Daytona Cobra Cupê — pena que a equipe de Carroll Shelby só fez meia dúzia deles. O primeiro foi testado em fevereiro de 1964. Foram feitos para bater o então imbatível Ferrari 250 GTO no Mundial de Marcas, um GT (grã-turismo) que chegava aos 290 km/h de velocidade final, e o bateram. O Cobra roadster — que é o tal Ford Cobra que conhecemos — estava indo muito bem nas corridas, principalmente americanas, mas para o Mundial de Marcas, corrido basicamente na Europa, com pistas de alta velocidade como a de Le Mans, lhe faltava uma melhor penetração aerodinâmica. Ele chegava só a 250 km/h ou pouco mais.
O Daytona foi uma nova “vestimenta” que lhe deram, bem mais aerodinâmica, e nela Peter Brock (na primeira foto acima), o projetista de sua carroceria, ainda hoje vivo e ativo, aplicou o conceito Kamm de “cauda truncada”. Foi um dos primeiros carros de corridas a usá-lo, apesar desse conceito aerodinâmico ter sido formulado na década de 1930 por Wunibald Kamm and Reinhold Koenig von Fachsenfeld. O conceito, que tinha mais de 30 anos, estava praticamente esquecido. Na mesma época, outro que utilizou o mesmo conceito foi a Zagato no seu Alfa Romeo TZ. A traseira Kamm, além de reduzir o arrasto aerodinâmico também deveria reduzir a força aerodinâmica ascendente na traseira, ou seja, quando a traseira é “sugada” para cima por efeitos aerodinâmicos.
Para conhecimento, o responsável pelo projeto da suspensão foi Bob Negstad. O chassi era basicamente o mesmo do Cobra roadster e, tal como ele, feito pela inglesa AC.
Brock descobrira o conceito Kamm poucos anos antes. Quando trabalhava para a GM, o leu na biblioteca técnica da empresa. Ficou intrigado e resolveu aplicá-lo ao carro que Carroll Shelby o incumbira de projetar. Foi difícil convencer os outros membros da equipe de que aquilo daria certo, pois então a forma usada na traseira dos carros destinados a corridas de altas velocidades era a “teardrop”, a da gota de lágrima, ou seja, a da gota d’água, uma traseira que vai afinando suavemente, e isso vinha desde os anos 1920.
O tira-teima tirou de imediato todas as teimas, pois logo no primeiro teste, na pista de Riverside, na Califórnia, o Daytona pilotado por Ken Miles baixou o recorde da pista em 3,5 segundos. Sua velocidade máxima, com a mesma potência do roadster, chegava a 310 km/h. Para que o caro leitor tenha uma idéia do quanto essa nova aerodinâmica cooperou, basta que calculemos qual a potência extra que seria necessária para que o roadster atingisse essa mesma velocidade final. Bom, calculei aqui, e partindo do princípio que o motor de 4,7 litros (289 polegadas cúbicas) do Cobra produzia ao redor de 450 cv, o roadster precisaria de um motor que produzisse ao redor de 800 cv para chegar aos tais 310 km/h, ou seja, precisaria de ao redor de 350 cv extras. Um bocado, não é?
E era a isso, 310 km/h, que os Daytona cupê chegavam na reta de Mulsanne do circuito de Le Mans. Que beleza de corrida, não? Antes de 1990, quando foi cortada por duas chicanes, essa reta tinha 6 km, o que representava ao redor de um minuto e meio com o pé cravado no acelerador e motor rugindo ao máximo com o câmbio engatado na última marcha. E isso volta atrás de volta, volta atrás de volta…
Por sinal, poucos anos depois, em 1970, os Porsche 917 já atingiam 360 km/h, e quando em 1989 viram que os carros já estavam passando dos 400 km/h, trataram de diminuir essa formidável loucura fazendo as duas chicanes para 1990.
Os chassis do Daytona eram feitos pela AC na Inglaterra e os carros eram montados pela Shelby na Califórnia. O problema era que não tinham como fazer as cinco carrocerias restantes, de alumínio. A equipe da Shelby era pequena e grande parte dela estava dando suporte aos roadsters nas corridas, então Carroll entrou em contato com o seu amigo argentino Alessandro de Tomaso, que então morava na Itália — por sinal, o de Tomaso Mangusta, lançado em 1967, usava um motor Ford 289 preparado pela Shelby (guiei esse carro e me impressionei com esse motor, o quão bem girava alto apesar da arquitetura de comando no bloco e válvulas acionadas por varetas e balancins, um show) —, e o de Tomaso lhe indicou a encarroçadora italiana Carrozzeria GranSport. Os italianos tiveram dificuldades em ler os projetos de Brock, pois ele usava medidas em polegadas enquanto os italianos usavam a medida métrica, então, com arte, eles não se apertaram e trataram de improvisar aqui e acolá, o que deixou os Daytona feitos por eles até mais bonitos que o protótipo. E tudo bem, porque naquele tempo, na Itália, carro de corrida tinha, antes de tudo, que ser bonito. Oras!
Pois assim foi feito, às pressas, o primeiro Daytona a correr, o chassi CSX 2299. Os italianos terminaram às pressas sua carroceria em torno do chassi e em seguida ele foi mandado a Paris, onde recebeu a mecânica. Dali foi rapidamente testado numa pista de aeroporto, mais para checar vazamentos e fazer pequenos acertos. E dali foi direto a Le Mans, e esse foi o primeiro circuito em que pisou.
E pisou com o pé direito, para ganhar. Com ele, Dan Gurney e Bob Bondurant venceram na categoria GT.
Enzo Ferrari cuspiu fogo, mas consolou-se com a vitória de um Ferrari 250 LM na geral. O galho é que mal sabia ele que nos quatro anos seguintes essa vitória na geral caberia ao Ford GT40…
E o que também fica disso tudo, foi que a partir do sucesso do Daytona que o conceito Kamm pegou, virou moda. O Mustang Mach 1 de 1971, veio com traseira Kamm, truncada; o Corvette Stingray, com a nova linha lançada em 1968, também; o Alfa Romeo Spider de 1970; o brasileiro Lavínia, também conhecido como FEI X3, de 1971, e muito outros.
Todo bom carro de corridas e todo bom carro esporte tem uma história bonita, um romance legal e verdadeiro rolando na sua concepção. Só quem tem, ou teve, um romance legal e verdadeiro há de saber da coragem necessária para encarar as dificuldades que desafiam o seu sucesso. A coragem não resolve tudo, mas sem ela não se chega a lugar algum.
O que nunca faltou ao admirável Carroll Shelby foi coragem. Mereceu suas conquistas.
Há pouco todos os seis foram reunidos no Goodwood Revival. Vale ver o vídeo abaixo.
AK