Já compartilhei com os leitores do AUTOentusiastas um pouco de minha história com o modelo MP Lafer, que durante muitos anos foi meu único carro. Gosto tanto de guiar este conversível que certa vez um senhor de respeito se referiu a mim como fanático pela marca. Fiquei sem responder para ele, escondendo meu desapontamento, pois não me considero fanático por nada. Fanático é o sujeito que só tem um assunto na cabeça e a minha é povoada por diversos temas, como futebol, mulher e rock ‘n’ roll – sem contar a salvação da minha alma, por causa dos pecados que já cometi.
No entanto, foi bom ter recebido esse comentário: não é de bom tom ficar estigmatizado por causa de algo material. Isso aconteceu na mesma época em que minha esposa engravidou. Saber que você será pai mexe com suas idéias. A família iria crescer em 50% e disse para a Renata: “O MP Lafer só leva duas pessoas, então precisarei comprar um carro novo”.
“Sério que você vai comprar um carro novo?” — ela, incrédula, questionou.
Como sou um profissional autônomo, sem salário fixo, decidi que compraria um carro à vista, sem fazer grandes malabarismos, sabendo que ficaria com o veículo por muitos anos. Vi um Siena da Fiat, um Fiesta da Ford e um Sandero da Renault. Neste último cheguei a sentar no banco traseiro e me empolgar com o espaço. Estava sacando o cheque quando me veio uma imagem na mente, levando minha filha para escola. Senti aquela angústia que arrebatou Raul Seixas, ao citar seu Corcel 73 na canção “Ouro de Tolo”.
“Uma vez na vida quero ter um carrão” — pensei. Ao invés de comprar um automóvel popular — zero-quilômetro — mudei a mira para um modelo importado usado, mas que fosse completo. Aí confesso: pesou meu sangue italiano. Deixei Audi, Mercedes e BMW de lado e fui seco num Alfa Romeo, com seu design apaixonante e sua áurea de romantismo. Pesou na escolha, também, um artigo do Arnaldo Keller, onde ele convence sua filha a ser dona de um Alfa Romeo 145.
Ao avistar um Alfa Romeo 156 na internet, enviei inclusive um e-mail para o Arnaldo, como que perguntando para o lenhador se poderia acender a fornalha. Logicamente ele — sempre solícito e atencioso — me incentivou, passando algumas dicas para avaliar o carro, que acabei comprando de um mecânico de Jundiaí, especialista em Fiat e Alfa Romeo. Era o veículo de uso pessoal do Joel, que me avisou que seria o terceiro dono daquele sedã de nome e sobrenome extravagante, algo perdoável num modelo italiano: Alfa Romeo 156 Twin Spark 2.0 Elegance.
Havia me apaixonado por aquela máquina na primeira volta, empunhando o volante de madeira, tomando vento pelo teto solar, engatando marchas como se fossemos velhos amigos. “A Renata que nos aceite, pois vou levar você para casa” — disse para a minha futura amante de quatro rodas.
Meu pai, que havia me dado carona para buscar o 156, não quis guiá-lo quando chegamos em Paulínia, mas fiz questão de emprestá-lo para o meu sogro dirigir. Ele, católico praticante, costuma levar seus carros para uma bênção em Aparecida. Como sou protestante, não ouvi seu conselho.
Por castigo ou não, logo nos primeiros dias passei por um desapontamento. Estava voltando de um compromisso profissional. Ao fazer uma conversão para a direita, na esquina junto a um posto de combustíveis, levei uma pancada na lateral do carro. Ia rodar por completo, mas segurei o touro no volante, apontando para a direção oposta, e consegui estacionar.
Uma Ford Pampa, com uma charmosa pintura do tipo “saia-e-blusa” (vermelho ferrugem sobre vermelho barro) estava estacionada na avenida, engatando a primeira marcha no exato momento da minha conversão, às 9 horas da noite. A explicação: neste horário o posto abaixava o preço do litro do álcool em cinco centavos. Foi o que me explicou o tratorista, dono da caminhonete, reconhecendo a culpa pela colisão imediatamente.
