desfile.
Não é apenas para gostar de ver, é para apreciar e degustar. Sempre à moda, como pede uma boa receita italiana.
Sem drama, sem igual.
FM