Semanas atrás o Paulo Keller nos brindou com a matéria sobre o Dodge Charger Hellcat, e me intimou a escrever sobre o avião de mesmo nome. Como gosto muito de desafios, principalmente relativos a máquinas, cá estamos.
Leroy Grumman, fundador da empresa que leva seu nome, sempre buscou contratos militares desde 1930, e o tempo e as habilidades de seu corpo técnico fizeram-na uma especialista em aviões embarcados em porta-aviões, principalmente os caças de combate. Contratos militares são fonte de renda garantida, e em tempos de guerra, mais ainda. Leroy era o maior investidor entre todos que colocaram dinheiro na empresa, daí o nome da mesma, mas dois deles foram os principais responsáveis pelo avião aqui retratado, o Hellcat, gato do inferno nesse caso, mas que também é um termo para se referir a uma mulher maldosa.
Os engenheiros responsáveis pela criação do Hellcat, William Schwendler e Jake Swirbul, tinham em mente o máximo de simplicidade tanto de construção quanto de manutenção, características importantes em qualquer máquina, mas que em equipamentos militares podem ser a diferença entre aniquilar o inimigo ou ter que fugir, caso sua arma não funcione a contento.
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Este foi o segundo produto da série dos gatos da Grumman, e veio a ser o caça-padrão de grande produção e emprego na Marinha americana (US Navy), e o avião que substitui o Wildcat, esse bem mais modesto e inferior em desempenho ao Mitsubishi “Zero”, o principal motivo do projeto do Hellcat.
O avião foi projetado e desenvolvido em um ano e meio, período em que os Estados Unidos entraram oficialmente na Segunda Guerra Mundial após o ataque a Pearl Harbour em 7 de dezembro de 1941. O tempo foi curto, no ritmo normal de uma guerra, voando pelo primeira vez em 26 de junho de 1942 e iniciando o serviço ativo em agosto de 1943. A esse ponto, o conflito já tinha o Pacífico como seu teatro principal de operações, e a violência se intensificava, com os japoneses preocupando os americanos e seus aliados mais e mais a cada dia, ao contrário do que ocorria na Europa, com o enfraquecimento das forças alemãs.
O japonês Mitsubishi A6M “Zero” é muito falado quando nos referimos à guerra no Pacífico, e é de fato impressionante em eficiência, com uma taxa de vitórias de 12:1 — doze inimigos abatidos para cada Zero perdido — antes do Hellcat surgir.
O F6F Hellcat derrubou mais aviões inimigos, com 5.165 vitórias em dois anos, simplesmente 75% dos abates em combate ar-ar da marinha americana. Foi o primeiro avião aliado a ser um adversário à altura das qualidades do avião japonês.
Um dos motivos para essa resistência era a estrutura parruda, visível na imagem abaixo. A quantidade de nervuras (peças estruturais longitudinais, que dão forma ao aerofólio da asa) são em grande número, tanto nas asas quanto na deriva vertical e horizontal. Muitos tiros poderiam perfurar e enfraquecer a estrutura, mas a carga era bem distribuída por muitas peças, e não era qualquer rajada de projéteis que derrubava um Hellcat.
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A estrutura de alumínio em sua totalidade era um total contraste com seu principal opositor. Nesse ponto, o Zero, com sua estrutura mais leve e material diferente, uma liga de alumínio mais leve que o padrão, mas quebradiça e sujeita à corrosão, não era páreo. O Hellcat conseguia retornar ao porta-aviões com muitos danos, parecendo realmente um gato saído de uma briga no inferno. O apelido preferido para o Hellcat era Aluminum Tank, denotando a resistência do avião.
Nas avaliações antes de entregar o avião, a Grumman averiguou que enfrentar o Zero em grande altitude era relativamente fácil, mas a baixa altura e velocidade o Hellcat não conseguia escapar, pois era mais pesado em manobras, com raios maiores para curvar, e subia mais devagar até 14.000 pés (4.267 m ) Acima disso, o Hellcat era matador.
Esse tipo de informação é sempre controversa. Como se sabia detalhes de desempenho de um avião inimigo a ponto de comparar com precisão ? Reza a lenda que um Zero quase intacto foi encontrado por acaso em uma pequena ilha do Pacífico, resgatado e levado aos EUA, onde foi colocado em condições de vôo e avaliado extensivamente. Essa história inclui o nome do piloto japonês, morto durante o pouso forçado, mas nunca foi confirmada pelo governo do país oriental.
Verdade ou não, o que interessava de verdade naquele período era o que o Hellcat podia melhorar no trabalho da Marinha. E isso foi muito relevante e veio rápido, um mês apenas após as entregas da Grumman começarem a ser feitas.
O primeiro abate feito por um Hellcat foi em 1º de setembro de 1943, pelo tenente Richard ”Dix” Loesch. Ele seria depois engenheiro aeronáutico formado pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), e dirigiria a seção de operações de vôo da Boeing, tendo trabalhado como piloto de testes de aviões comerciais, entre eles o 747. Em seu livro “747- Creating the first jumbo jet and other adventures from a life in aviation”, Joe Sutter, engenheiro-chefe do 747, diz que Loesch foi um dos principais responsáveis pela qualidade de vôo do 747, um avião muito mais dócil do que seu tamanho e peso fazem supor. Sem dúvida que as horas de vôo no Hellcat deram a Loesch uma calibração de pé e mão que ele sempre buscava no seu trabalho civil posterior à guerra.