O estrago foi considerável: começou pela porta do passageiro dianteiro, amassou bastante a porta traseira, pegando também o pára-lama e pára-choque traseiro. O elemento me acompanhou até em casa, lá perto, me passou seu número de telefone celular e pediu que eu ligasse de volta, com o valor do menor orçamento para fazer o conserto.
No dia seguinte, fui até a oficina mais badalada do centro. O gerente olhou para o estrago e condenou a porta sem dó. Disse que teria que encomendar ela e que isso custaria uns R$ 9.000,00 — fora a mão de obra. Era quase metade do valor pago pelo carro e, se isso se confirmasse, seria melhor desmontá-lo para vender as peças.
Fui até uma funilaria na periferia da cidade, que ainda arruma Parati, Del Rey, Monza e outros carros velhos que ainda não são colecionáveis. O dono do negócio olhou, olhou, botou a mão no queixo e disse que dava recuperar a porta, mas que ficaria caro. Quanto? R$ 1.700,00. O serviço — perfeito e digno de sinceros elogios — ficaria pronto em uma semana.
Na noite seguinte a Pampa ferruginosa apareceu no portão de casa. O tratorista estava ansioso, pois eu não havia ligado para ele. “O conserto vai ficar em R$ 1.700,00” – disse para ele. “Jean, não tenho condições de pagar isso à vista, mas você pode me parcelar em 17 vezes?” – ele retrucou.
“Vamos fazer melhor: não vou lhe cobrar um centavo sequer. O Pai do Céu me deu condições para comprar este carro e consertá-lo sozinho — não vou tirar isso de você”.
Os olhos dele lacrimejaram. Ele me abraçou encostando a cabeça em meu ombro direito. “Você é meu irmão. Vá em paz, mas tome muito cuidado no trânsito” — me despedi dele.
Meus amigos, não sou um moralista. Longe disso. Mas posso afirmar o seguinte: nada é mais libertador do que perdoar de coração.
Porém, eu precisava tirar a “nhaca” daquele Alfa Romeo 156. O que poderia fazer? Dar um banho com sal grosso nele? Achei melhor fazer logo uma viagem, para perder o medo de guiar um carro importado, de manutenção teoricamente mais complicada.
Logo, as pequenas viagens de fim de semana foram se sucedendo, especialmente depois que a Carolina nasceu e completou alguns meses de vida. Os passeios em família para Itu, Holambra, Jaguariúna, Pedreira e Serra Negra foram reforçando minha convicção, espantando para lá o arrependimento pela aquisição do veículo.
Nestas ocasiões aprendi a dirigir de modo suave e moderado. Penso que recebi o diploma desta disciplina quando estava serpenteando pelo Circuito das Águas, voltando para casa, quando começou a chover. Olhei para o lado e vi minha esposa e minha filha dormindo — um sinal pleno de confiança, em mim e na máquina. Foi um momento tenro e memorável, acompanhado pelo ronco gostoso do motor, que dispensa o uso do rádio.
Mas ainda faltava algo que preenchesse aquela expectativa que tinha na busca por aquele carro. Tal lacuna não teria como ser preenchida viajando com a família, com o freio de mão psicológico acionado. Tive a oportunidade de ir a Campos do Jordão sozinho, por ótimas rodovias, e senti que daquele modo egoísta poderia extrair mais prazer em dirigir.
Ao negociar um alvará para ir até Águas de Lindóia prestigiar um encontro de carros antigos, tive a feliz idéia de convidar um amigo, também casado, para ir junto. As esposas costumam ser mais compreensíveis quando seus maridos demonstram que podem se comportar bem lá fora.
