O ano era 1935 e Dick Seaman estava desencantado com a ERA (English Racing Automobiles), fabricante inglesa dos carros de corrida que dominavam a classe até 1,5 litro, também chamada de voiturettes. O ERA com que competia era mal preparado pela fabricante e ele se convenceu que ela não tinha gente nem tempo para manter carros que não os de sua própria equipe oficial. Competitivo e determinado como era, e a conselho de seu amigo Guido Ramponi, tratou de formar sua própria equipe. O italiano Ramponi fora piloto oficial da Alfa Romeo na década anterior e assim como Hemann Lang, que veio a pilotar para a Mercedes, era engenheiro mecânico, e o desenvolvimento técnico do automobilismo da época deve muito a eles.
E então Dick contratou o brilhante Jock Finlayson como mecânico exclusivamente seu. Com a ajuda de Ramponi, revisaram seu ERA de 1,5 litro e as vitórias começaram. Venceu a gigantesca subida de montanha no passo alpino Grosslockner, na Áustria; no veloz autódromo de Pescara, na Itália; em Berna, na Suíça, e brilhou na subida de montanha de Freiburg, na Alemanha, com tempo só um segundo mais lento que o do alemão Hans Stuck que pilotava o imbatível e potentíssimo Auto Union Tipo C V-16. Vale dizer que naquela época as corridas de subida de montanha tinham grande importância e que os Auto Union, com motor central-traseiro e potência acima de 400 cv, eram o demônio nas subidas de montanha, fora que Stuck era especialista na modalidade. Portanto, ficar só um segundo atrás do alemão, e com um carro com pouco mais de 120 cv, foi um resultado fenomenal. O sabor das vitórias vinha acrescido de algo mais: ele estava batendo a equipe oficial da ERA.
Seaman contratou o jovem Tony Birch como empresário, que juntamente com Ramponi o encorajou a comprar um Delage GP de 1927, carro francês, e grande quantidade de peças sobressalentes, que pertencia a Lord Howe. O carro tinha quase dez anos, mesmo assim eles acreditaram que aquele 8-cilindros em linha de 1,5 litro com compressor tipo Roots, dois comandos no cabeçote e multi-roletado, podia produzir ainda mais potência que os 170 cv a 7.000 rpm originais. Esse Delage foi resultado de Louis Delage ter dado livre escolha para o genial Albert Lory projetar e construir um carro para competir no Campeonato Europeu de Grand Prix na classe até 1.500 cm³. O único erro do projeto era que os pilotos torravam os pés, de tanto calor que emanava do motor e escapamento. Alguns desistiam e caíam fora para meter logo os pés em baldes de gelo.
Em 1929, o monegasco Louis Chiron participou com ele da 500 Milhas de Indianápolis e chegou em sétimo, com média de 140,3 km/h.
O leitor já deve ter percebido que essa era uma tremenda potência específica (113 cv/l) e uma tremenda rotação, para a época, de pico de potência. Só para comparar com o que acontecia naqueles tempos entre os carros de rua, o motor do Ford modelo A, também de 1927, deslocava 3,3 litros e produzia 40 cv a 2.200 rpm (12,2 cv/l). E com os carros de corrida, lembro de um Riley Brooklands que testei, também de 1927, cujo motor aspirado de 1,1 litro, cabeçote de câmaras hemisféricas, entregava ótimos 50 cv (45 cv/l). Lembro também de um Alfa Romeo 6C 1750 (1,75 litro), de 1933, que também testei, motor superalimentado, cuja versão de corrida produzia pouco mais de 100 cv, que com ele o italiano Tazio Nuvolari venceu a Mille Miglia. Esse Delage, como se vê, estava à frente de sua época, Dick e Ramponi viram e Dick o comprou.
Na garagem dos pais de Dick, em Kensington, Londres, o mestre Guido Ramponi botou mãos à obra nessa intrincada máquina com duas bombas de óleo, duas de água, e por aí ia. O virabrequim, de alumínio, era apoiado em 9 rolamentos. Cada comando girava sobre 8 rolamentos. Ao todo eram mais de 60 rolamentos. Trocaram os pistões, válvulas, melhoraram o fluxo do cabeçote, aumentaram a pressão do compressor, e incrementaram-no com outros detalhes secretos que só o mestre Ramponi para contar. Trataram de trocar a caixa de câmbio, que era uma Wilson pré-seletiva, uma adaptação que Lord Howe havia feito, e colocaram a caixa Delage de 5 marchas que equipava um modelo V-12 de 2 litros de 1925.
Aliviaram o peso do carro também. Tanques de combustível e óleo, o radiador e rodas foram trocados por materiais mais leves e com essas e outras conseguiram tirar ao redor de 110 kg das costas desse endiabrado motor, que passara a produzir ao redor de 185 cv (123 cv/l) e virava a 8.000 rpm. No dinamômetro chegaram a 9.000 rpm sem problemas. Calculo que esse Delage não chegava aos 740 kg de peso, o que dá para imaginar uma relação peso-potência de ao redor de 4 kg/cv; tipo um Gol com 230 cv, portanto andava forte, bem forte.
Modificaram a suspensão dianteira, de eixo rígido e feixe de molas, e instalaram freios mais potentes da Lockheed com tambores 432 mm de diâmetro. Pintaram-no com a cor preferida de Dick, preto, com rodas prateadas. Ficou lindaço. De babar.
Dizem que o som emitido por esse motor é de arrepiar. Acredito, fácil. O compressor não abafa o ruído como o turbocompressor.
E assim foi Dick para a primeira corrida, em Donington, em maio de 1936. Venceu. Nesse mesmo mês competiu contra nove ERA na Ilha de Man, e também venceu. Mas no mês seguinte, em Nürburgring e Peronne, Dick perdeu o controle, rodou e saiu da pista em ambas corridas, segundo ele, por seus próprios erros.
O carro era incrivelmente robusto e confiável, pouca manutenção requeria. E então contratou mais um excelente mecânico, “Lofty” England, que depois da 2ª Guerra Mundial veio a entrar para a Jaguar para ser chefe da equipe de competições — sob seu comando a Jaguar venceu cinco 24 Horas de Le Mans —, depois diretor da empresa, depois presidente. Dick, como se vê, sabia escolher sua equipe.
E assim venceu no veloz circuito de Pescara, venceu em Berna, e venceu de novo em Donington onde bateu diversos carros de cilindrada muito superior. E com essas vitórias ele obviamente ficou em evidência, o que fez com que a Mercedes, que então liderava as corridas de Grand Prix com seus “Flechas de Prata” patrocinados pelo governo, lhe voltasse os olhos. E assim ele foi convidado a participar da equipe.
Ele foi, claro, já que era esse o seu objetivo final. Foi, aprendeu, principalmente com o grande piloto alemão Rudolf Caracciola, venceu, saudou a bandeira nacional-socialista nessas vitórias, o que muito desagradou os britânicos, mais veio a morrer num acidente no GP de Bélgica em junho de 1939, em Spa-Francorchamps. Vale lembrar que Hitler enganou muita gente boa por ali, assim como um certo alguém enganou muita gente boa por aqui.
Mas antes o Delage fora vendido ao Príncipe Chula, do Sião, piloto que era patrocinado pelo primo, o rei do Sião (nada mau), que depois o vendeu para Reg Parnell, que na década de 50 o vendeu para Rob Walker, que o restaurou. Em 1968 a coleção de Parnell sofreu um incêndio, porém, miraculosamente o Delage sofreu danos somente reparáveis. E ei-lo, lindo, lindo, e endiabrado.
AK