O maior às do caça da Grumman foi o capitão David McCampbell, com 34 vitórias, um número bem diferente daqueles divulgados pelos alemães nos bons tempos (para eles) quando era comum haver muitos pilotos com mais de 50 vitórias no ar. Imagine porém as extensões de mar aberto e os riscos de não haver lugar para pousar em terra firme, e dá para começar a imaginar o nível de tensão dos pilotos embarcados.
A velocidade das mudanças na guerra são incríveis, com essa primeira vitória ocorrendo em um ano e meio após o primeiro vôo do G-50, o protótipo com motor Wright R-2600-10, com 1.727 cv, e que logo em seguida, pela opção de maior potência disponível, foi equipado com o Pratt&Whitney R-2800-10 Double Wasp, de dezoito cilindros e 46 litros de cilindrada, com potência de 2.032 cv graças ao compressor de duplo estágio. A letra R designa motores radiais, onde os cilindros são dispostos como os raios de uma roda de bicicleta. O peso da unidade é de 1.068 kg.
O objetivo da Grumman foi fazer um avião de pilotagem simples, em que o piloto pudesse se concentrar no inimigo, podendo relaxar no tocante à capacidade e facilidade de manobra. Exatamente como é o grande objetivo também dos engenheiros de automóveis, onde qualquer comando ou controle que requeira pensar muito para serem usados, ou um carro que precisa de atenção constante do motorista, podem ser considerados um trabalho não exatamente bom. A Grumman conseguiu esse intento, e as tripulações elogiavam muito o gato infernal, a ponto de existirem declarações profundas e bem-humoradas, como a de Eugene Valencia, às com 23 vitórias pilotando o Hellcat: “Eu amo tanto esse avião que se ele soubesse cozinhar, casaria com ele”.
A taxa de vitória foi de 19:1, uma das melhores de todas os aviões da Segunda Guerra Mundial. Foram 270 aviões perdidos para a destruição de 5.271 inimigos.
A versão F6F-5 com melhorias no arrefecimento do motor, pára-brisa com melhor visibilidade, cabide para 900 kg de bombas debaixo da fuselagem bem no centro do avião, além de trilhos para foguetes sob as asas e dois canhões de 20 mm e quatro metralhadoras .50 (12,7 mm) nas asas, quando antes eram apenas seis metralhadoras de mesmo calibre, começou a voar em 1944.
Na corrida para armar a Marinha, a Grumman construiu 12.275 Hellcats em 30 meses, incluído uma versão de caça noturna com radar alojado em um casulo na asa, solução prática que ainda hoje é usada em alguns aviões leves, de uso particular ou empresarial. Eram as versões F6F-3N e 5N, dos quais 223 foram construídos e usados como caças noturnos.
Não era fácil a vida de nenhum avião embarcado e algumas fotos e vídeos ficaram na história, como essa abaixo que deve ser a mais famosa dos acidentes com o avião, onde um oficial de catapulta, tenente Walter Chewning, sobe no Hellcat embarcado no USS Enterprise para ajudar a retirar o aspirante a tenente Byron Johnson do avião em chamas, após o pouso imperfeito.
Há um livro fabuloso sobre o problema muito comum de acidentes em porta-aviões durante o conflito. O título é “Clear the Deck!” (Limpem o convés!), de Cory Graff, e um Hellcat está na arrepiante foto escolhida para a capa. O livro, publicado em 2008, é pequeno, 134 páginas, tem centenas de fotos e texto explicativo para todas elas; é bem barato, custa por volta de 4 dólares, usado.
Os britânicos também usaram Hellcats na Europa, foram 1.264 unidades combatendo os Messerschmitt Bf-109 e o Focke-Wulf 190, em ações na Noruega, no Mediterrâneo e também no Pacifico, junto com tripulações americanas.
Depois de terminada a guerra, França e Uruguai empregaram o Hellcat em suas Marinhas, até o início dos anos 1960. Hoje há alguns em condições de vôo, e muitos em museus não apenas nos EUA. Sorte de quem os comprou como excedentes de guerra (war surplus), onde aviões como esse eram extremamente baratos, e hoje valem milhões de dólares.
Alguns números para ajudar a entender mais um pouco sobre o Hellcat. Podia atingir 612 km/h a 23.400 pés (7.132 m), subindo a uma velocidade ascensional máxima de 3.500 pés/min (17,8 m/s) até o máximo de 11.369 m e tendo 1.520 km de raio de ação de combate, com armamento. Para viagens e traslados (ferry flight) podia voar 2.462 km em velocidade de cruzeiro de 322 km/h.
A velocidade de aproximação para pouso, importantíssima, era de 142 km/h, não muito baixa, mas sempre menor que isso em relação ao porta-aviões, já que com ele em movimento, a velocidade de toque no convés é os 142 menos a velocidade do navio.
Peso vazio 4.140 kg; máximo de decolagem carregado 6.991 kg; com três tanques externos, condição apenas para vôos longos, não para combate, onde esse peso máximo era de 5.714 kg.
Envergadura 13,06 m, comprimento 10,24 m, altura 4,11 metros, área de asas 31 m², dando carga alar com peso de combate de 184 kg/m² (peso máximo dividido pela área).
Mais fotos:
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JJ