Acontece que esse meu amigo é muito bom de bota, tanto em carros como em motos, com as quais já correu em Interlagos. Sabia que ele ia me avaliar naqueles 102 quilômetros até a Meca do Antigomobilismo. Nas rodovias duplicadas e retilíneas não havia muito a fazer, salvo conservar sobre futebol, mulher em rock ‘n’ roll (mentira, o papo girou sobre carros mesmo). Foi no setor final, entre Itapira e Águas de Lindóia, no corta caminho por fora de Lindóia, que o bicho pegou.
Trata-se de uma estradinha vicinal — um caminho de mula que recebeu uma casca de asfalto sem qualquer tipo de correção de inclinação nas curvas, bem como abertura de áreas para acostamento. A sinalização também não é grande coisa, mas a paisagem é marcante: uma zona rural autêntica, entre as montanhas da Serra da Mantiqueira, com suas cachoeiras e riachos vencidos por pontes estreitas, ligando curvas cegas intercaladas para a direita e esquerda, com grandes variações de altitude, mesclando topos de morros com várzeas. Tudo isso cruzando um pequeno bairro com capela rodeada de casebres vernaculares, em apenas oito quilômetros deliciosos. Uma etapa de rali, ali, cairia muito bem.
Um detalhe importante: estávamos completamente sozinhos naquele trecho. Havíamos madrugado naquele dia, pois o gado que chega antes ao açude bebe água limpa. Refiro-me à balbúrdia que costuma tomar conta de Águas de Lindóia para ver os carros antigos e o mercado de pulgas.
Uma súbita coceira na sola passa a comandar meu pé direito no acelerador, sem atolar o mesmo no pedal, porém dosando a pressão nele num crescente contínuo. Curva para a esquerda à vista. Redução de quarta marcha para terceira. O motor urra. Um totó no freio. Redução para segunda. Mergulhamos sob a copa das árvores. Tão logo a saída curva é avistada, a retomada é feita. Terceira. Quarta. Não dá tempo de engatar a quinta marcha. Curva para a direita. Nova redução para terceira. Segunda marcha. Segura, pois há uma lombada. Passando a primeira roda, pé embaixo de novo. O carro dá uma estilingada.
Coloco meus rins para dialogar com as abas laterais do banco de couro. Passo a entender a razão da existência delas, dada a sinuosidade da pista. Nós nos aproximamos de um topo de morro. Costas coladas nos encostos. Subitamente flutuamos por alguns instantes, na inversão para uma ladeira. Despencamos morro abaixo. A ponte lá na frente tem um degrau entre o asfalto e o concreto. Vai raspar na base do pára-choque! Não raspou. A suspensão assenta feito um pão de forma prensado na chapa, respondendo muito bem ao esforço solicitado.
Meu amigo estava se divertindo à beça. Ele passou a cantar os pontos de retomadas da aceleração para mim, feito um navegador. “Vai!” E fomos, sem cantar pneus, sem derrapar, sem travar as rodas nas frenagens. A velocidade? Se você perguntar, terei que garantir que respeitei os limites, obtendo diversão, esportivamente, no desafio de mantê-la constante. Não errei um engate. Estava usando aquele carro, pela primeira vez, nos conceitos para os quais havia sido projetado.
Passados dois anos e meio após a compra, finamente senti que estava sendo digno de guiar o Alfa Romeo 156, fabricado em 1998. Um modelo velho demais para ser a ponta de lança da marca, mas novo demais para ser considerado um clássico. Não tem problema. Estou quase completando 40 anos de idade e acho que estamos no mesmo barco, envelhecendo juntos com alguma dignidade.
Depois dessa você já pode me chamar de alfista, não é mesmo? Nada disso. Nada que lembre o fanatismo, por favor. Pode me chamar de renatista, por ser apaixonado pela Renata; ou de carolinista, por ser o pai coruja da Carolina. É para elas que eu sempre volto para casa, independente do veículo a ser manejado.
JT
ooooo